Otário

            Engana-se quem pensa que é impossível assaltar um otário logo pela manhã. A aurora favorecia os êxitos.

            João Miguel subiu na duna mais alta para observar atentamente os transeuntes, porém não parecia interessado neles, afinal, nem eram tantos assim. Seu ar era despreocupado e sua face não demonstrava a mínima intenção do que pretendia fazer. Seus olhos grandes e agudos encaravam o esverdeado mar de Cabo Frio. João sempre se convencia de que era um grande ator, embora ninguém nunca tivesse lhe dito isso especificamente, mas entender o que se passava em seus pensamentos era algo especialmente complicado, principalmente pelo fato de que agia costumeiramente por instinto e ignorava grandes reflexões. Passou a faca da mão destra para a canhota em gestos distraídos. Havia a utilizado o instrumento vezes demais para não saber como agir e reagir. Cada dia que passa chego mais cedo na praia. Não consigo mais ficar em casa. É claro que não consegue, seu otário, cale a boca, gringo. Vai fazer alguma coisa? Foi o que eu pensei. Cale a boca, otário. Isso… me obedeça. É melhor chegar cedo do que tarde. Deus ajuda quem cedo madruga, mas está muito cedo. Não sei se adianta chegar aqui tão cedo. Não sei se…

João olhou para o relógio que marcava 5h57 e refletiu que os cidadãos com jornadas ordinárias de trabalho geralmente começavam às sete ou sete e meia ou até mesmo às oito horas no período matutino. Era justo categorizar e estereotipar ladrões como indivíduos que queriam uma vida fácil se alguns deles se levantavam antes de todo o resto? João riu e se lembrou de não mostrar muito os dentes. Sua presença era discreta, mas seu sorriso era perfeito e brilhante, luzia, assim, sorrir era um gesto impossível. A mãe e a irmã com os dentes tortos e amarelados se enraiveciam pelo que parecia ser um capricho de Deus para o filho caçula que nunca havia ido ao dentista. Os olhares atentos continuavam sua função e em movimentos lestos, João acompanhava a movimentação pela areia. Definitivamente os velhos com suas panças redondas e seus peitorais grisalhos e cabeludos eram predominantes em quantidade àquele horário na praia. Muitos iam na direção da Praia do Forte, quase todos, na realidade e, apenas uns pouquíssimos percorriam o sentido contrário. João estimava que uma centena de idosos já tivesse percorrido a praia logo cedo, quase todos homens, bom, as mulheres estavam certas, eram alvos relativamente mais fáceis e deveria caminhar pelo calçadão onde se avistava viaturas da polícia com notável periodicidade. Elas podem reagir, você bem sabe, quase se fodeu por causa disso, você sabe, é melhor não tentar fazer tudo o que você vê os outros fazendo, otário, você não passa de um otário, mereceu o chifre que levou, otário, segure a onda, o problema é que você é frouxo, cuidado, tome cuidado, não, você só precisa ser um pouco mais vingativo, sim, mais resoluto e duro e irritadiço. Cada dia que passa chego mais cedo na praia… estou pensando muito. Desse jeito vou ficar com dor de cabeça. Preciso parar de pensar.  

Outra vez o relógio: 6h25. Um grupo de mulheres passa e mais alguns velhos em seguida. João reflete que Cabo Frio é realmente uma cidade de aposentados e não fosse pelo mar, a cidade certamente cheiraria a naftalina, pelo menos em baixa temporada. Obviamente em alta temporada qualquer cidade atulhada de gente cheira a suor e lixo. João sorri por alguns segundos, mas retoma o semblante sério com a aparição de seu alvo. Um homem jovem com o celular na mão, erro de principiante, um típico otário dando mole. Guarda a faca no bolso e deixa as mãos segurarem a alça da mochila. Sempre leva uma mochila para o caso de furtar algum objeto grande, mas há só uma garrafa d’água dentro dela. João nunca se planeja e a mãe costuma lhe dizer que isso é um erro grave e que será sua grande ruína, mas com uma espécie de birra insistente na cabeça, João desliza pela duna de areia e desce subitamente, sem pensar, sem se preparar e apenas improvisa no que pretende ser outro assalto.

