Véspera Vespertina

Meu coração se assemelha ao motor de um veículo zero. Bate, sem oscilar, um número exato de batimentos cardíacos por minuto. Se investigasse os números só me depararia com um resultado aproximado, longe da exatidão cirúrgica. A consciência de não ter plena consciência me exulta. Os cálculos financeiros são mais certos do que os cálculos de mim. Posso, ainda que neguem, a qualquer momento fazer qualquer coisa. A imprevisibilidade ainda é, por ora, parte do meu reflexo humano. Estou confessadamente cheio de humanidades! O sangue circula em minhas veias e funciono, pelo menos na medida do possível e sei que o coração bate. As nuvens passam pelo céu azul claro e sei que um dia não haverá mais céu ou nuvens para mim. Nasci para morrer e me perco em longas e eventuais conjecturas. Os animais me encaram com seus olhos fundos e grandes, antevendo secretamente todo o mistério da existência. O amor que recebo é de outra dimensão. Neste plano ainda não aprendi a amar além do limite e talvez nunca aprenda. Minhas emoções se sobressaltam e choro sozinho no carro ao me deparar com um relâmpago numa noite silenciosa. Quase buzino em protesto contra os deuses, mas ouço apenas sons urbanos e dirijo.

Chego em casa e tiro a roupa, como quem descarta os pensamentos e faço do sofá um cabideiro ou uma arara para pendurar vestimentas. Abandono também as hipóteses levianas. Se os cachorros e gatos conhecessem os mistérios da vida jamais seriam atropelados. Se as pombas soubessem os segredos do Universo, apenas comeriam pipoca perto da entrada do Fórum de Justiça da cidade, mas elas ousam ir além e morrem, ao comerem outras coisas ou após serem também fatalmente atropeladas. Estamos aqui para alguma coisa, mas nunca saberemos a razão, afirmo. O caminho mais fácil para a tranquilização do espírito é sufocar as hipóteses complexas e resumir a vida em simplicidades. Se nasci para morrer, como vou me manter motivado para desfrutar de minha vida? Percebo os outros muito mais do que gostaria. Fito segredos degradantes que jamais serão revelados. Revela-se em mim a mania de contar, que nunca me abandonou e sorrio por me escapar a quantidade de batimentos cardíacos, ainda que não escape o impulso de um meio gesto alheio, que significou o gesto inteiro; ainda que não me seja invisível qualquer coisa que aconteça na penumbra; ainda que eu durma relativamente acordado, por conhecer o mal que sofro em meus pesadelos horripilantes. Não procuro em vida expiar as tragédias que me acontecem no cotidiano e nem busco verdades além da uma Verdade. Sou amado, entretanto, há vezes que me sinto tão sozinho que ninguém chega perto de perfurar as esferas do meu isolamento. Devo ter a paciência de me manter calmo e frio, apesar da drástica loucura climática, para não confundirem a minha raiva serena com qualquer destempero frívolo e banal. Sou furiosamente delicado, mas confundir a minha cautela com fragilidade é pisar em uma zona além da qual estipulei a minha pacificidade. Se por bem ou por mal quiseram controlar a minha reação, eu direi a todos que se fodam, que se enfileirem um nos rabos dos outros, que se lambam ou se cuspam, que me chupem, que me procurem na esquina ou que pulem de um precipício.

Tenho o cuidado extremo de permanecer sóbrio e real e leal, mesmo quando me passam rasteiras e cerro os punhos e franzo uma das sobrancelhas enquanto escuto, pois ouvir continua sendo uma arte. Tenho soluções criativas que ninguém ouve, muitas vezes nem eu mesmo. Tenho evitado iniciar confusões, mas só se recordam de como batalho furiosamente uma vez inserido nelas. Não busco conflitos, mas reajo. Que assim lembrem então do meu barulho e que minhas vontades realizadas, apenas pela razão de que desejo as realizar, não sejam confundidas com qualquer vislumbre extravagante de um instinto hedonista. Recuso o hedonismo. Não é tudo pelo prazer, mas tenho o direito de pleitear o que suponho ser prazeroso uma vez que lido com a difícil missão diária de enveredar por subidas mais íngremes. Quero mais, sonho mais, subo mais, luto mais choro mais e até grito mais. Escalo uma montanha e do outro lado da colina há um desconhecido que me diz que eu não deveria estar ali. Após tanto tempo de escalada, resolvo fazer a única coisa que é simultaneamente sensível e sensata. Mostro-lhe o dedo do meio e calmamente digo que não há montanhas, nem vidas, nem separações. Se estiver atento perceberá que até mesmo metade das vontades que você julga serem suas, foram-lhe estimuladas por pessoas alheias ou pela sua falsa argúcia em observar errado. Digo isso a ele e mostro o outro dedo do meio. Percebendo-se apequenado diante de mim, observo-o fugir, sem argumentos para minhas falas, sem astúcia para o enfrentamento. Não o xingo, pois ele tem o direito de se resguardar silenciosamente em seu remorso acovardado.

Há pessoas que odeio e serão famosas e não as odiarei menos por isso. Há pessoas que amo e serão famosas e não as amarei menos por isso. As minhas opiniões não são afetadas por impressionismos de esquina e nem a minha atenção é comprada por qualquer debilitado chamariz patético e pedante. Os que mergulham na prostituição barata em nome de obter atenção e os que bajulam e se rastejam para buscar um lugar ao sol, por terem confundido um falso ídolo qualquer com um verdadeiro Astro cósmico, não sabem nada sobre iluminação e luz. A cidade continua a ser o que sempre foi e desconfio de que eu não sou mais quem quase sempre fui. Minhas mudanças estéticas são mais notáveis que minhas oscilações morais e intelectuais. Os batimentos cardíacos, agradeço a qualquer coisa que não vejo, ainda são impossíveis de contar com precisão. Conto as mentiras, as falhas, os acertos, o salário, os amigos, os falsos amigos, os psicólogos, os psicanalistas, os médicos, os jogadores de futebol, os coqueiros do outro lado da rua, mas ainda não conto os meus próprios batimentos. A imprevisibilidade ainda não é estéril em mim, entretanto, vejo-me cercado e cada vez menos humano. Velhos restaurantes que por anos foram imponentes, repentinamente estão falidos. Como posso eu, repleto de tantas humanidades, ser infalível? Falho com e sem classe, arrependo-me de coisas que fiz e de coisas que não fiz, de murros que não dei na hora exata. Os ossos se consolidam, mas os remorsos nos perseguem e algumas vezes nos matam. O grande júbilo quando o cansaço me alcança é manter a convicção de que ainda há a morte. Que sorte, digo baixo, que sorte, confesso aos prantos, que sorte, grito aos quatro cantos. Tudo começa e acaba e vilões e heróis, santos e pecadores, criminosos, apátridas e ingênuos se igualam com o nivelar final da inevitável condição humana: todos morremos. Não há um político corrupto que escape, não há um diretor de cinema engenhoso, uma advogada, um filho, uma mãe, um filho da mãe, um filho da puta, um animal, uma planta que escape. Tudo morre e tudo em mim retorna ao seu devido lugar. Repito, cansado e combalido, o que começa precisa acabar.

Sinto uma afta abaixo da língua e a pressiono com um punhado de sal e meu dedo anelar. A dor me faz sentir vivo e os meus pensamentos cessam. Não é preciso pressa. O mundo é grande e sempre haverá alguém acordado e alguém dormindo. Os relógios ajudam no controle, mas os ponteiros são mecanizados. A consciência de não ter plena consciência me exalta e me alegra. Toda beleza que interessa é vaga e cega. Nasci para morrer e me firmo nessa constatação. Meu coração sem contagem de batimentos parece descompassado, como um motor quebrado, mas me valho de um orgulho tosco e juvenil de ser quem eu sou hoje, ainda que não tenha a certeza de quem eu vá ser amanhã. Somos ingênuos e abobalhados diante do Tempo e fazemos ou deixamos de fazer apenas nestes pequenos lapsos nos quais nos enxergamos quase como seres Reais. Sem os lapsos epifânicos, sem essa convicção superior de necessidade, nada somos e tentamos disfarçar a notável indiferença que sentimos com propósitos e sonhos e desejos. A vida cinza do escritório se colore com a paisagem que vislumbro da janela. As árvores e máquinas jazem belas no pátio dos automóveis gigantes. Em outros sistemas, será que esses ônibus contam histórias sobre os humanos que os conduzem? Haverá alguém segurando este planeta gigante na palma da mão, como eu seguro uma bola de tênis? Sorrio como reflexo, sem sentir felicidade ou tristeza. Ainda sou o mesmo de sempre, na verdade e esta cidade vai mudando mais do que eu, tanto nos recônditos de seu âmago, como no sentido estético. A alma da cidade se expande. A egrégora formada pelo acúmulo de espíritos campo-grandenses vai além de uma Campo Grande. Novos prédios surgem e eles riem dos antigos, que dizem para as casas pequenas e os comércios locais que a juventude atual está drástica e mudada. As coisas eram melhores antigamente. Até os insetos estão abandonado a cidade para tocarem banjo em uma roda no pântano. Qualquer leigo midiático abandona a literatura por qualquer outro esporte mais prazeroso e fugaz.

Falo do que sei, sabendo que sei cada vez menos. Os mais sábios morreram e os mais estúpidos também e quando chegar a minha vez, eu sei que alcançarei todos os que se foram e que hoje estão distantes de mim. Não tenho vaidades cronológicas e assim, contento-me em viver só até a velhice, realizando-me ou não, porque o homem que deseja e realiza encontra o mesmo encerramento que o que não se realiza. Pretendo beber muito café e muita cerveja, pretendo foder pelos próximos trinta anos pelo menos quatro vezes por semana, escrever muitos textos, ainda que ninguém os leia e dizer sem hesitar em um instinto educado de polidez BOM DIA, para as pessoas que eu encontrar no elevador do condomínio. Os animais podem guardar segredos existencialistas, mas eu não sou capaz de guardar nada. A ambição de existir longe me frustra constantemente. O sucesso e o fracasso são vizinhos de frente. Um dia quando eu pedir café emprestado para o vizinho ou para a vizinha, quem sabe não me descubram. Imagino-me agora coberto e rio da inutilidade pueril do senso de humor. Tudo existe, mesmo sem que eu saiba para quê e saber que todas as pessoas pensam, mais ou menos a contagem aproximada de pensamentos que eu também penso, convence-me de que há demasiados pensadores. Queria emudecer na consciência apenas por algumas horas e me encarar nu, vazio e puro. Aceito o meu corpo e até da minha assimetria sou seguro, afinal, a carcaça é nada ou no máximo significa e traduz a roupagem de minha alma. Sinto-me só. Sinto-me e só. Queria externar minhas raivas e paixões, minhas partes esdrúxulas, minhas ironias e verdades, minhas razões, meus choros, meus prazeres, queria ser encarado como um livro escrito e publicado, mesmo que repleto de rasuras. Vou ao banheiro e mijo. Tenho mijado muito por beber seis litros de água por dia e penso na utilidade da água, não para os outros, mas para a minha funcionalidade biológica. Esses tantos silêncios são o que tornam a vida possível ou o que nos disfarça o suficiente para que sejamos encarados como toleráveis? Essa quietude quando a vida pede coragem nos ensina algo sobre os outros ou sobre nós mesmos? Essa angústia disfarçada, esse senso estético exaltado e murcho, destacado constantemente como se fosse a única qualidade a se espelhar, ensina algo, afinal? O fanatismo é indiscutivelmente além da conta, tanto que já vi pessoas disfarçando seus corações, suas paixões e até suas próprias identidades, tudo para saciar uma pressão social concreta. A pressão singular que assola quando ninguém vê, guia o fanático até uma confissão secreta, calada, escondida. Quase ninguém nota, mas eu tenho observado.

Não me entrego aos idiotas e nem me verão me submeter ao vulgar escancarado ou oculto. Àqueles que pensam que podem pensar sobre como os outros agem, não são só estúpidos como completamente egoístas. A vaidade narcisa passa longe de mim, mas tampouco me impressiono com narcisos. Acostumei-me com a constante presença deles ao longo da vida. Há uma mania de convencimento frágil, falsa, de se pensar muito mais do que se é. Idolatrar-se é se entregar ao vitupério próprio, individual e inescapável. Toda obsessão é boçal, sendo a obsessão consigo a mais banal delas. Deificar a aparência é optar sacrificar tudo o que não é aparente. Destacar apenas a estética é se ajoelhar diante de uma falsa beleza e não me ajoelho para amigos e nem para inimigos. Sim, há os amigos e há os inimigos também, você subestima, mas há pessoas na cidade que riem de você, ainda que não te conheçam, que torcem contra você, ainda que nunca tenham te visto, que invejam a sua vida, é claro, sem terem a consciência de que há ônus e bônus para todos. Você que me olha e não lê minhas palavras, zomba, gargalha e ainda acha que estou louco. Tudo o que todo mundo faz ainda é muito pouco. A tragédia não é ser leigo, é ser amoroso. O inferno, como disse Sartre, são os outros.

Já não posso tolerar quem age de maneiras irresponsáveis em relação a mim e me afasto, afastando-os também, por ter aprendido que a autopreservação como instinto é, por vezes, salvadora. Se não me salvasse, quem operaria heroísmos em minha vida? Se não me defendesse, quem desferiria um tapa tentando salvar a minha honra? Se não berrasse, quem conteria meus desesperos soltos no peito? Quem para me defender, quando o mundo é covarde na defesa e prefere se valer de uma fingida destreza para evitar o conflito? Quem é que sendo esperto escolhe o lado certo, sendo que o outro lado está sozinho? Quem é que vai se esquivar e falar que não há razão após o primeiro grito? A covardia, bem como artimanhas viperinas, é manjada e não sou ingênuo para me enganar facilmente. Tenho uma estrutura estética formidável e me agrado com a forma do meu nariz e a cor dos meus olhos, embora desejasse que cumprissem a função original para qual os tenho. Se os olhos enxergassem bem e se meu nariz respirasse melhor, eu talvez me sentisse satisfeito. O senso de estética externo é marcante e por isso engana a funcionalidade de tudo o que é interno e funciona com oscilações. Enganamos os outros, mas no fim, desconfio que jamais enganamos a nós mesmos. Comportamos monstruosidades, bem como operamos milagres. A existência é repleta de dualidade e nós somos todos ambivalentes.

Choro solitário, sem derramar lágrimas e me percebo percebendo. Não consigo ser simpático. A minha ira esbarra na minha doçura e meus contrastes me definem. Se posso ser mais? Talvez. Se quero ser mais? Não sei. Se sou o mesmo desde a infância? Provavelmente sim. Ainda me vejo menino no quintal de casa, sozinho, observando os brinquedos imóveis, que logo agitariam a minha manhã com a minha imaginação. Não preciso estimular minha criatividade, tampouco minhas convicções. Nossas certezas são mais certas que as certezas dos que julgamos ignorantes ou loucos? Há genialidades vomitadas diretamente no esgoto. Esvazio-me, mas continuo cheio, sem saberes acumulados. A única certeza que se crava em meu peito, como uma estaca fincada no coração sem batimentos de um vampiro, é de que um dia irei morrer, bem como todos os que não são eternos também morrerão. Tudo se despedaça. Tudo começa e acaba. Tudo acaba e começa.

Se o mistério da Vida fosse um quebra-cabeças, eu seria apenas uma peça. Rio da rima e me volto aos números. Preciso tomar café e mijar, não necessariamente nessa ordem. Que o Rio de Janeiro tenha compaixão de mim, gargalho no escritório de casa. A ira alheia envolta em fantasias de relações íntimas nunca cumpridas me coloca um sorriso no rosto. Um se matar por um amor não correspondido e este vivo, sobrevivente, não clama por gratidão e abandona o “amigo” na primeira oportunidade. É a batalha da bajulação contra a vaidade. Suporta-se tanta a humilhação só para andar de mãos dadas. Há mãos que são cheirosas e macias, mas não valem esse preço. Sorrio outra vez de meus desassossegos. Torço para que não invadam meu espaço pessoal mais uma vez. A violência não me apraz, mas tenho me cansado de ser calmo. Quero o silêncio a qualquer custo. Não me basto e todo novo dia ainda me busco. Já é possível revolver para dentro e me encarar sem sustos?

Quero chegar em casa e encarar os profundos olhares dos bichos, que me exigirão ternura e alimentos, sem explicações sobre mistérios não misteriosos da vida. Sorrio com expectativas, mesmo sabendo que a expectativa é uma forma de ilusão condicionada propositadamente por mim. Os cálculos financeiros são mais certos do que os cálculos de mim e essa exatidão me faz rir. Posso, ainda que neguem, a qualquer momento fazer ainda qualquer coisa. A imprevisibilidade é, por ora, parte do meu reflexo de humanidade. Nesta véspera vespertina de mais um ano de vida, neste prelúdio alaranjado do meu aniversário, penso, como bilhões espalhados pelo mundo também pensam. Sonho infantil de um dia mostrar meus pensamentos e minhas iniciativas aos outros que também pensam. Sorrio outra vez, ainda que essa hipótese possa talvez nunca se concluir. O futuro é imprevisível, bem como as vontades que dançam no meu âmago. Tudo pode acontecer!

Tudo pode acontecer, mas nem tudo vai. A cada escolha que faço deixo milhões de outros destinos para trás.

Divagações Prolixas

Àquela época, juro, não havia como entregar mais do que eu já entregava. Não me entenda mal, eu não era dado a perversões, não era particularmente viciado em coisa alguma e me sobrava a disposição juvenil para o labor que só transborda nos realmente jovens e espirituosos. Eu era, hoje vejo, ainda ingênuo. Alimentava minhas crenças na possibilidade de crescer na empresa em que trabalhava e acreditava fervorosamente na meritocracia, assim, não me importava em me matar de trabalhar, na verdade, até desejava trabalhar até a exaustão, mesmo que minhas mãos estivessem trêmulas ao final do expediente e meus olhos avermelhados. Não era como os japoneses que trabalhavam até quinze horas por dia, entretanto, com uma personalidade obstinada, firme como o aço, eu dificilmente me dobrava para o cansaço ou qualquer outra coisa. Se eu era capaz de lidar com a exaustão era sinal de que estava tudo bem. Meus esforços resultariam inevitavelmente em uma carreira bela e sólida.

Quando se quer trabalhar, porém e, surgem centenas de obstáculos entre você e o objetivo, há de se respirar sem pressa e recuperar a confiança. Mantenha a calma e contenha o entusiasmo. É preciso fazer um esforço hercúleo em não se esforçar. A primeira vez que me vi defronte ao dilema senti um torpor crescente, pois as informações pareciam e ainda me parecem antagônicas. Como absorver uma informação que soa como uma brincadeira? Você pode estar chocado, entretanto, eu falo a verdade sobre isso de se esforçar em não se esforçar. É mais ou menos como a expressão se fechar em concha, mesmo que não guarde pérolas. Há ambientes em que há um empenho notável em não levar qualquer tipo de conhecimento além. Tudo pede discrição? Tudo. Sabemos o que sabemos e ninguém nos ensinou, logo, também não me sinto obrigado a fazer o mesmo já que nunca o fizeram por mim. Bem, há duas maneiras claras de fazer a leitura da situação: lendo-a ou evitando lê-la. Só os banais se desgastam sem a necessidade.

Àquela época, juro, fechava os olhos da minha intuição para evitar o pior que antecipava dos outros. Nestes tempos de isolamento, é mais fácil se esquecer de si mesmo. Sente saudade de quem costumava ser no mês passado? Sente o peso das culpas do extenso mês de fevereiro? Sente o cheiro da maresia e o aroma de vida nova da cabeça do seu sobrinho? Por quanto tempo vale a pena ser o que é? O que você faria para se adaptar e se sentir um pouco melhor a respeito de si mesmo? Proteja-se, rápido, seja com a sua afiada argúcia intelectual ou com seu notável porte físico. Ninguém transporá suas armaduras e você estará certo em se sentir seguro, desde que nunca perguntem. Você reconhece os facilmente impressionáveis por também ser assim, certo? Não ter um rumo para onde seguir é a personificação da jornada de solidão no deserto. Toda a atenção do mundo não te faz sentir mais esperto. Falhar consigo mesmo não é uma possibilidade. Você sequer existe quando não há estímulo e atenção dos outros.

Agora estenda os raciocínios e vá além. Desabroche no asfalto, quebre o silêncio com um grito, erga os punhos e não se deixe abater tão facilmente. Respire fundo e aguente firme. A jornada quase nunca é simples. A vida exige de nós um pouco de jogo de cintura e há quem confunda um rebolado discreto com um curso profissional de dança. Não devemos nos esticar distâncias impressionantes e difíceis de calcular apenas para tentar impressionar os outros. O que resta de nós quando abrimos mão de nós? Os preços, altos ou baixos, geralmente são pagos. Os fins, dizem, justificam os meios. Qual é a sua opinião sobre fins e meios? Sinto um arrepio e não sei se é devido ao pensamento perigoso ou ao café ruim do meio de uma tarde de trabalho. Sorrio e temo pelo dia em que puxarão o meu tapete. Deveria viver objetivando deslumbrar as pessoas? Conheço meios para ser o centro das atenções, portanto, deveria colocar uma melancia na cabeça e fazer com que tudo seja sobre mim o tempo todo? Sou desprezado e detestado por pessoas viciadas em impressionismos baratos. Não me esforço para dobrá-los ou convencê-los. Eles, por sua vez, irritam-me de vez em quando e me tiram do sério. Respiro e me recomponho. Não preciso tornar relevante quem não o é. Calo o meu lado intelectual, privo o planeta da minha existência, sou o que resta de mim em mim, sem plateia, sem aplausos, sem assovios ou tomates. Penso antes de abrir a boca e por vezes a fecho sem nada dizer. Os sonhos inadequados, se eu os tivesse, não os compartilharia como quem percorre trilhas secretas, sorrateiro, deixando pedaços de pele e de presença. O que será que querem? O que eu diria se não tenho o que dizer? Será que deveria forjar opiniões aprazíveis para me encaixar e ser adorado pelas pessoas? Todo mundo gosta tanto de quem tem a fala fácil e a adaptação rápida. Todo mundo gosta tanto de amar quem é completamente desconhecido. Algo dentro de mim pede para sair e reflito que isso talvez não agrade meu público, conscientizo-me de que isso tudo talvez amargure o meu grande espetáculo. Dou de ombros. Quando o que urge dentro pede para existir fora, respiro fundo e aliviado, solto o ar do meu peito.

Não devemos calar a nossa voz interior apenas para encontrar um tom que agrade a multidão. Não devemos nos apagar do que somos para nos apegar ao que não somos porque queremos desesperadamente pertencer. Apego-me muitas vezes ao que não sou para continuar não o sendo. Os prêmios pelas melhores atuações são excepcionais, mas os troféus fictícios não podem ser ostentados na estante. Na galeria dos troféus de mim, só me orgulho de quando consigo me manter “Eu” em face do horror reproduzido pelo mundo. Estou consciente de que sou capaz de reproduzir Beleza e Horror. Opto, na maior parte do tempo, pela difícil tarefa de valorizar o Belo através da exaltação das discretas coisas frágeis.

Os erros são, na verdade, tão legítimos quanto os acertos. Àquela época, juro, exprimia da vida todo o suco que ela podia me entregar. Os erros aconteciam aos montes, mas os acertos ocorriam em frequência ainda maior. Veja, não é como se eu não estivesse tentando ir para algum lugar, entretanto, os nossos alvos internos são, geralmente, invisíveis aos olhos dos outros. Nos aprazemos em tornar defectíveis os que jazem longe e nos apressamos em aperfeiçoar os que estão perto o bastante ao ponto de parecerem figuras místicas. Franzimos o cenho, cruzamos nossos braços e, não raramente, atacamos quem ataca nossas pessoas amadas. Somos o escudo que se levanta e ampara as flechas, mesmo quando os disparos são realmente merecidos. Alguém já te defendeu quando você estava errado? Como isso faz você se sentir?

Por vezes sinto como se meu cérebro fosse pifar e me lanço outra vez em esforços hercúleos, homéricos ou qualquer coisa assim, sobre lendas que nunca me fizeram a menor diferença, apenas para pensar menos e me acalmar. Quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas e quem se apequena para se encaixar pode muito bem ser esmagado, mesmo que sem querer. A vida é linda e feroz. Minha expansividade baila com um sorriso brincalhão de júbilo na face quando me percebo convicto a respeito de uma opinião que posteriormente se configura completamente verdadeira em um tempo-espaço futuro. Não sei o que falo, o que calo, mas aos poucos compreendo que Deus mora no escuro. Não só na escuridão qual temo, bem como no sol que cega meus olhos. Deus é um amigo que esquenta e esfria e tenho que me esforçar para ser um filho pertinente. Tento me acostumar com quem não me exige costumes falsos. Pertenço a quem não me obriga ou me estimula a me disfarçar e a quem me aceita exatamente como eu sou. Olho-me e me reconheço confuso. Quantas divagações espirituais e divinas para alguém que quase nunca reza. A minha fé, porém, subsiste nas coisas certas. Quando falho com o que considero correto, falho comigo, fecho-me e me envergonho. Volto outra vez a escutar gritos assombrosos, miados fantasmagóricos e os calafrios agora são mais assustadores. Meus pelos se eriçam e me vejo pronto para o combate. Espécie de fera arisca, sou feito de amor, mas o meu coração de guerreiro bate. Estou de joelhos, mas me levanto cambaleante. Luto quando é preciso lutar. Faria sangrar pelo que é certo. Faria sangrar pelas pessoas que amo. Banharia meu corpo em vilezas, desde que feitas de certezas, ainda que a maioria do mundo considerasse um engano. O tempo todo nos conduzem por um processo estreito qual nos empurra para um pensamento de massa. Tudo se polariza e você deve escolher um dos lados. De que lado você está?