– Oi. – João diz e posiciona o corpo de uma maneira que dificulte a reação de fuga do homem. Será que ele é desses que foge ou que encara?

– Oi. – Resposta seca. Não é um bom sinal. Já está desconfiando das minhas intenções. Talvez eu devesse ter sacado a faca antes.

– Meu nome é Davi e o seu? – A desconfiança cresce. João pressente que será mais trabalhoso do que pensara. Não conseguiu reparar tão bem no modelo do celular. A tentativa de furto com a possibilidade de confronto vale mesmo o risco? O rapaz é mais alto e musculoso que ele.

– Victor. – Isso não vai nada bem. Tenho que resolver isso logo. Já consegui muito tempo sem que um idoso aparecesse.

– Você é daqui, Victor?

– Sou.

– Daqui mesmo? Daqui?

– Daqui mesmo. Moro perto daqueles prédios ali, viu? – João não se virou. Victor não parecia ser o cara mais inteligente do mundo, na verdade, tinha uma cara de otário e estava sendo mais perspicaz do que João supunha que poderia ao apontar uma direção. O celular qual segurava descuidadamente instantes antes agora estava longe do alcance das mãos de João. O ladrão estava travado. – Davi, com licença, mas eu não tenho o hábito de parar minhas corridas matinais para tagarelar com estranhos e eu nunca te vi na vida. Vou nessa! – O sujeito correu atrás de um desses atletas idosos que passava no mesmo momento. Se fosse tentar algo no desespero também teria que lidar com o velho.

– Peraí! Vamos conversar um pouquinho! – Disse, mas a voz perdeu a força com surpreendente velocidade e o homem foi diminuindo conforme se afastava para partes distantes da praia.

João Miguel retoma seu posto após escalar outra vez a duna. Havia tempos que uma tentativa de furto não se revelava tão destrambelhada. O homem era alto e parecia capaz de revidar ou perseguir, mas se ele tivesse descido com a faca na mão a história seria outra. Por que diabos havia hesitado? O problema não estava na vítima e sim nele. Os pensamentos falavam mais alto do que nunca e João já não conseguia se evitar. As tantas noites anteriores vinham com um lembrete de susto e as imagens eram vívidas. A mãe espanca a filha porque acha que o comportamento dela é indecente. Ela pensa que a filha é uma vagabunda desde pegou o namorado argentino dela se masturbando espiando a garota na porta do quarto. A culpa não podia ser do namorado, mas podia ser da irmã. João tenta inflamar a irmã com a mesma raiva que sente, sugere que saiam de casa, a irmã dá de ombros, diz que Pablo já a espiona há anos e não há o que fazer e, além do mais, a mãe está velha e é melhor não comprar briga, João cerra os punhos como se fosse socar alguém ou alguma coisa, sente uma raiva latente da própria irmã, mas quer mesmo matar Pablo, João provoca novamente a irmã e ela dá de ombros, larga disso seu garoto otário, agora João desconfia de que a irmã e o argentino tenham relações sexuais, João pergunta para a irmã se ela e Pablo compartilham de alguma intimidade, ela manda ele ir tomar no cu, João insiste de maneira truculenta, ela revela que namora Hugo, João pergunta se Hugo não era o melhor amigo gay, se ele fosse gay não me comia, João fica em silêncio e perde a animosidade, mas pergunta o que ela esconde sobre Pablo, a irmã manda João ir pra casa do caralho, a mãe escuta a gritaria e chega xingando a garota, pois sente raiva dela, João não aguenta mais tanto barulho…

João Miguel restabelece agora sua conexão com a realidade. Odeia quando pensamentos insistentes surgem na cabeça e não o deixam. Sabe que faria qualquer coisa para não pensar. Odeia a irmã. Era sua pessoa favorita no mundo e agora não passa de uma vagabunda que dá para o argentino escroto e para o namorado viadinho. Odeia a mãe. Espanca a irmã gratuitamente só por acreditar que ela dá trela para o gringo fudido e vagabundo. Uma vez a mãe deformou a face da irmã de tanta pancada. Odeia Pablo acima de tudo e de todos. Sabe que o argentino espanca a mãe quando chega bêbado. O desgraçado do argentino já bateu nele também. Na irmã não bate, mas possui intenções secretas. Pablo é mais robusto, mais imponente e se comporta como se não tivesse medo de morrer. A próxima vítima surge diante de seus olhos.