É preciso, eu juro, empreender um esforço sobrenatural para não escolher. Não é fácil apontar os erros dos outros enquanto reconhece os seus próprios. Não é fácil parar de amar ídolos fracos e falsos só porque um dia lumiaram os nossos olhos. A vida é o caminho que escolhemos e os milhares que deixamos para trás. Quem sabe fôssemos mais felizes, quem sabe tivéssemos sucumbido diante das trevas do Universo, quem sabe a solidão nos fortalecesse ou nos matasse de vez. Quem sabe o que teria acontecido se eu não tivesse entregado todas as moedas ao mendigo ou doasse meu casaco ou cortasse o papo do coreano. Carrego a lanterna como a prova de algo que não sei o que provar, mas sempre sorrio com a lembrança do presente. Quem sabe a lanterna do coreano me faça me sentir mais lanterneiro, como o menino naquele avião ou quem sabe eu precise me alimentar de coragens alheias para fortalecer a minha própria. Quem sabe esse Vide Noir cresça, diminua e cresça outra vez. Quem sabe abrir mão de alguns casacos tenha me garantido eternamente aquecido. Quase fui engolido, mas saí do fundo do poço. Quase pelo mundo fui esquecido e ninguém se recordaria do meu nome no meio dos destroços. É estranho não tentar e crescer. As pessoas dizem e nunca cumprem o que prometem fazer. Sei de memória de pelo menos dez pessoas que juraram ler meu livro. Elas, na verdade, estão mais interessadas em quaisquer futilidades nas rotinas ou nos feriados e domingos. Talvez todo mundo minta que se importa. Talvez a solidão outra vez me bata à porta. Talvez o meu destino seja ser triste, entretanto, luto ferrenhamente contra o destino. Se tenho força para me levantar posso então mudar o meu destino?

Sigo, trêmulo, oco, repleto, opaco, cego, confiante, hesitante, claudicante, alegre, triste, entusiasmado, pelas centenas de estradas da vida. Talvez devesse escrever mais doze contos sobre realidades tão comumente esquecidas. As mesmas pessoas que então juraram me ler, por sua vez, jurariam de novo e novamente não leriam. O que nos resta quando nada interessa e tudo soa como uma péssima poesia? Rimo, faço anagramas, sigo, sorrio menos, deveria sorrir mais, Anna diz, meu avô dizia, meus avós diziam, meu pai dizia. Dani, seu sorriso é tão lindo, por favor, sorria mais, mas não posso deixar de ver o que vejo e há coisas de mais espalhadas pela cidade e os outdoors foram removidos e eu não sinto saudades, mas os outros parecem o tempo inteiro quererem voltar ao cerne de uma vida sem expectativas. Sairemos todas as noites e que nossas vidas sejam esquecidas. Noctívagos de olhos espertos espreitam a escuridão e eu sei que já fui um deles. Distrações não me distraem e eu choro. Distrações não me distraem e me permito respirar. Os cochilos são sagrados, mas às vezes Deus me furta o sono e compartilho um silêncio de roncos baixos com a mulher que amo. Melhor seria apagar, mas permanecer acordado também é precioso. Tenho medo de não a ver roncar mais. Tenho medo dos medos. Secretamente encaro meus maiores desesperos.

Lá vou eu, como um navio, desbravar o mar em uma noite de tempestade, livre do medo de soçobrar. Nem a criatura mais forte diminui a potência das marés. Eu talvez morra essa noite ou essa tarde porque meus entendimentos falharam em ser entendidos por todos, inclusive, por mim. Vencemos todas as vezes que apostamos em nossas individualidades. Fracassamos toda vez que nos disfarçamos. Ser pequeno não serve ao mundo e, respiro-me, saio de mim, para encarar essas tantas adversidades. Talvez eu perca a minha vida, mas quero observar o sono da mulher que amo e deixar que meus braços lhe confiram uma sensação de segurança. Talvez eu perca a minha vida, mas um dia vou matar o dia de trabalho para passar uma manhã inteira com o meu cachorro e a minha gata. Talvez eu perca a minha vida, mas estarei onde tenho que estar, prostrado, eu, dono de mim, convicto de não estar convicto, mas sem me vestir de outra pessoa para impressionar. Lá vou eu, na escuridão de Deus, amar a vida que nem sempre me ama de volta. Lá vou eu, outra vez me importando com quem nem sempre comigo se importa. Ao redor do buraco tudo é beira, sorrio, encaro o abismo e ele me encara de volta. Não tenho medo de altura e ergo a minha cabeça e sorrio. Os sonhos foram feitos para serem sonhados. Alguns se realizarão e outros não. Será que há alento para os que fracassam? Canções novas agitam o meu peito e sinto que podem brotar, a qualquer momento, novos contos para que eu possa cantar. Se um dia eu me perder de tudo por decidir mergulhar bem fundo, você me ajuda a voltar?

Acordo no meio da noite e ando pelo apartamento sem acender as luzes. A cidade silenciosa existe sem mim e a fito pela sacada. A escuridão é o lugar de Deus, portanto, não acendo as luzes. Permito-me, aos poucos, a me acostumar. A brisa gélida trespassa meu corpo na madrugada e sinto meus instintos de criatura noctívaga. Existo, sei que sim, sorrio, pois Deus vai cuidar de mim. Todos somos filhos do mesmo. Sorrio por não ser meramente religioso. Sei que tenho grandes sonhos e a vida não pode acabar mal. A morte é o destino que une a humanidade, assim, convenço-me de que, cedo ou tarde, iremos nos encontrar em outros planos. Não sei o quanto valho, mas a vida é só uma, até onde eu sei e creio honestamente que não é saudável desperdiçar meu tempo sendo quem eu não sou. O que me oferecem em troca de atuação é audiência e não amor. Sorrio e meus olhos enxergam cada vez melhor. A escuridão começa a ficar clara ao meu redor. Nem todos os dias são bons, mas tudo vai ficar bem. O incenso queima e o calor do fogo me confirma: ser o que se é ainda nos levará além.  

Não sei onde chegarei, juro, mas caminho em uma direção previamente estabelecida, sem imitar os outros e nem seguir milhares de trilhas. A minha personalidade não se confunde com a dos outros e sinto um alívio. Não há como entregar mais do que eu já entrego. Não me entenda mal, eu não sou dado a perversões e continuo não sendo particularmente viciado em coisa alguma. Não divido meus hábitos, mas divido a minha jornada com quem nunca solta a minha mão. Há quem pense que os dragões são todos ferozes e que as raposas são todas matreiras, entretanto, as sutilezas das feras são de uma leitura mais lenta e atenta. A disposição que me sobra não me transborda, mas é direcionada para o destino certo. Eu era, hoje vejo, ainda ingênuo e sinto um estranho orgulho da minha ingenuidade. Cuido como ninguém das pessoas que me cercam. Nunca me esqueço dos meus acertos e dos meus erros. Há muito o que errar, mas muito mais o que acertar daqui para frente. Tudo é como é, mas permaneço forte enquanto andar lado a lado com pessoas que me reforçam na essência. Quanto aos que exigirem que eu seja qualquer outra coisa, balanço a cabeça em negativa e tenho paciência. Um dia quem sabe eu possa fazer alguma diferença.

Um escritor não se perde da escrita.

Um escritor não se perde da escrita. As palavras se deitam atrás de planuras e ficam temporariamente inacessíveis. A capacidade de contar histórias, a beleza narrada nas peculiaridades e mínimos detalhes, a poesia extraída como uma fruta espremida até o limite e a delícia do suco… isso tudo sempre persiste.

Há esta espécie de sono metamorfoseado em outra coisa assustadora, crescente, ensombrecida. O escritor não sente letargia e nem vontade de dormir, mas assim como quando em sono profundo, ele fecha os olhos e a alma divaga para longe e é preciso tomar muito cuidado. O Vazio representa a ruína de tudo.

Vivo a vida, às vezes, no limiar da realidade e desfruto o prazer supremo ao mesmo tempo em que me puno com a dor eterna. A sensação é livre de vícios, mas estar livre de vícios se parece tanto com um vício que a ambivalência da liberdade nos guia para caminhos tortos e estranhos. O que você faria se não tivesse a obrigação de fazer coisa alguma? No que você pensaria se não influenciassem no seu pensar? Tudo é lícito ou há proibições sensatas? Veja como descascamos nossas camadas e nos aproximamos da nossa essência. Veja quantas normalidades se tornaram estranhas e quantas estranhezas se tornaram normais e ainda assim, é preciso ter paciência.  

Um escritor não se perde da escrita. Ele é capaz de reviver memórias antigas e fixá-las com os dedos no tempo presente. Quando isso é feito e os olhos salgam enquanto os dedos sangram, é sinal de que essas memórias passadas ainda estão vivas e o que foi ainda é e há muito o que dizer sobre o que não foi dito e agora tudo escorre. É preciso correr atrás do que faz o coração acelerar. É preciso insistir no amor. Quando o mesmo processo é feito e os dedos apenas queimam, verifica-se a prova de que os incômodos já não são tão urgentes assim.

Todos têm sonhos, assim como eu, quase todos pretendem realizá-los, bem como também pretendo, mas nem todos chegarão até eles. Devo me entristecer pela hipótese de nunca me concluir em longas conjecturas hipotéticas? Sei que não devo. Tenho a oportunidade de celebrar alegrias inéditas que nunca planejei. Entristeci pelas coisas que não pude mudar e pelas coisas que mudaram enquanto eu mudava. O que realmente existe e fica perto do nosso controle? Para um escritor, você supõe, que são as palavras? O escritor nunca se perde da escrita, mas às vezes se perde de si mesmo e sumir de si mesmo é tropeçar no fundo do poço. A queda brusca, violenta, deixa-nos completamente machucados. Tentações, perigos e ecos de morte surgem como sussurros insistentes. Apavorados, convivemos com o medo de ceder. Quando a mente não pensa, a voz não sai, o escritor secretamente alimenta a esperança de que os dedos gritem o pedido desesperado de socorro e nem sempre é assim que acontece. Por vezes apenas sufocamos enquanto o resto do mundo nos esquece.

Um escritor não se perde da escrita. Está por conta do ofício obrigado sempre a se escrever, descrever, transcrever. Não é preciso caneta, papel, teclado ou computador. Os dedos seguem o ofício de criar textos e organizar palavras, mesmo de olhos fechados, mesmo na inconsciência ou na consistência do amor. Grandes inícios em parágrafos bem estruturados e finais trágicos em histórias surpreendentes. Não, um escritor não se perde da escrita, mas a escrita pode exercer sua função de ocupar distâncias e preencher lacunas. O escritor aprende e ensina através dos tantos textos. Percebe que, embora encontre neles sua própria voz, o desenvolvimento nem sempre é o mesmo. O escritor evolui conforme lê mais, entende mais e se atreve mais. É preciso mergulhar profundamente em mares selvagens e se defrontar com monstros lendários e esquecidos. O escritor é aquele que sabe que todo inimigo pode ser vencido, embora não compense acumular inimizades ao longo da vida.

Porque a vida deveria ser mais feliz, redonda, mas os problemas que nos cercam por muitas vezes não são solucionáveis e temos o hábito sombrio de complicar tudo o que é simples. As tragédias mundanas não se equiparam com tragédias individuais, pois dimensionamos as coisas com os nossos próprios sentimentos e não com o coração do mundo. Respiramos com nossos próprios pulmões e só nós perdemos e recuperamos o controle de situações pessoais. Somos pequenos e consequentemente nossas angústias não podem ser tão expansivas quanto nossos sonhos. Esquecemo-nos que temos a capacidade para existir ao longe, ecoar nossas vozes e risos ao som de fundo do planeta, como pequenas caixas de som, propagando uma mensagem auspiciosa, que reverbera. Temos o potencial para ser a beleza que renasce junto com a primavera. Merecemos muito mais do que uma vida de sacrifícios diários por salários baixos. Merecemos abraçar nosso protagonismo e viver esse heroísmo que já estava escrito nos astros.

O escritor é aquele que sabe que saber muito vale tanto quanto saber nada. É aquele que possui a consciência de que vidas se gastam, amigos se afastam e tudo muda em uma curva na próxima estrada. Há qualquer coisa californiana no meu coração, ainda que eu nunca tenha chegado perto da Califórnia. Há qualquer coisa noctívaga, ainda que eu tenha nascido perto do meio-dia. Transbordo a minha sensibilidade na demonstração absoluta da minha sinceridade e sou retaliado com a precisão certeira de um costureiro hábil. A agulha entra e sai em pequenas incisões e o trabalho, lento e bem feito, não deixa nenhuma ranhura na costura já pronta. Lançam o manto e me cobrem. Percebo-me na escuridão e sinto as pancadas. Observo, absorvo e aprendo, mas no escuro não me defendo. A cabeça de muita gente funciona de um jeito pequeno. Pudera eu ser mais sereno, mas sou como posso no momento em que posso e sinto nos meus ossos essa sensação como um dever. Faço o que for preciso, consciente de que algumas vezes vou perder. O escritor é aquele que sabe que nem sempre poderá se proteger, mas é também aquele que aprende que nem sempre vale a pena atacar. A lei da vida é que tudo muda sempre de lugar.