Ela é mais atenta que o primeiro rapaz qual abordara para assaltar, mas desta vez ele vai descer logo com a faca e vai pegar o que precisa e ir para casa. Não, talvez não vá para casa. Em casa eles estarão lá, todos os três, talvez mais gente, em casa eles vão me perseguir e me machucar e ninguém liga para os meus esforços e nem dá a mínima pra minha vida, não. João escorrega pela areia e desliza pela duna. Ninguém dá a mínima pra mim, duas vagabundas e um argentino brocha filho da puta, não, eu ainda chego com o que furto com o meu esforço e tenho que comprar comida pra todo mundo, foda-se, cambada de idiota, eu vou alugar meu canto e não ter que pensar em ninguém batendo em ninguém, vou arrumar uma namorada e… João continua seu avanço na direção da mulher. As namoradas que eu tive me traíram, é porque você não passa de um otário, não, não se pode confiar em mulher, minha mãe mesmo não confia na filha dela e talvez esteja certa, se ela tá dando pro gringo imagino pra quem mais ela não tá dando, não se pode confiar em mulher e agora aquele cara lá quer dizer que é meu pai, argentino filho da puta, meu pai sumiu quando eu nem me lembro, ninguém mais pode ser meu pai, ele nunca vai voltar, não se pode confiar nos pais também e nem nos homens, os homens são ainda menos confiáveis que as mulheres, droga, o que foi, seu otário? Cale-se! Eu tenho que fazer tudo sozinho e é isso, João para diante da mulher, ninguém me valoriza, ninguém é confiável, ninguém se importa e parece que ninguém liga para a minha vida, eu não tenho alguém que realmente me ame, eu, para agora, para de pensar, não grita, porra, eu odeio esse argentino cuzão, eu espero que ele morra e quero que minha mãe pague por espancar a minha irmãzinha de graça e quero que uma bomba, cala boca, para de pensar, eu quero que minha irmã fuja com o melhor amigo gay dela e morra com a bomba, ninguém nessa vida vale a pena, para, furta o que tem que furtar e vai pra casa, olha a cara dela, para de gritar, parou de gritar, ela não tá entendendo, fala alguma coisa, fala, vai dividir a recompensa com sua mãe, fala alguma coisa, o argentino viado tá de olho no que você trouxe, parou de gritar, caralho, não trava duas vezes no mesmo dia, não…

– Isso é um assalto! Calminha… Passa já suas coisas que eu não vou te machucar, eu prometo. – Nenhuma resposta. Você pensa que pode me ignorar? – Eu disse que isso é um assalto! Entrega suas coisas, puta! – Nenhuma resposta. João começa a sacodir vigorosamente o corpo da mulher e só então percebe que está deitado acima da cintura dela e os dois estão na areia da praia. O branco suave da praia tingido de escarlate e as ondas empurrando e puxando uma quantidade impressionante de sangue. João ainda se movimenta e nem percebe que está molhado por sangue e sal. Ele ainda desfere facadas sem nem perceber que está com a arma na mão. Os pensamentos não o alcançam e ele continua com uma facada após a outra. O braço ameaça travar e ele cai resignado acima do corpo morto da mulher.

Engana-se quem pensa que é impossível ser preso por assassinato na metade da manhã de uma quinta-feira.

O relógio marcava 8h12 e o rapaz João já estava algemado dentro de uma viatura policial. Não estava comovido com o assassinato ou desesperado com a prisão, mas as vozes que ecoavam no fundo de sua mente faziam com que ele tivesse vontade de se matar. Crianças cantavam em uníssono.

Otário, bundão,

não serve nem pra ser ladrão

Otário, bundão,

Partindo pra prisão,

Otário, cuzão,

Dentro do camburão,

Otário, imbecil

Até o argentino riu

Otário…

Otário.

Ninguém nunca antes…

E qualquer um apontaria o meu exagero latente, mas a verdade é que eu acordei lá pelas cinco e fiquei sentado contando os minutos para que o tempo passasse.