Respiração profunda em um interlúdio que faço em mim, assim como Tomas se perguntou, eu também me pergunto, tem que ser assim? Pego-me de cócoras afagando a gata e o cachorro. Nenhum ouvido escutou os meus pedidos de socorro. Aprendi e desaprendi, caí e me levantei, sofrendo com influencias sutis, próprias ou alheias, distraído com um ou outro perfume distante, devaneando com memórias distintas ou lastros falsos, seduzido por ritmos confusos em uma canção perfeita, induzido por algo que não vejo, mas que me empurra e me conduz, que me aproxima e me afasta, mesmo em uma simples caminhada, do meu próprio caminho. Aprendi que a gente só se aprende quando ousa existir sozinho, mas que a solidão demasiada é uma doença sem cura. Quem muito se afasta se desacostuma com a ternura. Quem muito se distrai se esquece das responsabilidades dessa vida tantas vezes dura. Nada pode ser tão leve. Nada pode ser tão pesado. Nos encontraremos em um lugar onde não há escuridão e podemos deixar o passado de lado, sem nunca o esquecer. O esquecimento é o primeiro passo para jamais nos aprendermos.

O escritor é aquele que existe atemporal. Um dia eu vou, todos vão, mas talvez meus textos fiquem espalhados em portais da internet e a vida de alguém se valha outra vez em algo profundamente místico que eu disse sem a intenção de dizer e não me lembro. A grande obscuridade dos verdadeiros milagres é que eles acontecem o tempo todo, mas somos incapazes de notá-los. Talvez eu já tenha escrito algo suficientemente poderoso para mudar uma vida e isso baste absolutamente, mas talvez seja tão insubstancial na minha visão que eu enxergue meus textos como um acúmulo de palavras torpes para aliviar meu coração pesado com a responsabilidade crescente de melhorar as coisas.

Que coisas? Ora, todas as coisas! Desde pequeno devaneio com um planeta sem maldades, porém a pungência da maldade é tão expansiva quanto à da bondade. Meu melhor amigo está certo quando diz que a noção da nossa malícia e potencial para fazer vilezas define a nossa postura principal de vida. Isso não quer dizer que não possamos errar, que não sejamos “maus” de quando em quando, muito menos que os nossos erros nos definem, mas significa que temos que olhar para a nossa vida como se ela fosse simultaneamente séria e cômica. Pender muito para um lado só é se desprender da noção de realidade e absorver-se todos os dias em um cotidiano imaginário é uma armadilha perigosa. Mergulhar em um devaneio sem fim faz com que percamos o fio que nos liga ao que existe.

Os perigos são reais, ainda que não soem como promessas de periculosidade. Há quem prefira viver em cenários hipotéticos e falsos, há quem ignore os males do mundo, os presidentes estúpidos, os vírus letais. Sei que faço de mim o que preciso, às vezes para viver, às vezes para sobreviver, porém não arrisco quem eu amo no meio do processo. Nem o cuidado absoluto garante qualquer tipo de sucesso. Nem mesmo mortes garantem o nosso apreço para com a vida. Toda vida passa e em algum momento é esquecida. Sinto-me como uma pilha estourada, vazando, viscosa. Sinto que, às vezes, só a substituição pode me salvar, mas não me substituo e assim a vida continua. Ajoelho-me e rezo por tudo o que firo e por tudo o que me fere. Oro pelos mortos, mas principalmente pelos vivos, pois por eles não há muitos que velem. Respiro profundamente e olho a vida. Vejo detalhes mínimos e inspiro e solto os meus desconfortos. A minha sensibilidade é aguçada, entretanto, creio de maneira retilínea que poucos fariam por mim o que eu faria por eles. Há maneiras de se preservar ou o único tipo de autopreservação é pela exposição completa?

A alma exposta representa nossa liberdade cantada. Alegro-me por coisas que sinto e por coisas que não sei dizer. Passo o café antes do lusco-fusco, sento-me e, enfim, permito-me relaxar. O relógio marca 17:37h e tenho compromissos, porém ainda não consigo cessar de escrever. O escritor é aquele que nunca se perde da escrita e que detesta veementemente se interromper antes do derradeiro final. Não, a vida não exige finais espetaculares, apenas finais bem escritos, histórias bem vividas, amores verdadeiramente amados. Eu recuo e me disponho a viver outros sonhos e correr por tudo o que sempre quis. Certa feita fiz pouco caso sobre ser feliz. Bobagem! A felicidade é tão importante quanto continuar sobrevivendo e da glamourização dos sacrifícios não pode advir nenhuma espécie de bondade ou resultado positivo. A felicidade é o melhor combustível para se sentir vivo!

Um escritor não se perde da escrita, mas muitas vezes nela ele se acha. Encontra-se consigo mesmo e as peças repentinamente se encaixam. As lembranças, as aventuras, os sorrisos, os perfumes, os momentos, tudo isso fica e permanece, mesmo quando a gente parece se esquecer. Esta tarde, tão quente quanto o restante do dia, morre devagar na promessa de uma noite mais fresca. Somos fugazes como o conceito de dia e nos deixamos morrer a cada sono para renascermos ou somos constantes e empedernidos, montanhas resistentes contra as adversidades? Deveríamos apostar mais nas coisas mais importantes que temos em nossas vidas.

Um escritor não se perda da escrita. Palavras se acumulam em linhas e mais linhas de quem tem a necessidade de rasgar o peito para abrir toda a realidade dolorida. Dolorida e colorida, pois onde há dor, há promessas da verdadeira beleza e do amor. Nenhum prêmio chega sem merecimento e ensinamentos obtidos através da dor nos ensinam por muito mais tempo. Crescemos, envelhecemos, sem nunca nos abandonar. O capitão permanece no navio até o dia que ele afundar.

Não sei que efeito novo a vida velha produz em mim, mas sei que me sinto apto a sentir coisas novas. Sei que o verdadeiro amor suporta toda e qualquer tipo de prova. Sei que sei pouco, mas fiquei rouco de tanto gritar minhas verdades. Outro dia desses sorri ao ver minhas frases em outdoors pela minha cidade. Sou a camisa pesada no varal, resistindo contra o vento violento. Tenho o peso das milhões de partes pelas quais sou formado e olho no olho de cada uma delas. Evoluo devagar. Converso com pessoas para entender mais sobre pessoas e busco uma compreensão profunda do que se faz pela sensação única de que deve ser feito. Vejo a espontaneidade. Vejo a malícia. Aproximo-me. Afasto-me. Torno-me mais inteligente, arguto, capaz, mas uma sonolência de ações se apodera de mim. Não quero me tornar inconsciente através de um processo intelectual e consciente que me faça permitir tudo. Não quero aceitar adaptar todos os meus comportamentos e me tornar alguém completamente novo através de uma hipnose dos sentidos. Tanta gente especula e só eu sei o que acontece comigo.

Um escritor não se perde da escrita. Escrever resume tudo o que ele acredita. Dia após dia, os escritores seguem batendo nas teclas e expondo suas opiniões e sentimentos, suas verdades e seus momentos, ansiando para que tudo isso baste. Tornar-me-ei frio? É preciso seguir em frente com coragem e brio. Um escritor é o arco e também a flecha. Lançado ao ar, ele sobre, desce, acerta e se conecta. Ele pode traduzir sentimentos, sensações, como poucos podem fazer. Quer alcançar o que raramente se alcança. Os cantos que conto traduzem diariamente minhas diversas mensagens de esperança.

A respiração cessa. Escuto um som distante. São os passos que se aproximavam no passado e com toda a sutileza do mundo se aproximam novamente. Como senti falta desse jeito de andar. Os saudosistas felizes sempre estarão com o coração cheio, mesmo que vazios de presenças físicas. Lacunas são preenchidas ou não, há tentativas válidas e esforços em vão. A força deste milagre faz com que eu me sinta exposto. Celebro-me por existir completo, mesmo que não me considerem completamente são. Transbordo o tanto de coisas boas que carrego no coração.

Deito na relva e observo as estrelas na escuridão profusa do céu noturno. Recordo-me de quando uma estrela singular surgiu no portão de casa. Não acreditava na força do Universo até ser forçado a crer em magia das estrelas. Antecipei-me ao que viria, sem saber direito o que de algum jeito eu já sabia. A sensação de amor é inigualável e os que vislumbram dessa sorte, precisam saber aproveitá-la. Não se vive mais de uma vez, assim, não há como verificar acertos e erros, exceto pelo próprio limite consciente. Esticar a consciência infinitamente para comportar tudo e transformar sua narrativa própria em um grito de liberdade, parece-me oportuno e instável. Qualquer um pode se convencer de que não há erros e de que tudo é válido. Isso torna realmente tudo válido?

Um escritor é aquele que se perde e se encontra nos próprios delírios. É por natureza um acumulador de martírios. Acumula-se também experiências e através delas nos moldamos. Temos a capacidade de nos transformar com o passar dos anos. Nota-se pelos textos e pelas experiências que é preciso continuar se expandindo. O mundo é quase sempre o mesmo, mas às vezes parece mais lindo. É quando os olhos, sempre distraídos, interrompem-se para cuidar das coisas frágeis. Nossos instintos geralmente fugazes nos tornam apressados, não ágeis.

Um escritor não se perde da escrita. Escreve para lembrar, escreve para esquecer, escreve para se manter afiado e levar ao longe a compreensão de que é possível seguir. O escritor é aquele que faz uma leitura aproximada do que ainda está por vir. Analisa-se o mundo e tudo o que acontece com a passagem dos anos. Como aceitar que o tempo perdido não foi um grande engano? Aprendemos exatamente o que deveríamos, ou seja, não há atrasos e nem antecipações. Como sobreviver sem carinhos e aglomerações? Há quem tenha perdido pessoas próximas sobrevivendo com frustrações e enormes lacunas. Sinto falta da presença do meu irmão, do cheiro do meu sobrinho e da praia das dunas. Ainda assim, celebro-me. Desta vez estou localizado em mim e isso é motivo de alegria. Não há segredos, mas calei meus medos ao me dedicar mais e começar a viver um dia de cada vez. O meu melhor me basta hoje e se não bastar aos outros, bem, eu posso lidar e conviver com isso.

Que me pungem essas ausências distantes? Tenho desenvolvido a minha ingenuidade corajosa. Tenho sentido que a Vida e a Morte vão me colocar à prova. Por vezes sou excessivamente severo, especialmente comigo. Funciono na base da lei do crime e castigo. Creio que tudo o que vai, volta, mas isso nunca me consternou. Antes acreditar de novo na vida, eu sei que vou ter que abrir minhas feridas e permitir entrar mais amor. O que devo fazer quando não sei bem o que fazer? Pedir conselhos aos mais estúpidos que eu? Entrar em uma reclusão prolixa de sentidos e ações? Será que os que se fingem cegos realmente protegerão nossos interesses?

Um escritor é aquele que não se perde da escrita. Os dedos procuram as teclas, mas há coisas mais especiais do que os textos. Quando minhas mãos se encontram com outras mãos, sinto que a vida não é mais um vagar a esmo. O coração acelera em novos ritos de ciúmes. Em um jantar à luz de velas estou a me render pela fragrância de um tipo específico de perfume. Tudo se cala quando o mundo deixa de existir ao redor. Pode ser só por algumas horas, mas a vida se torna muito melhor.

Um escritor não se perde da escrita. Escrevo por necessidade, por prazer, para não perder a doçura, para não perder o amargor. O ato da escrita é representado apenas pela escrita e tudo significa, mesmo quando não significa nada. Sinto que preciso de um tradutor de mim em mim. A minha língua-espada hoje se defende, mas pouco ataca. Há que se procurar estes meios termos ermos.

Confesso que por longos meses temi e me explicar sobre temores é demasiado prolixo. Lidei com tantos fantasmas, eu admito, ao ponto de recear me tornar um. O que garante que não somos o que não queremos ser?

A cautela nos auxilia nos direcionamentos. Por vezes sobrepujamos nossas próprias ações com atitudes desconexas de nós, completamente sem sentido. Há, porém, raros momentos de vislumbres magnânimos, celestiais e aqui existimos como seres sublimes. Somos punidos por nossos equívocos, mas comemoramos devidamente nossos acertos? Realizamo-nos com coerência? Sustentamos a convicção de que por muitas vezes já atingimos certos ideais que vislumbramos? Somos o que podemos ser e temos as características mais nobres que buscamos, entretanto, sem a validação externa, diminuímo-nos, ofuscamo-nos, apavorados com a nossa própria capacidade de brilhar. Tornei-me arisco quando verifiquei a quantidade de aproximações por interesse. Resolvi, porém, os outros não poderiam ser motivo para me desanimar. Aos outros o que é dos outros e a mim o que é meu. Respiro fundo e sorrio. Desejar a felicidade alheia é um dos instintos mais puros e nobres da alma e noto que não sinto ódio nem de quem me odeia.

A vida é um pasto verde que de repente se incendeia, como no quadro em chamas da fazenda na sala da casa dos meus avós, obra de arte que fez nascer a primeira poesia escrita em mim. Estranhos acasos da vida. Encontrei minhas salvações perto da última saída. Tudo acontece de um jeito surpreende e me inflo de coragem para tentar acertar. Aposto alto, mas sinto que estou completamente alinhado com tudo. Ando devagar, mas sei o que quero e o que preciso. Quando tudo me pune, não fujo, enfrento e se não estou pronto para enfrentar agora, sei que eu estarei em breve. Resisto, incertamente intrigado, certamente contente. Falhei como um mestre em falhar, mas reergui quando fiz um tratado de paz com meus problemas: resolverei um por vez. Não posso controlar o que esperam de mim, mas posso cumprir com o que eu mesmo espero.