Você me disse uma vez que ninguém nunca antes, nunca desse jeito e era cedo, bastante cedo e o início daquela noite era como o início de nossas vidas e de eras que pareciam se anunciar com a nossa (re) união, mas era realmente cedo, quase como constatei que era cedo hoje ao abrir os olhos pela manhã e notar que você não estava por perto, mas não estava tão longe, pois eu fechei os olhos e pude me lembrar, nunca desse jeito, você me olhava meio cética, meio qualquer coisa incrédula, ninguém nunca antes, nunca desse jeito e eu ri alto, é que eu sabia que não era uma provocação e sim uma confissão sincera, mas eu continuava sorrindo e você não antecipava como eu poderia ser bom com minhas certezas, uma vez que elas quase sempre saltam diante dos meus olhos sem qualquer réstia de explicação racional.

Essas coisas todas talvez se expliquem, eu sei mesmo, uma vez não conta, eu tenho repetido isso por acreditar realmente na ideia e no fundo acredito também que os alemães estão certos e que tudo precisa ser exatamente assim, mas de quando em quando me bate uma vontade de ser ligeiramente egoísta e me transportar para esse amparo de espaço seguro que eu encontrava nos seus braços. A delicadeza da sua presença era capaz de torná-la a mais sutil das almas, mas nunca invisível, bom, você dizia também que não eram muitas pessoas que tinham te enxergado, mas me abusando do que se parece um clichê, eu confesso que sinto uma necessidade ansiosa de falar, bem, qualquer um que não perceba essa diferença talvez realmente não mereça sua presença. O que eu acho é só uma opinião extravagante de uma impressão que cresceu em mim e ainda cresce. Você agora se olha do jeito certo, não é?

E as perguntas não param e eu tentei responder o que eu podia, mas acontece é que certas coisas são demasiadamente certeiras e me notei com essa espécie de instinto distante e perfeccionista, eu não estava na direção certa, embora pudesse mesmo enxergar o caminho. Eu me debruço e não desperdiço meus gestos e falo qualquer coisa sobre matar o vínculo, bom, eu só quero que você fique bem, eu não tenho impulsos assassinos, eu não quero matar nada, mas sempre sigo em frente, mesmo quando a tristeza preenche meus espaços vazios e me torno a pessoa menos ensolarada desta galáxia. O que me dói é que eu ainda sorrio toda vez que me lembro de você com aquela sua antiga relutância cética, ninguém antes, ninguém nunca antes, nunca desse jeito e era cedo e eu sorria, pois sabia que só havia uma unidade minha solta, embora tenham visto alguém parecido na Califórnia, sim, dizem que a Califórnia é ensolarada o bastante até para almas chuvosas, eu rio e penso no meu clone californiano, mas eu estava comentando que sou fabricação única e sei que só há uma de você também, ninguém antes também, nunca antes também e me regozijei pelos momentos que transformaram a hesitação em surpresa.

Sabe, eu ainda não saí do sofá e os minutos são apenas minutos, mas quase os chamei de inimigos e isso não faz sentido. Sinto que uma desgraça vai recair em mim se eu não me levantar, você provavelmente riria, mas talvez o sofá engula meu corpo ou um meteoro chegue pela sacada ampla e coloque um fim nisso tudo. Se tudo fosse se findar hoje, eu me lembraria de você na última chuva de meteoros e abriria os meus braços como quem literalmente abraça o fim antes de me tornar poeira cósmica. Continuo nesta insistente alimentação tóxica de ideias, eu pensei que o meu avião fosse cair, que o meu ônibus fosse tombar e a única coisa que quase ocorreu foi um assalto, mas afinal não fui assaltado e só o frio e a chuva parecem insistir no meu pessimismo, pois considerando a sequência de tudo, percebo-me com sorte.

Pode ser minha tendência dramática, mas se eu continuar por aqui sinto que uma desgraça acontecerá e sinto uma vontade breve de fugir de mim e correr para a minha casa e sentar confortavelmente no meu sofá que nunca engoliu ninguém. Os meus bichinhos certamente estão me esperando e eu sinto a falta deles, será que eles meditam sobre o meu retorno? Estou me perdendo do ponto aqui, eu vim te dizer que decidi certo e que você faz falta e que não há motivo para ter esse gosto terrível de derrota na ponta da minha língua, não, eu não sei a razão de me sentir tão triste, pois ninguém nunca antes, nunca desse jeito e ainda é tão cedo e eu nem fiz o café da manhã e minha barriga dói, bom, eu não fui drástico e senti dores no corpo acordando lá pelas quatro e meia e tomei um Tandrilax e acordei sem estar travado, porém com a barriga extremamente dolorida. O que eu provavelmente quero dizer é que quando sinto e agora sinto, eu sei que não consigo me explicar e que minhas explicações mais aproximadas apenas são explicações aproximadas.

Não há alternativas e eu me peguei pensando em tantas coisas diferentes e, bom, eu te disse também que não é sobre não ter medo e sim sobre enfrentá-lo, mas eu não escondo de ninguém que o escuro de quando em quando me apavora e nas noites de silêncio violento ainda durmo com a televisão ligada, mas não tenho televisão no apartamento em Cabo Frio, como você faz, eu presumo que você me perguntaria, bom, eu dou um jeito, eu sou bom em dar um jeito, é coisa de brasileiro, você também vai dar um jeito, quando há televisão a gente assiste filmes repetidos e quando não há televisão também, uma vez não conta, tudo bem se repetir, mas é que ninguém nunca antes, nunca desse jeito e, bom, o que encontro é quase o suficiente para me deixar gago, mas tenho sorrido uma ou duas vezes por dia e passei duas semanas no limbo e agora estou de volta, é, I’m back from the deads e sorrio, aquele velho sorriso que quebra a hesitação e surge ligeiro e rápido e a barriga ainda dói, mas vou tomar um café e rio de novo, pois a minha pronúncia de dad e dead é idêntica e me imagino voltando de uma reunião de pais.

Sabe que essa história de que ninguém nunca antes mexeu comigo e passei horas tentando aceitar o fato de que nunca desse jeito e ainda é cedo, mas sinto que vou receber uma onda de ódio e vou ser vítima de uma retaliação silenciosa, não, eu sei que você sabe, há duas maneiras de encarar, a primeira é de que não há vítimas a segunda é de que todos somos vítimas e agora estamos caminhando em desertos diferentes e ainda é cedo, eu sei, você sabe, é o que importa, afinal. Agora tudo muda e tudo bem, incenso fosse música, Leminski está certo, querer ser o que se é ainda vai nos levar além e que a vida siga como deve seguir, um dia por vez, um sorriso por vez, um machucado por vez, um sangramento, uma batalha, um amor, mas que ninguém tire a ideia e a admiração sincera que um nutriu pelo outro. Bom, é que todo mundo adora lamber migalhas e tanta gente não sabe o que é uma devoção completa e inteira e recíproca e, bem, eu usei a porta da frente e fiz tudo como senti que deveria fazer, eu sei, tudo é assustador e o mundo já foi difícil pra nós, antes de nos pensarmos juntos, essas coisas tão horripilantes que você sofreu e quase meia década que eu passei vomitando em quase todos os finais de semana e agora estamos aqui, não sabemos nada direito, nada cem por cento, mas o que é existe e basta para seguirmos tentando e, sabe, eu reconheço que não tenho tentado meu melhor, mas eu tenho tentado tentar e isso deveria bastar, não, ninguém nunca antes, nunca é desse jeito e me pergunto se meu clone californiano já fez o café da manhã e preciso fazer esses ovos mexidos na frigideira nova e, bom, eu espero que meu estômago melhore e que o seu esteja bem também, certo, nós ficaremos bem, eu aqui, você aí, os outros onde quer que estejam e sou brevemente feliz, pois entendo que você entende e que ainda vai me olhar nos olhos quando esse furacão todo passar.

Sabe, eu torci para que o sofá me engolisse e para que o sol aparecesse, mas ainda é cedo, bastante cedo e não sei bem o que faço acordado. Ainda assim, uma lembrança de não ter lembranças me coloca um sorriso fugaz no semblante e pela primeira vez em muitos dias sou grato por estar vivo.