Um escritor não se perde da escrita. Medos que não sinto me fazem insone. Sinto medo de um dia sentir medo da fome. Há um garoto em um porta-retratos ao lado do teclado qual agora digito. A confiança é um prato que se come frio, é uma frase que eu inventei e o menino gelado ouviu, mas será que nela acredito? Nenhuma conexão rápida me soa natural. Outra vez o que parecia uma brisa fez na minha vida um vendaval. Deixou-me em destroços e assim me tornei desconfiado. Há acertos que parecem feitos para dar errado.

Há outros lampejos de uma felicidade que chega em uma vida além. A vontade insistente de um beijo do qual não se pode mais viver sem. E subitamente vejo sonhos coloridos nos olhos vidrados dos peixes mortos. Fito os espaços brancos a serem preenchidos com a oração dos nossos corpos. Desejo preenchê-las. Quem disse que uma coruja não pode se apaixonar por uma raposa ou por uma estrela?

Sinto medo e amedrontado sigo na direção das coisas que me apavoram. Um escritor não se perde da escrita.

Há dias que brilho como o sol, mas em regra sou como uma esponja que absorve a sujeira dos outros. Um escritor não se perde da escrita.

Quando chove muito e o céu chora por mim, quando o sol queima minha pela apenas para me fazer arder, quando tropeço em um obstáculo que eu inventei, eu me lembro de que um escritor não se perde da escrita.

Assim, sigo firme e escrevo. Quando tudo me pune e sofro com milhares de ataques, eu fecho meus olhos brevemente e me recordo de que um escritor não se perde da escrita. Independente do sente, ele se adapta, é um mestre em seguir em frente e luta por tudo aquilo que acredita.

Antes de sair do quarto.

Hoje preciso ser sozinho. Reconheço-me em um estado profundo de torpor e uma profusão de cores anuvia minha mente. Perco momentaneamente a capacidade de distinguir e pensar. Desnudo de pudores, preconceitos e longe do vício das primeiras impressões, eu observo o mundo primeiro para depois observar e analisar a pequenez de minhas diversas versões.

Eu olho para o menino, olhe para o menino também, ria dele comigo, sustente seu mais afiado olhar de desdém. Agora observe o menino de novo e veja como ele absorve os detalhes, como se algo pudesse existir de significativo ou importante, como se a vida fosse mais que a concentração de egos em um jogo extravagante, olhe-o, vamos, por favor, ria comigo de como ele se debruça no parapeito da sacada e fita o brilho vespertino da cidade. Deite seu olhar mais pacífico sobre a figura do menino, que agora é adolescente, que amanhã será adulto e que nunca poderá ser velho, pois a velhice só chega para quem derrota a própria imaginação até que não possa mais imaginar. Olhe para o menino e extravase a dó que você sente, vamos, ele é completamente apaixonado por um mundo doente e, aos trancos e barrancos, não é capaz nem de cuidar da própria vida, mas sonha com um mundo decente e com sua capacidade em encontrar diversas saídas. Ora, pobre menino, como insiste se pode se reconhecer pequeno? Como desafia o destino com este sorriso sereno? Renda-se ao inevitável sabor do veneno e desista. Observaremos você beijar o chão e gargalharemos quando seus lábios cuspirem a terra vermelha, mas será tarde, o sabor da poeira vai repousar para sempre na ponta de sua língua. Lamentavelmente o menino se levanta todo sujo de terra e, sem lamentação, sem comiseração, sem perdão, nós todos rimos do seu instinto revolucionário que supõe ter o poder de provocar guerras.

Respiro-me e me situo, recuo dois passos tentando recuperar meu espaço. Que fazia eu ao rir do menino ou era eu próprio a rir de mim em uma insinuação banal de vitalidade? Eu era o menino ou o sujeito que gargalhava do menino ou ainda os dois coexistindo simultaneamente? Que penso na metafísica ou na astrologia se buscar significado é diretamente contra a simplicidade que deveríamos buscar para sermos felizes? De que adianta nessa vida criarmos raízes se não lidamos com cicatrizes? Que provoca esse desassossego sem fim? Puxo o ar e o solto depois em uma tentativa bem sucedida de recuperar o controle de minha própria respiração. Ergo a cabeça e no céu noturno vejo o voo de um gigantesco avião, que antecipo ser gigante por já tê-lo visto de perto. A visão engana e de longe a miragem o faz menor que a minha mão destra. Os espelhos refletem nossa imagem e nos viciamos em nos observar. Cuida-se tanto a aparência que o que deveríamos ver somos incapazes de enxergar. A alma implora por alimentos, mas tudo o que posso oferecer é vulgar.

Encerrei a reflexão para tentar cessar os pensamentos, aconteço, porém, contra todas as perspectivas. Não há conclusão nesta vida. Todas as histórias continuam sem parar e o tempo nunca para de passar, assim, os relógios dos ponteiros fictícios que criamos e hoje chamamos de real existem apenas para que sejam congelados quando nos despedimos desta Vida para o que chamamos de Morte. Alguns desejam a eternidade. A Eternidade é real ou projeção de uma vontade de júbilo duradouro? Nada na vida é constante. Nada disso existe e menos ainda do que as coisas que vemos e sentimos é realmente real. Quando fecho os olhos, imagino o quarto que vi por último. Lembro-me de quando meus olhos estiveram abertos e há uma imagem quase nítida. O frio que eu sinto é real como uma sensação particular minha, mas não o sinto como se ele existisse, exceto se vejo os outros vestindo garbosos casacos e roupas elegantes e resfriados coletivos. Não fosse os outros como comprovação do frio, eu não sei nem se poderia afirmar a realidade deste mesmo frio, ainda que eu morresse por hipotermia.

Veja, a vida segue e os corpos envelhecem e os anos continuam passando e nossas peles lindas um dia serão secas e feias e nossos corpos um dia serão murchos e só nos restará a qualidade de enxergar, mesmo quando não vemos, com a profundidade que o enxergar existe. Futuramente, quando o amanhã for o presente, você vai perceber como a dor molda nossa personalidade e como o que fazemos com a dor reflete nas nossas mais drásticas atitudes. Não chore pelos caminhos não percorridos, por favor, alegre-se pelas estradas seguras e pelos momentos bons e lúcidos e reais que viveu no que agora já é passado. Chore e tire isso tudo do seu peito, eu sei, eu também estou cansado, mas ainda penso nos outros, revolto-me, minha empatia complica minhas ideias e sinto uma espécie inédita de nojo de mim. Como vou conquistar meus objetivos se persistir assim? Como conviver com este asco insistente?

Queria poder me simplificar, mas não posso. Queria poder entender o meu lugar, mas sinto um frio de inverno que me faz congelar todos os ossos. Que há de errado em mim? Que há de errado neste desejo prolixo e demorado por solidão? Sozinho posso sanar o que grita em meu coração?

Um pássaro caiu do céu e o percebi morto entre a rua e a calçada. Penso na ave como penso na vida e me pergunto se o pássaro costumava voar sozinho ou acompanhado, se havia morrido caçando comida ou se já havia se alimentado, se deixou filhotes no ninho e, a complexidade da minha mente me enche de pavor e sinto uma vontade inenarrável de chorar. Não, eu não estou de luto pela morte do pássaro, era apenas um pássaro como outros milhares, estou cônscio, entro em estado de luto por tudo o que isso me significa e não deveria significar. Meu desespero é crescente e medito sobre os desesperados. O infortúnio é pensar sobre o que existe na vida quando deveríamos apenas vivê-la. A miséria do homem é só lembrar do que deixa como dívida e se esquecer de olhar as estrelas. Planetas acenam suas cores distantes para os minúsculos e deselegantes seres da Terra. Os corpos dos mortos retornam ao solo e se transformam em adubo e ervas.

Vejo o que vejo como vejo, mas fico atento para não transformar o que existe como coisa real em apenas um reflexo falso baseado nas minhas impressões pessoais. Sigo os movimentos felinos da gata preta e me sinto longe da capacidade de prever suas ações. Sou brevemente feliz por não saber o que acontecerá em seguida. Nenhum dos movimentos dela depende dos meus e celebro essa distância que há entre nós como um segredo ancestral que carrego no peito e na vida. Ouço a música e os ritmos e sorrio por não saber criar músicas e por não conhecer todos os ritmos. O que me escapa é o que torna feliz, assim, alegro-me com coisas que eu nunca quis. Fiz de mim um sujeito uniforme, que é retilíneo e corajoso, ainda que machuque pessoas pelas estradas desta vida. Quem sai impune? Não ajo com falsidade, pois a sinceridade se tornou natural e extravasa na ponta da língua. Observo o lusco-fusco sem sol e as janelas solitárias ornam com ruas que conheço como a palma da mão, mas que não são minhas. Eu sou mais do que as coisas que tive e sei disso e me regozijo por enfrentar minhas lutas singulares, não, hoje percebo que não posso e nem preciso vencer todas as lutas, posso caminhar junto, ainda que nem sempre deva, mas canso de restringir minhas capacidades ao que me é alheio e me incendeio por um futuro qual eu dependa exclusivamente de mim.

Deito-me no colchão que foi fabricado e no piso do segundo andar que foi construído e, enfim, deito-me na terra que estava e sempre esteve ali. Escapa-me o mundo, porém, sinto-me mais conectado com a Verdade da minha alma e sei que apenas minhas palavras podem alimentá-la. Procuro o rosto que tinha antes da criação do Universo e sinto que a resposta se aproxima a cada novo trecho, conto e verso, assim, escrevo-me pela liberdade que desejo possuir, escrevo, pois escrever é mais importante do que sorrir e agora anseio pela solidão desacompanhada e nem meu amor, nem minha imaginação, nem minha gata, nem meu cão, ninguém mesmo pode me confortar. As palavras soltas talvez possam. Não, nem mesmo as palavras e os textos. Fecho os olhos e sinto tudo me deixar.

Abraço a Verdade do meu mundo como quem olha para um vislumbre da Beleza original pela primeira vez na vida. A luz é muito forte e me cega temporariamente e fecho meus olhos, sem precisar imaginar uma beleza inventada pela minha poderosa imaginação. Nunca envelhecerei, nunca morrerei, pois nunca nem soube se algum dia estive vivo. Será que estive?

Escuto a Voz do mundo me resgatando da Escuridão e do Vazio e ela se parece com a sua voz. Sinto saudades, mas não quero ser resgatado. Confesso que bem correria para os braços que quero que me abracem, mas qualquer conforto é oposto ao que tenho mirado. Pelos outros, eu vou correr no sentido contrário. A minha missão encontra sua conclusão do outro lado. Desejo fervorosamente superar meu medo do escuro e juro que ainda nesta vida este pavor some. Juro pela honra jamais esquecida e pelo valor de meu próprio nome. Pois nomes são importantes, devemos recordá-los e não podemos perder a identidade. Repito e ecoa o silêncio que me afasta ainda mais da vaidade.

Não me finjo, mas talvez eu exista exagerado, demasiado, expansivo, estranho, prolixo, muito. Não me finjo. O cumprimento da missão não teria sentido, acaso minha missão fosse centrada apenas na autorrealização e não evoco esta palavra como mantras culturais e sim como o desejo de se impor, de vencer sozinho. Os que só pensam em seus umbigos nunca sabem para onde vão e, ainda que muitos destes sejam ótimos oradores, fervorosos nos discursos contra os contos de fadas, no âmago deles repousa contraditoriamente uma vontade púrpura de voar. Preciso me tornar quem eu nasci para ser e encontrar o rosto que eu tinha no momento da Criação. Necessito vislumbrar a Verdade qual existe além da verdade que conheço. Posso encontrá-la antes do fim? Claro, principalmente tendo a consciência de que o fim pode não ser exatamente o fim. Não sinto nada e em seguida sinto tudo. Diante da violência assustadora, eu permaneço mudo e pego impulso para o maior dos saltos. Quero combater a vileza, apesar dos meus vestígios de cansaço.

E sofro o sofrimento vulgar de bilhões, pois meu coração está despedaçado, decidido e dividido. Sofro internamente os ventos incessantes de furacões que surgem e não posso salvar todos e nem oferecer abrigo. Resigno-me totalmente e me vejo diante de uma situação fatalista qual não posso fugir, correr, evitar ou disfarçar. Essa é a vida e este sofrimento me faz ter a certeza de que não sonho. O vento amaina, mas não para, assim como a minha respiração.

Os movimentos dos animais, o constante correr das horas, as coisas frágeis, tudo o que foge ao controle, tudo isso existe como a representação simbólica e discreta da fragmentação divina da vida. Deus não fala em voz alta, mas os teístas seguem suas palavras. Será que o melhor presente divino foi a oportunidade de apreciar o silêncio?

Sinto o cheiro da chuva e sei que ele pode ser uma impressão do que eu gostaria que acontecesse. Só quando as gotas despencarem do céu terei a certeza se a minha impressão foi baseada na realidade fática ou apenas na minha vontade. Penso os pensamentos proibidos e me destoo dos tantos vulgares que cogitam uma espécie de limitação intelectual pré-estabelecida. Não compartilho meus hábitos e procuro a minha solidão. Hoje preciso ser sozinho. Hoje preciso existir sozinho.