E qualquer um apontaria o meu exagero latente, mas a verdade é que eu acordei lá pelas cinco e fiquei sentado contando os minutos para que o tempo passasse…

Um dia…

É necessário certo desprendimento intelectual para conjecturar hipóteses que sejam desconfortáveis. Olha, eu nasci neste lugar, mas não há nada que me prenda aqui, exceto os falsos aprisionamentos quais são obras ficcionais da minha tão criativa mente e aos quais me submeti. Olha, pois o mundo é grande e nele cabe quase toda ambição que tive, mas veja, há impossibilidades para o plano real das coisas, assim, conjecturo-me em cenários novos, diferentes, distante me vejo e reconheço o desejo, fora cresço, ainda distinto e decente, mas buscando outra vida e a realização de que posso encontrar o rosto que eu tinha antes da criação do Universo.

Sou o que posso e talvez amanhã possa ser mais por sentir que hoje ainda não posso ser exatamente o suficiente. Esta suficiência da qual falo objetiva unicamente o meu próprio agrado e a minha singular satisfação, pois como escreveu outrora Machado em Dom Casmurro, “se só me faltassem os outros, vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo e, essa lacuna é tudo”.

O alcance deles é vasto e o meu pequeno. Quando as luzes se apagam, eu me pego tremendo. Sou obcecado com mudar o mundo para melhor e com a dieta diária do consumo de chocolates amargos e ovos mexidos. Mudo algo verdadeiramente? Faço ou poderei fazer coisas boas? Há os que me dizem de maneira objetiva que eu já faço a diferença e, eu me pergunto, eles geralmente gastam o tempo lendo os meus discursos ou elogiam mais por uma questão de decoro social? Quem sabe eles não pensem “você é péssimo, terrível, horroroso, mas eu sou legal e por isso vou te incentivar, vá, continue tentando, amigo”. Pergunto-me se a avaliação de uma estrela é sincera, pois é desacompanhada de explicações e, agora me pego estático e sério. Os corações das pessoas são cheios de revoltas e mistérios, assim, vejo-me com um desconforto. Nunca posso querer condenar o meu coração pelas inconstâncias e contradições. O que vale no fim do dia é ser honesto, certo?

Supostamente H. D. Thoreau disse certa vez: mais do que amor, do que dinheiro, do que fé, do que fama, do que justiça, dê-me a verdade.

O que significava essa obsessão com a Verdade? Nossa verdade equivale-se ao nosso propósito e tudo o que fica entre a Verdade e o Objetivo é frívolo? Penso, assim, sobre minhas próprias paranoias e principalmente sobre o que considero essencial ao que me condiciona como ser humano. Poderia dizer que viveria sem o ventilador, sem o ar-condicionado, sem comer quaisquer tipos de carne, mas qual é o sentido de abdicar de algo que torna a vida mais prática? Essas coisas todas, essas que tornam a existência facilitada e prática, elas de certa forma se transformam em vícios para que nós deixemos de ver o próprio protagonismo que deveríamos exercer na Vida? Disfarçamos nossas intenções reais inserindo distrações significativas antes delas? O que é que insistimos em não ver?

Vivo como se eu tivesse sempre mais um dia e isso me incomoda. Consciente deste mundo no qual sobrevivo, eu busco não me esquecer da fragilidade da vida. Ontem mesmo era começo do novo milênio e não muitos meses depois a minha avó falecia. Que me comove na morte de uma avó que se preocupava em me preparar tomates com sal e não me comove nas milhares de mortes cotidianas? Que me torna alheio quando, às vezes, sinto que deveria mergulhar no sofrimento mundano? As ideias, os pensamentos, o que me move, é tudo inversamente proporcional ao que me socorre. Tenho gastado minhas reflexões na esperança inútil de que meus pensamentos se esvaziem e de que eu possa encontrar paz após tanto meditar. Encontro-me com mais perguntas e mais contradições e mais percalços. O que é que há de admirável no quintal do vizinho para que ele seja tão exaltado se tenho o quintal tão bonito quanto? Não, não sou eu que faço essas comparações, admito que meu quintal me satisfaz, embora eu esteja notoriamente atrasado para arrancar a promessa de matagal que reside naquelas tantas ervas daninhas, mas suponho-me na existência alheia e busco entender o que por vezes considero incompreensível. A inveja, o vil, o torpe, o maligno, eu já tive vontade de incorporar essas características, porém olho o mundo e o vejo substancialmente negativo. Quão conveniente seria eu se agisse em lapsos de fúria e me tornasse uma espécie de hedonista, um sujeito egoísta, que só existe como indivíduo e individualmente? Há coisas mais importantes que os prazeres. Há funções mais importantes que sentimentos. Há só uma maneira de seguir de peito aberto e com a cabeça erguida, mas há um preço que se paga para ser assim. Eu pago.