Escuto um barulho interno e é o meu próprio corpo, existindo como coisa real, que me alerta da fome. Eu não como nada há horas e é preciso obedecer a uma ordem que surge de dentro. Poderia dizer não a mim, como muitas vezes já o disse, mas mereço um jantar discreto. Sigo aqui enquanto meus dedos não se descansam e eu teclo. Se tivesse disposição e não sentisse dores de cabeça, eu dirigiria para longe do meu computador e dos meus problemas. Tenho coisa nenhuma e coisa nenhuma me tem. Perco-me, enfim, até das ilusões do Mal e do Bem. A ilusão pode ser o primeiro dos prazeres, mas só é prazer porque nos deleitamos também com o que é falso. O que é memória, verdadeira ou falsa, pode se manter em nosso encalço. Canso-me de minhas impressões e de minhas próprias histórias e de minhas próprias palavras.

Quero vagar por aí como um anjo sem asas.

Quero que o mundo para chamar de quintal de casa.

Quero tudo, mas não posso ser egoísta e devo escolher meus caminhos.

Um dia ainda mudo, mas hoje preciso existir sozinho. Ligo a televisão e apago a luz antes de sair do quarto. Desço as escadas e este é o fim.

Um dia…

É necessário certo desprendimento intelectual para conjecturar hipóteses que sejam desconfortáveis. Olha, eu nasci neste lugar, mas não há nada que me prenda aqui, exceto os falsos aprisionamentos quais são obras ficcionais da minha tão criativa mente e aos quais me submeti. Olha, pois o mundo é grande e nele cabe quase toda ambição que tive, mas veja, há impossibilidades para o plano real das coisas, assim, conjecturo-me em cenários novos, diferentes, distante me vejo e reconheço o desejo, fora cresço, ainda distinto e decente, mas buscando outra vida e a realização de que posso encontrar o rosto que eu tinha antes da criação do Universo.

Sou o que posso e talvez amanhã possa ser mais por sentir que hoje ainda não posso ser exatamente o suficiente. Esta suficiência da qual falo objetiva unicamente o meu próprio agrado e a minha singular satisfação, pois como escreveu outrora Machado em Dom Casmurro, “se só me faltassem os outros, vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo e, essa lacuna é tudo”.

O alcance deles é vasto e o meu pequeno. Quando as luzes se apagam, eu me pego tremendo. Sou obcecado com mudar o mundo para melhor e com a dieta diária do consumo de chocolates amargos e ovos mexidos. Mudo algo verdadeiramente? Faço ou poderei fazer coisas boas? Há os que me dizem de maneira objetiva que eu já faço a diferença e, eu me pergunto, eles geralmente gastam o tempo lendo os meus discursos ou elogiam mais por uma questão de decoro social? Quem sabe eles não pensem “você é péssimo, terrível, horroroso, mas eu sou legal e por isso vou te incentivar, vá, continue tentando, amigo”. Pergunto-me se a avaliação de uma estrela é sincera, pois é desacompanhada de explicações e, agora me pego estático e sério. Os corações das pessoas são cheios de revoltas e mistérios, assim, vejo-me com um desconforto. Nunca posso querer condenar o meu coração pelas inconstâncias e contradições. O que vale no fim do dia é ser honesto, certo?

Supostamente H. D. Thoreau disse certa vez: mais do que amor, do que dinheiro, do que fé, do que fama, do que justiça, dê-me a verdade.

O que significava essa obsessão com a Verdade? Nossa verdade equivale-se ao nosso propósito e tudo o que fica entre a Verdade e o Objetivo é frívolo? Penso, assim, sobre minhas próprias paranoias e principalmente sobre o que considero essencial ao que me condiciona como ser humano. Poderia dizer que viveria sem o ventilador, sem o ar-condicionado, sem comer quaisquer tipos de carne, mas qual é o sentido de abdicar de algo que torna a vida mais prática? Essas coisas todas, essas que tornam a existência facilitada e prática, elas de certa forma se transformam em vícios para que nós deixemos de ver o próprio protagonismo que deveríamos exercer na Vida? Disfarçamos nossas intenções reais inserindo distrações significativas antes delas? O que é que insistimos em não ver?

Vivo como se eu tivesse sempre mais um dia e isso me incomoda. Consciente deste mundo no qual sobrevivo, eu busco não me esquecer da fragilidade da vida. Ontem mesmo era começo do novo milênio e não muitos meses depois a minha avó falecia. Que me comove na morte de uma avó que se preocupava em me preparar tomates com sal e não me comove nas milhares de mortes cotidianas? Que me torna alheio quando, às vezes, sinto que deveria mergulhar no sofrimento mundano? As ideias, os pensamentos, o que me move, é tudo inversamente proporcional ao que me socorre. Tenho gastado minhas reflexões na esperança inútil de que meus pensamentos se esvaziem e de que eu possa encontrar paz após tanto meditar. Encontro-me com mais perguntas e mais contradições e mais percalços. O que é que há de admirável no quintal do vizinho para que ele seja tão exaltado se tenho o quintal tão bonito quanto? Não, não sou eu que faço essas comparações, admito que meu quintal me satisfaz, embora eu esteja notoriamente atrasado para arrancar a promessa de matagal que reside naquelas tantas ervas daninhas, mas suponho-me na existência alheia e busco entender o que por vezes considero incompreensível. A inveja, o vil, o torpe, o maligno, eu já tive vontade de incorporar essas características, porém olho o mundo e o vejo substancialmente negativo. Quão conveniente seria eu se agisse em lapsos de fúria e me tornasse uma espécie de hedonista, um sujeito egoísta, que só existe como indivíduo e individualmente? Há coisas mais importantes que os prazeres. Há funções mais importantes que sentimentos. Há só uma maneira de seguir de peito aberto e com a cabeça erguida, mas há um preço que se paga para ser assim. Eu pago.

Vejo-os, quando não me vejo. Desligo-me da existência para fazer parte de outra coisa e olhar melhor para a minha missão. Como tantos nascem e morrem sem sequer meditarem sobre a missão? A vida pode decorrer tediosa, vaga e sem propósito? Percebo pela minha capacidade de observação que muitos são extremamente dedicados ao trabalho, ainda que o trabalho lhes pague apenas dinheiro e humilhações. Devemos permitir que sejamos humilhados? Aceitam o trabalho, mesmo quando o trabalho é inerente ao declínio, mesmo que notoriamente a noção de cumprir o dever te sopre para a beira de um precipício. Os que caem demoram para se recuperar e os que não caem, creem puerilmente que nunca irão cair, assim, o melhor alimento da ilusão é a expectativa de poder e o melhor alimento da alma é a expectativa da realização de todos os nossos desejos, por mais que os desejos se extravasem na esfera singular da existência e necessitem de outras pessoas para que sejam realizados.

Sei pelo que determinadas pessoas me abandonariam, pois outras me abandonaram. Será que sou capaz de abandonar todos?

Nenhuma dor pelo dano (Leminski).

Há outros mundos além deste (S. King).

Tem que ser assim (M. Kundera).

Desde a infância respeito meus espaços particulares e preciso de doses pontuais de solidão para não amargar a vida. Se tenho o que necessito, eu transbordo a minha doçura e não é incomum que dissertem e narrem por aí sobre o quanto me sentem e me enxergam realmente doce. Sou uma espécie de sujeito comum com ímpetos de heroísmo e desafio improbabilidades fazendo das minhas cenas presentes minhas novas evoluções. Persegui o pôr do sol em janeiro, quando voltava com quase todos os meus melhores amigos para Campo Grande. Dirigi sozinho na ida e na volta, enfrentei a chuva e a neblina e desci e subi várias serras. Ao final do percurso da volta, eu decidi que chegaríamos em casa ainda de noite. Persegui o sol pelo que pareceram horas, mas os minutos nunca haviam passado tão lentamente. Um dos amigos estava exausto e dormia, outro seguia quieto e discreto no próprio canto e havia um que estava ansioso e tenso com a iminente chegada da noite. A escuridão engolia a estrada e o carro branco persistia vivo com os faróis acesos.

Se sei de algo, eu creio que agora possa confessar, é que não sei de coisa alguma. Sou capaz de lampejos de brilhantismo e atitudes heroicas, exagero-me quando me dedico e me sinto inflado por uma coragem tão poderosa e real que me aproxima da Coragem original. Sei também que em diversos momentos sou deprimente, fraco e inútil. Não admito vulgaridades e quando sou vulgar, excedo-me na raiva que sinto por mim, pois há certas características comportamentais quais não posso tolerar no meu próprio ser. Encontro-me com o meu reflexo várias vezes ao dia, seja nos retrovisores ou espelhos ou poças d’água. A autoimagem deve me agradar e se me vejo sujo, eu faço questão de nunca mais enveredar pelos caminhos quais me sujei.

Outra vez me consterno ao me encontrar no meu constante estado soporífero. Perto de sentir o sono, não me permito dormir. O sono é vão e a vida ocorre nos intervalos de meus piores pesadelos e de meus maiores sonhos. Sonhei-me majestade e fiz mais sentido podendo proteger o meu povo. Sonhei-me mendigo e me senti feliz ao dividir minha pouca comida com o meu cachorro. Sonhei-me gota de chuva em queda livre e fui feliz despencando do céu para o telhado de uma casa. Não muito depois evaporei e da minha presença nada restou. Sonhei-me como um gato entediado que dormia dezoito horas por dia. Todos os sonhos me apraziam mais do que a penosa realidade de ser apenas quem sou. Todos os sonhos me faziam ser algo mais, algo que nunca serei.

Trabalhei e ganhei dinheiro, conquistei pessoas, fui amado e juro que até amei. Perdi dinheiro, perdi amores, trabalhei e fui demitido, trabalhei e me demiti, pediram para que eu reconsiderasse o meu pedido de demissão, eu reconsiderei, mas por um dia e me demiti, juntei dinheiro, juntei afeto, fui amado e desamado e, enfim, amei de novo. O relógio da vida conta os meus minutos e eu conto a probabilidade de me entregar aos meus impulsos. Sou insistentemente racional e não me permito ser tão vil. Nunca traí meus amigos e nunca os trairei, ainda que admita, humanamente posso carregar essa vontade que até hoje nunca carreguei comigo. Espero que nunca carregue, mas sei posso. Espero não fazer o mal, mas sei também que posso e que uma atitude muda tudo. Espero não me render, mas sei que a maioria se rende.

O poder é a moeda do nosso verdadeiro valor. O poder aquisitivo, o poder sedutor, o poder do carisma, o poder de mudar o coração das pessoas, o poder de receber tudo e dar tudo. Ter a consciência dos diversos poderes que obtemos durante a vida e não os utilizar para propósitos egoístas, viciosos ou viciados, talvez seja o verdadeiro teste. Qual é o seu maior poder e como você se utiliza dele? É estranho. Quando ajudamos geralmente esperamos a reciprocidade no momento de dificuldade. Se emprestamos, esperamos que quitem as dívidas conosco. Se não há barganha, o que resta? O que entregamos de graça? O que acontece quando somos cônscios de nossos poderes e de nossas capacidades plenas e, subsistimos e insistimos em uma vida na qual sobrevivemos com educação e humildade? O quanto a tranquilidade não é confundida com a passividade? O quanto não nos subestimam por termos a capacidade de escolhermos os nossos próprios caminhos? A maioria dos ciclos se repete, mas por que diabos eu deveria me permitir a viver uma vida cíclica se me falho em repetir nas minhas constâncias e inconstâncias? Mudo e me aceito, ainda que desconfortável. Minhas mudanças são discretas ou extravagantes, mas são minhas. Aqui grita o meu protagonismo. Sinto uma distância incalculável para com as pessoas que vivem a vida para servir outras pessoas. Vivo a dizer que devemos ter sonhos e ambições individuais, mas reconheço, na verdade, que não tenho o direito de opinar sobre existências, sonhos e objetivos que me são alheios.

Pisco os olhos e respiro com somente uma de minhas narinas, pois a outra não é funcional. Observo tudo com um interesse crescente que subitamente se transforma em desinteresse. Capto imperfeições na pele, detalhes nos sorrisos, gestos de ansiedade transparecendo pelas mãos, vejo a roupa marcada pelo suor e noto como me notam. Uns me subestimam, outros torcem o nariz, ainda há quem me ache bonito ou alto e, até mesmo bonito e alto. Sou chamativo e não me envergonho. Sou como sou e não seria diferente, mesmo se pudesse escolher. Quase todos pensam que eu não os vejo, mas eu vejo quase sempre quase tudo.

Só o hoje me interessa. Só o hoje existe. O passado foi o presente antes e o futuro só acontecerá também no presente. Acordo em novos dias e a minha vida é uma página em branco. Ainda tenho a juventude ao meu lado. Posso mudar tudo, posso fazer tudo, posso focar na missão. Posso devanear e aprender novos idiomas, morar em outros países, abarcar novas civilizações e abraçar novas lições. Nunca me busquei, mas talvez este seja o tempo. Nunca busquei viver a minha vida, mas sou inundado por instintos de coragem que me forçam ao protagonismo. Sou dono de mim e mereço escolher o meu caminho. Mereço ser feliz, eu sei, mereço o amor, eu sei, mereço boas pessoas e sou cercado por elas, eu sei também, mas cresce subitamente em mim a ânsia de realizar a missão.

E se o primeiro avião desaparecer no negrume da noite, eu viverei meu luto em silêncio.

E na manhã seguinte sorrirei sabendo que outro avião partirá.

A vida, eu hoje penso, é uma jornada pelos caminhos já percorridos, mas que ainda nos são inéditos. Só eu posso me livrar do próprio tédio e encontrar o meu propósito. Oh, vida! Escuta a minha voz nesta terça-feira? Dê-me uma saída para que eu seja sério até nas minhas brincadeiras e, assim, que eu nunca desista do que me faz ser exatamente quem sou.

Ainda busco o rosto que eu tinha antes da criação do Universo, mas de maneiras diferentes. Pego a chave do meu carro, que é meu porque eu o comprei, e saio de casa. Hoje não vou perseguir o pôr do sol, mas sinto que persigo o meu âmago.

Acelero o meu carro no final da tarde
Os sons do trânsito caótico me confortam
Alegro-me em conviver com a poluição sonora
Obedeço aos sinais e confio no amarelo
A vida é pelo risco, mas dentro desta máquina
Confesso-me muito mais arisco e cauteloso
A vida é o que fazemos dela e isso me inquieta
A vida é o que fazemos dela e sorrio

A vida é o que ainda farei dela
Sigo dirigindo e tendo paciência
Existo como muitos que dirigem
solitários dentro de seus próprios carros
O meu carro branco se parece com outros,
mas certamente é único no mundo
Dentro dele eu sou o motorista
E o carro confere a mim uma função
qual não posso exercer sem ele
Eu me pareço com muitos outros,
entretanto, sei que sou único
Ouvi sobre o Bem e o Mal
E certa feita não vi bem e mal

Não compreendi a praticidade
desta fútil e insensata divisão
Conheci pessoas reais mais mentirosas
que o próprio Pinóquio e jurei
reconhecer o Gepeto vendendo doces em um bar
Ouvi sobre o Bem e o Mal
Ouvi sobre os ensaios de vileza,
mas não vi mais coisa alguma
Vi apenas outros carros
E outros motoristas e outros passageiros
A maioria agora veste máscaras
e isso tudo não é uma metáfora cafona
Vejo uma réstia do pôr do sol
e me recordo de que em janeiro o persegui
Se eu fosse o mago Howl
talvez até pudesse o engolir
Sonho cadente e secreto que sonho
qual sigo sentado no banco do carro
O objetivo ao que me proponho
pode ser difícil, mas nunca caro
Resisto nas hipóteses e nos fracassos
Persisto como quase ninguém persiste
De cabeça erguida, apesar do cansaço
Sinto falta do trabalho e do dinheiro,
mas não tanta falta de mim
Existia àquela época outro jeito?
Sim, não, tanto faz, mas tinha que ser assim
E devaneio-me em jornadas novas
Sou um andarilho sem cura e sem causa
A salvação não é para todos?
Podemos encarar a vida como um jogo?
Encontros como este são cada vez mais raros
Veja bem do que vai abrir mão
Não espero retornos, assim, nada retorna
Complico o simples e simplifico o complicado
Preciso aprender a falar japonês o quanto antes
Sinto vontade de beber água e cerveja
Sinto vontade de compartilhar minha intimidade,
mas nunca desejo dividir meus hábitos

Afaste-se e me deixe em paz
Queria mais café com a chuva caindo
e a paisagem me soou como um quadro
O deserto do Atacama é o mais árido do mundo
E ainda assim nele há vida
Não importa o quão você tenha ido fundo
há sempre uma saída
Tudo pode ser,
desde que tenha paciência
Tudo pode acontecer,
desde que lide com as consequências
Isso é a vida ou é um novo sonho?
Espero comer chocolates amargos ao final do dia
Espero estar em Londres ou em Londrina ou em Lisboa
quando o meu cansaço me roubar a consciência e a subjetividade
Espero ficar aqui onde estou seguro
Espero ficar longe onde estou desprotegido
Espero tudo e admito que não espero nada
Confio a vida nos pneus do meu carro e no motor
Confio que há coisas tão importantes quanto a Felicidade e o Amor
Preciso continuar insistindo neste Amor
Preciso perpetuá-lo, não importa como,
Pois vive em mim o desejo de tornar o mundo mais bonito
Enquanto não encontro soluções medito dentro de meu carro
Dirigindo para um rumo certo ou para o deserto infinito
Quando tudo se perdeu e

me notei distante do que queria
Sussurrei toda minha esperança

defronte aos medos
Um dia.

Cai a noite.

Cai a noite.

Tiro a areia da louça, passo rodo no xixi da gata, lavo o cão com a bucha. O dia foi aceitável, certamente produtivo, mas não pude me livrar da bagunça. Escovo os dentes com o creme de barbear e amaldiçoo o miserável que teve a ideia de fazer os dois produtos com o mesmo aspecto, afinal, quem é que quer ler o que está escrito em uma pasta de dentes?

Revolvo-me para pensar, mas havia já pensado antes de revolver e a hipótese contemplativa que existe no exercício de olhar para dentro desaparece quando só vejo o que existe fora.

Tiro a areia do cachorro, lavo a gata com a bucha, passo o rodo na louça. Entretido com as catástrofes da minha desatenção, presto-me ao serviço inútil de me olhar sem realmente me ver. Gasto o meu tempo sem fazer nada prestativo. Procuro palavras para me ofender, mas não são proporcionais os adjetivos.

Revolvo-me, assim, repentinamente, pois imagino que seja o modo mais fácil de conseguir. As facilidades sempre escoam por entre os meus dedos, desfazem-se repentinamente centenas de segredos e o principal deles é sobre o meu fracasso. Falhei em tudo e nem mesmo o meu conhecimento sobre o conteúdo remove de mim o nariz de palhaço.

Este espetáculo circense parece infinito. É necessário que me ridicularizem para que eu tenha acesso ao meu lado mais bonito? Faço a barba só com uma lâmina velha e água gelada. O sangue que caiu na pia não significa nada. O talho no meu pescoço me traz de volta ao meu próprio corpo. Estou dividido e separado. Calado transmito minha mensagem para grandes públicos. Lento nos primeiros atos, eu contra-ataco de súbito.

Acerto o café e o bebo calmamente. A vida faz sentido, mesmo quando a gente se sente dormente. Hoje eu não me perdoaria acaso tivesse errado o café, e, cônscio deste fato, eu não me falhei. Desconfio de tudo, exceto das coisas que amo e amei.

Olho ao redor e constato: venci o dia.

Tiro a areia da gata, passo rodo no xixi do cão e lavo a louça com a bucha. O canino ronca deitado ao lado da geladeira. A gata dorme o seu sono leve perto do filtro de água. Lavo a louça como se deve e espero entrar no meu próprio estado soporífero. Escovo os dentes com a pasta de dentes. Guardo o creme de barbear. Deito-me na cama nova com travesseiros novos.

Cai a noite
e eu caio no sono.

Antevisão e Cansaço de Fim de Mundo

Estava meio trôpego, instável, qualquer um poderia notar. Um instante era o bastante para se lembrar do que houve antes e simplesmente deitar e chorar. Se choro, pergunto-me, a razão das lágrimas. Se me demoro, é por entender tanto de lástimas. Se ainda estou parado há de ser por não ter virado a página.

Qual máquina metafórica reside dentro de mim? Que é que me traz ao paladar este gosto de fim? Deve existir um parafuso solto, uma engrenagem torta ou qualquer funcionalidade mecânica quebradiça. É que às vezes vou seguir e sinto que volto, algo me corta e os meus pelos se eriçam. Estático, prostro-me feito bicho selvagem. Enfático, aguento o peso da abordagem. Crescido como sou, eu nunca sou quem agride, mas a vida me tornou alguém pronto para o revide.

Batalha de egos travada no vale do fim do mundo. O sujeito está equivocado, porém, faz da falsa razão o seu escudo. Como se mede o alcance do orgulho? Provou seu ponto, mas perdeu a argumentação, como se não fosse o suficiente, foi em frente e promoveu a retaliação.

Copiosa marcha para o mistério da morte no vale das sombras. Afrontosa arrogância em baixa, vitupério proferido por esporte, é melhor que se cale nas caminhadas longas. Que tenho tão insistente que tanto me incomoda se não tomo boas ações? Que espécie de regente me vejo nos reinos dos sonhos translúcidos repletos de emoções?

Há pessoas no deserto. Não sou mais esperto que elas. Há pessoas congelando de frio sem cama, teto ou janelas. Não sou mais miserável que elas também. Há pessoas sendo assassinadas. Quanto é que me perseguem? Certamente jamais me atacaram por causa da minha cor de pele.

Shakespeare acreditava que o problema dos homens era a inconstância. A minha aposta é que o cerne das catástrofes seja a arrogância. Fosse eu mais feliz em sonhos, abandonaria o plano físico para dormir e hibernaria durante o inverno. Seguissem os dias enfadonhos e após a invernia transformaria meu descanso temporário em eterno.

Cansaço de fim de mundo. Sorri, embora meu coração chorasse, antevendo a minha despedida de tudo. Vejo-me de fora, revolvo para dentro. A vida é agora, embora, quase todos se percam do presente momento.

Crônica Pregressa #2

Gole de amor

Há uma frequente subvalorização em estar sozinho.

Antes de tudo, deixe-me ser bem claro sobre o que eu quero dizer. Torço para que você tenha pelo menos cinco bons amigos e que estes sejam tão preocupados com você que refutem o próprio ego.  Espero que respeitem suficientemente a sua solidão para entendê-la, mas que jamais se façam de cegos. Honestamente torço para que não se esqueçam de que você também precisa de companhia. Que esses cinco possam te alcançar, ainda nos momentos em que você pareça impossivelmente distante. Que estes cinco, ao menos eles, possam definitivamente arrancar o mais difícil dos sorrisos quando o mundo se apresentar estranhamente cruel, maldoso ou inexoravelmente injusto.  

Todos os clichês também surgem de experiências e não há senão conselhos baseados nas coisas que vivemos. Há quem ache que o generalista ou o amplo é sempre absurdamente vago, mas é como se desconsiderassem a repetição das experiências. Você acredita que uma experiência perde valor por acontecer de maneira repetitiva? Acha que algo extremamente parecido invalida o que acontece depois? Toda experiência é nova. Você gasta sua inteligência na tentativa de arranjar provas e desgosta de quem é capaz de refutar essa versão de qualquer coisa representada tão inteligentemente por você. 

Veja, é preciso saber ser e estar sozinho. Ontem mesmo lá por volta das 18h15 fui dar uma volta e mais tarde peguei um cinema sozinho. Cheguei poucos minutos antes da sessão. Aguardei, vi o filme e saí. Eu estava vestindo uma bonita camiseta com uma dupla referência: O Pequeno Príncipe e o Senhor dos Anéis – Le Petit Hobbit. Sinto, porém, que dificilmente alguém me notaria. Dei de ombros como quem não liga tanto, mas ainda assim sei que preferia ser notado pela roupa. Há nisso algo de errado? Não encontrei rostos conhecidos no passeio e é bastante improvável que mesmo quem saiba meu nome pudesse entender minha camiseta. Existi ali por aproximadamente meia hora. Olhei com ternura e carinho para o mundo que acontecia. 

Andei pelo shopping sozinho. Resolvi que merecia comprar um café, um livro e um chocolate. A ordem que fiz a aquisição das coisas pouco importa, mas eu senti que me aproveitei. Olhei algumas pessoas nos olhos, contemplei a correria nos pés apressados de quem parece estar sempre atrasado e notei ainda a estranha e sem explicação calmaria que os apaixonados de mãos dadas sentem quando observam as vitrines das lojas. Há quem possa pagar pelas coisas caras e há quem sempre as vislumbrará, mas vejo que se unem silenciosamente na concordância que R$ 430,00 é muito dinheiro para uma blusa de seda com o desenho de um tigre. Bebês se divertiram e se irritaram sem qualquer motivo aparente, mas nos risos deles o universo se renovou. O que me leva a crer que eu também preciso de renovação? O que os bebês nos ensinam?

Meus sonhos são tão inflexíveis que às vezes duvido que a utilização da palavra sonho seja o termo correto qual deveria empregar. O que me faz crer que eu posso levar amor ao coração das pessoas? Que espécie de instinto absurdo me faz crer que sou capaz de tão grandioso feito se na maioria das vezes eu consigo falhar mesmo nas missões próprias e solitárias que possuo? Não sou um rio, mas rio, sinto-me mais leve e fluo. 

Quando não sonhamos, creio, alimentamo-nos de sonhos alheios para preencher a lacuna própria da existência que exige que se sonhe. Quem aceita existir sem ter para onde ir? Quem é que insiste em viver feliz em uma realidade tão pungente? Quem é que crê em um mundo no qual o Tempo parece tratar tudo como um jogo e que tudo o que te cerca está doente?