Vejo-os, quando não me vejo. Desligo-me da existência para fazer parte de outra coisa e olhar melhor para a minha missão. Como tantos nascem e morrem sem sequer meditarem sobre a missão? A vida pode decorrer tediosa, vaga e sem propósito? Percebo pela minha capacidade de observação que muitos são extremamente dedicados ao trabalho, ainda que o trabalho lhes pague apenas dinheiro e humilhações. Devemos permitir que sejamos humilhados? Aceitam o trabalho, mesmo quando o trabalho é inerente ao declínio, mesmo que notoriamente a noção de cumprir o dever te sopre para a beira de um precipício. Os que caem demoram para se recuperar e os que não caem, creem puerilmente que nunca irão cair, assim, o melhor alimento da ilusão é a expectativa de poder e o melhor alimento da alma é a expectativa da realização de todos os nossos desejos, por mais que os desejos se extravasem na esfera singular da existência e necessitem de outras pessoas para que sejam realizados.

Sei pelo que determinadas pessoas me abandonariam, pois outras me abandonaram. Será que sou capaz de abandonar todos?

Nenhuma dor pelo dano (Leminski).

Há outros mundos além deste (S. King).

Tem que ser assim (M. Kundera).

Desde a infância respeito meus espaços particulares e preciso de doses pontuais de solidão para não amargar a vida. Se tenho o que necessito, eu transbordo a minha doçura e não é incomum que dissertem e narrem por aí sobre o quanto me sentem e me enxergam realmente doce. Sou uma espécie de sujeito comum com ímpetos de heroísmo e desafio improbabilidades fazendo das minhas cenas presentes minhas novas evoluções. Persegui o pôr do sol em janeiro, quando voltava com quase todos os meus melhores amigos para Campo Grande. Dirigi sozinho na ida e na volta, enfrentei a chuva e a neblina e desci e subi várias serras. Ao final do percurso da volta, eu decidi que chegaríamos em casa ainda de noite. Persegui o sol pelo que pareceram horas, mas os minutos nunca haviam passado tão lentamente. Um dos amigos estava exausto e dormia, outro seguia quieto e discreto no próprio canto e havia um que estava ansioso e tenso com a iminente chegada da noite. A escuridão engolia a estrada e o carro branco persistia vivo com os faróis acesos.

Se sei de algo, eu creio que agora possa confessar, é que não sei de coisa alguma. Sou capaz de lampejos de brilhantismo e atitudes heroicas, exagero-me quando me dedico e me sinto inflado por uma coragem tão poderosa e real que me aproxima da Coragem original. Sei também que em diversos momentos sou deprimente, fraco e inútil. Não admito vulgaridades e quando sou vulgar, excedo-me na raiva que sinto por mim, pois há certas características comportamentais quais não posso tolerar no meu próprio ser. Encontro-me com o meu reflexo várias vezes ao dia, seja nos retrovisores ou espelhos ou poças d’água. A autoimagem deve me agradar e se me vejo sujo, eu faço questão de nunca mais enveredar pelos caminhos quais me sujei.

Outra vez me consterno ao me encontrar no meu constante estado soporífero. Perto de sentir o sono, não me permito dormir. O sono é vão e a vida ocorre nos intervalos de meus piores pesadelos e de meus maiores sonhos. Sonhei-me majestade e fiz mais sentido podendo proteger o meu povo. Sonhei-me mendigo e me senti feliz ao dividir minha pouca comida com o meu cachorro. Sonhei-me gota de chuva em queda livre e fui feliz despencando do céu para o telhado de uma casa. Não muito depois evaporei e da minha presença nada restou. Sonhei-me como um gato entediado que dormia dezoito horas por dia. Todos os sonhos me apraziam mais do que a penosa realidade de ser apenas quem sou. Todos os sonhos me faziam ser algo mais, algo que nunca serei.