Honorável revelação do destino: o meu futuro são meus sonhos de menino. O gato disse que qualquer rumo serve para quem desconhece o caminho. Basta que continue andando e logo chega a hora da colheita. Nem tudo acaba como esperamos, mas certamente tudo se ajeita. 

Haverá um tempo em que os corações não poderão quebrar mais do que já estão quebrados. As lágrimas secarão e haverá pessoas esperando por você. Provavelmente serão poucas, mas elas estarão ali apenas por você. As tempestades vêm e vão. Você fica. Lembra da minha metáfora sobre tinta e coração? Você diz que não, mas eu sei que no fundo acredita. Os homens são tão pequenos e sabemos que haverá um tempo melhor a seguir. Quando a tempestade passa e as nuvens se vão, enfim, encontra-se uma o sol à luzir.      

Veja, eu sou um sujeito um tanto quanto criativo. Meus desejos práticos são coisas das quais eu sei que nem mesmo preciso. Mataram o amor, mas eu voltei a acreditar. Ainda que não sinta o mesmo, ele parece me cercar. Com uma espécie de preguiça ancestral que me obriga a ser hoje melhor do que ontem. O que é que sei dessa vida que nada sei? Ouro, prata e madeira significam a mesma coisa? Quais os metais mais valiosos? Quais os corações mais valorosos? Do que sou feito?      

Alguns estão desistindo. Diga para mim que você segue firme. Eu só preciso saber que você vai continuar.      

Outros de nós, pertencentes aos melhores, renderam-se antes da quinta noite de sofrimento e estão entregues ou partidos. Você é como eu. Somos diferentes. Nossos corações são feitos de material mais forte que o vidro.      

Ainda há quem fracassará e dará meia volta para causar tormenta infinita. Não os odeie. Se puder, entenda-os e seja sutil. O interno não aguenta tinta. O inverno torna a alma mais sucinta. Ninguém é tão grosseiro assim. O valor é relativo, mas pode acreditar em mim. Todos têm valor.      

Até a alma mais cansada, suplica perto do fim da estrada, por um mero gole de amor. 

Queremos pessoas prontas

Queremos pessoas prontas, eu me peguei dizendo, sozinho na cozinha de casa. A simplicidade da frase me causou espanto e notei que era como dirigir com o vidro do carro sujo por meses, até o dia em que se nota que sim, sempre existiu tempo para jogar água e limpar. Era tão fácil desde o princípio, porém, ainda assim, o vidro ficava sujo e eu corria mais riscos enquanto dirigia. Findo este paralelo metafórico entre vidros, sujeiras, pessoas, atando-me agora ao que prontamente me fez começar este texto às cinco e quarenta e cinco da manhã. Queremos pessoas prontas.

Por natureza, por essência, viciamo-nos na facilidade e criamos bloqueios para os outros, como se um muro erguido impedisse apenas o contato do outro lado. Fingimos, em regra, de maneira incompetente, que a maldade do mundo não nos fere e nem nos alcança. Tudo é tão ridículo quando você aprende, enxerga e finalmente vê. Os velhos quase sempre se recusam a se envolver com os novos, principalmente pelo medo de que toda a sua sabedoria e experiência possam sofram com o questionamento fervoroso da juventude liberal. Os jovens, vocês sabem, desconsideram o velho, pois ignoram o passado de seus avós, de seus pais, do mundo e até os próprios. É mais fácil tratá-los como coisas do que como pessoas, é mais fácil personificar a frieza do fingimento sobre coisas que aconteceram, mas é melhor fingir que não, do que sentir e encarar o endurecimento pela dor que traz a lição. Quantas mentiras foram contadas, quantas verdades escondidas, quantas vezes, apenas talvez, você poderia ter sido mais sincero e deixou outras pessoas preocupadas? Quantas vezes se entorpeceu para se sentir justiçado? Para que tantas mentiras? Porque queremos que todos nos vejam como pessoas prontas.

Temos o direito e o dever de cometer erros, eu disse e esperei pelo questionamento seco e cheio de incredulidade do meu melhor amigo, mas era óbvio que ele ainda estava dormindo. Anulamos nossos erros tentando normalizar todo tipo de situação. O bom senso alheio morreu e é mais fácil fingir que o nosso também. A maioria só luta quando a vitória é certa. Somos esses seres patéticos? O que é essa ânsia fervorosa por errar, por sair, por cair na cama de uma pessoa estranha, por se sentir bonito, por ser sentir querido? Errando das segundas aos sábados para pedir perdão aos domingos ou sequer se desculpar, pois temos o direito e o dever de cometer erros. O que é essa insuficiência de sentir que faz com que nós provoquemos nossos próprios sentidos? O que é essa carência que dita nossas vidas? Que falta de sentidos faz com que a gente passe a desejar sentir mais para que as coisas sejam sentidas como, em teoria, devessem ser sentidas? Secretamente alimento uma vontade de vingar ou ser vingado? Por favor, veja bem, olhe como são, às vezes, obscuras nossas motivações, por serem cruas e equivocadas na essência ou por serem simplesmente invisíveis aos nossos próprios olhos.

Nietzsche tombou no chão do quarto estranhamente ao lado de Maquiavel e de frente para Machado. Empurrei-os para a pilha de descartáveis, doarei, é claro que doarei, esses homens quais não posso estudar ou conhecer, Brás Cubas, porém, fica. Prontos à minha esquerda, Leminski se levanta ao lado de Murakami, Sabino e Pessoa, mas só Caio Fernando Abreu entende um pouco do meu sentimentalismo exacerbado. Tolkien, Clive Staples e King zombam de mim, mas Neil e suas coisas frágeis parecem se compadecer de minha confusão. Será que eles também queriam pessoas prontas? Olho para a nona reunião vermelha, o RG, quatro e cinquenta no preço, seis e doze na hora, tomada, fotos, quarta estação, chaveiros, piscinas, mares, Paris, lugares, barbudos, loiras da odonto, seduções fáceis, sedutor irresistível, ego, eco, extrato bancário, salário, desemprego, revezes, não quero te machucar, nem sempre é força, cabeça erguida, fone, dores, poeira, outro dia a gente tenta, flores, cão, gata, bênçãos irlandesas, cartas, amuletos que dão sorte, mas que os ingênuos não creem, pois pensam que crença é uma questão de meta. Não veem subidas, descidas e curvas, como se o mundo fosse uma linha reta. Que é que te faz ser você? O que alimenta teu desejo por pessoas prontas se ainda está assim longe do que prometeu ser?

De minha parte, eu hoje vejo que não procuro pessoas prontas, embora tenham buscado isso em mim. Daniel, você é perfeito, mas você não comprou sua casa, eu sei, eu também não comprei a minha, mas é que você parou no caminho, não, eu não paguei o meu carro, sim, você pagou o seu, mas eu não quero entrar aí, a economia vai mal, olha, eu sei o quanto pode parecer ridículo, não sabe, você é idiota, você vai me xingar, eu acho que talvez eu também tenha parado na metade do caminho, não, isso não me faz idiota, eu não quis dizer idiota no sentido de burra, apenas idiota por se permitir ser utilizada por diversos titereiros e dançar a canção do mundo pela voz de outros e pelas mãos de outros, eu ouvi e toquei e posso dizer que sua voz é bonita e suas mãos também, mas se você não acredita talvez eu possa cantar com a minha voz feia e você aprenderá então que pode compartilhar a vida com quem realmente te olha e te vê, eu sei, depois disso, confiar nos outros fica mais difícil, alguém que quer nosso bem de verdade é uma sorte profunda ou sinal da existência divina, pois o egoísmo dita o mundo e o mundo dita a vida, e esta vida, creia-me, ela passa rapidamente e meus livros chegam no próximo mês, mas não era em maio ou mês anterior, é que eu fiquei fora de mim, recuperou-se, sim, e é isso, sim, é o que é, como deve ser, um brinde ao que nunca foi, foda-se o passado, um brinde ao que será, isso é algo qual posso brindar, nossas melhores histórias são sempre as mais escrotas, não sei dizer, você é incrível, parece estranho, você está bem hoje, não sei, mas acho que sim, eu tenho ainda todos os sonhos do mundo em mim, isso é legal, cara, siga firme e sem exageros, como salada sem tempero. Está liberado ter alguns devaneios, mas olhos fixos na estrada. Quem não entende a demora exagera no acelerador e no freio, mas você não se esquece de que o importante é a chegada. Eu sei, você está com a razão, obrigado, eu que agradeço, cuidado com crises de ansiedade. O que é agora, eu não sei, ela é inteligente, eu sei, você sabe que eu sei, que bom que nós dois vemos, e entende ela sobre cores, perguntou (perguntei-me), ela é um arco-íris, xará, eu sei que ela está no caminho, pote de ouro para vocês, é o meu palpite, minha aposta, ela não é uma pessoa pronta, tudo bem, eu não sou pronto também.

E continuo, embora com menor incômodo, com a frase flutuando na minha cabeça. Queremos pessoas prontas. O meio do caminho pode ser difícil e muitas pessoas e aqui, eu honestamente digo sem medo de parecer melodramático, muitas pessoas irão te deixar. Se você é alguém de sorte contará com muitas pessoas acenando em sua despedida na entrada da caverna escura e estreita do autoconhecimento. Uma vez dentro da caverna, você aprende ou morre, mas não há vivalma que agora o socorre. Se você se entender, compreender seu papel no mundo, vai se machucar, mudar um pouco, provavelmente vai cair de joelhos e cotovelos, mas se levantará, ainda que sangrando. Eu acredito em você. Uns poucos estão aqui comigo do outro lado te esperando, quanto tempo faz, você não faz ideia, mas não importa, onde estão os outros, olha, você bem sabe e dar a notícia não é algo que me cabe, mas eu e estes podemos lhe dizer que eles tinham outros compromissos.

Queremos pessoas prontas, eu digo mais uma vez, agora puramente por reflexo, mas emendo outras frases e recito: queremos pessoas prontas quando somos arrogantes, assim, mergulhados profundamente nesse ilusório senso de superioridade, pensamo-nos melhores do que os que estão no caminho, andando muitas vezes nas proximidades, lado a lado. Ignoramos o fato de que estamos em constante evolução e nos vemos maiores, não por sermos mais vastos ou largos, mais inteligentes ou rentáveis, apenas por um vislumbre tolo de grandiosidade quando se escapa a compreensão de que a genialidade não cabe em espaços apertados e de que não existe nobreza sem humildade. Na tentativa fútil de sermos diferentes daquilo que sentimos, muitas vezes nossa pose se torna a algoz da nossa personalidade e da nossa voz. Praticamos tanto a nossa pose que ela se torna alimento para os que não encontraram sua própria voz. O currículo conta: idiomas, países, inteligência artificial robótica, politização, diplomas, marca do cigarro, valor do carro, coleção de relógios. Viciados no ópio de experiências alheias, escravizamo-nos para quem quer que nos pareça admirável ou superior desconsiderando muitas vezes nossas próprias ilusões no processo de admiração. Se tivermos sorte, enxergaremos nós mesmos de fora e correremos para dentro, como uma criança muito nova que passa horas longe da família e se pega na urgência de estar em um lugar incontestavelmente seguro. Quando voltamos a nos enxergar somos qualquer coisa, exceto nós mesmos. Os perigos da incontrastabilidade. Adorna-se o externo para que possamos brincar de sermos quem não somos. Sabemos… o interno não aguenta tinta.

Respiro profundamente e sinto uma dor no peito, dane-se, não sou cardíaco. Todo mundo diz que na família eu deveria me preocupar apenas com a memória, pois nossas cabeças não são muito boas ou talvez sejam exageradamente boas, acho que alguns são até cabeçudos. De toda forma, cabeças desgastadas em criatividade, esforços e soluções talvez requeiram melhores cuidados. A maioria é, geralmente, estúpida, assim peço sussurrando, baixinho, para que você tome suas precauções e faça se aproximar da sua vida quem realmente goste de você pelo que você é. Esqueça a ideia de manter todos. Não é possível. Andar ao lado de uma “pessoa pronta” não te faz pronto, andar com alguém que ama não te faz amar e andar com alguém que se dedica a Deus não te faz teísta.

“Mera mudança não é crescimento. Crescimento é a síntese de mudança e continuidade, e onde não há continuidade não há crescimento”. C.S. Lewis.

Bocejo e medito sobre o quanto ainda não dormi. Preciso mudar e crescer. Leio uma oração irlandesa rimada em inglês, sinto fome e bebo a quarta xícara de café, sem açúcar, claro. Passa pela minha cabeça ocupada e esquisita que talvez eu devesse ler, mas não quero e estendo o relato além do que o leitor pede. Queria que alguém me ligasse e oferecesse carona para uma cafeteria, bem agora, às 8h04. Os olhos se fecham, inclusive o esquerdo e o inchaço diminuiu. A fome faz doer o estômago. A vermelhidão nas escleróticas é mau sinal. Devo dormir, não consigo, tento, falho de novo, mas decido sair do computador. Talvez eu nunca mesmo seja uma pessoa pronta, mas tenho aprendido tudo sobre eu mesmo, bons livros e amor. Em todos os momentos possíveis, cônscio, eu sei e sorrio, pois minha alma não se esconde. Um dia essas pessoas prontas vão acenar para mim.

Bem de longe.