Trabalhei e ganhei dinheiro, conquistei pessoas, fui amado e juro que até amei. Perdi dinheiro, perdi amores, trabalhei e fui demitido, trabalhei e me demiti, pediram para que eu reconsiderasse o meu pedido de demissão, eu reconsiderei, mas por um dia e me demiti, juntei dinheiro, juntei afeto, fui amado e desamado e, enfim, amei de novo. O relógio da vida conta os meus minutos e eu conto a probabilidade de me entregar aos meus impulsos. Sou insistentemente racional e não me permito ser tão vil. Nunca traí meus amigos e nunca os trairei, ainda que admita, humanamente posso carregar essa vontade que até hoje nunca carreguei comigo. Espero que nunca carregue, mas sei posso. Espero não fazer o mal, mas sei também que posso e que uma atitude muda tudo. Espero não me render, mas sei que a maioria se rende.

O poder é a moeda do nosso verdadeiro valor. O poder aquisitivo, o poder sedutor, o poder do carisma, o poder de mudar o coração das pessoas, o poder de receber tudo e dar tudo. Ter a consciência dos diversos poderes que obtemos durante a vida e não os utilizar para propósitos egoístas, viciosos ou viciados, talvez seja o verdadeiro teste. Qual é o seu maior poder e como você se utiliza dele? É estranho. Quando ajudamos geralmente esperamos a reciprocidade no momento de dificuldade. Se emprestamos, esperamos que quitem as dívidas conosco. Se não há barganha, o que resta? O que entregamos de graça? O que acontece quando somos cônscios de nossos poderes e de nossas capacidades plenas e, subsistimos e insistimos em uma vida na qual sobrevivemos com educação e humildade? O quanto a tranquilidade não é confundida com a passividade? O quanto não nos subestimam por termos a capacidade de escolhermos os nossos próprios caminhos? A maioria dos ciclos se repete, mas por que diabos eu deveria me permitir a viver uma vida cíclica se me falho em repetir nas minhas constâncias e inconstâncias? Mudo e me aceito, ainda que desconfortável. Minhas mudanças são discretas ou extravagantes, mas são minhas. Aqui grita o meu protagonismo. Sinto uma distância incalculável para com as pessoas que vivem a vida para servir outras pessoas. Vivo a dizer que devemos ter sonhos e ambições individuais, mas reconheço, na verdade, que não tenho o direito de opinar sobre existências, sonhos e objetivos que me são alheios.

Pisco os olhos e respiro com somente uma de minhas narinas, pois a outra não é funcional. Observo tudo com um interesse crescente que subitamente se transforma em desinteresse. Capto imperfeições na pele, detalhes nos sorrisos, gestos de ansiedade transparecendo pelas mãos, vejo a roupa marcada pelo suor e noto como me notam. Uns me subestimam, outros torcem o nariz, ainda há quem me ache bonito ou alto e, até mesmo bonito e alto. Sou chamativo e não me envergonho. Sou como sou e não seria diferente, mesmo se pudesse escolher. Quase todos pensam que eu não os vejo, mas eu vejo quase sempre quase tudo.

Só o hoje me interessa. Só o hoje existe. O passado foi o presente antes e o futuro só acontecerá também no presente. Acordo em novos dias e a minha vida é uma página em branco. Ainda tenho a juventude ao meu lado. Posso mudar tudo, posso fazer tudo, posso focar na missão. Posso devanear e aprender novos idiomas, morar em outros países, abarcar novas civilizações e abraçar novas lições. Nunca me busquei, mas talvez este seja o tempo. Nunca busquei viver a minha vida, mas sou inundado por instintos de coragem que me forçam ao protagonismo. Sou dono de mim e mereço escolher o meu caminho. Mereço ser feliz, eu sei, mereço o amor, eu sei, mereço boas pessoas e sou cercado por elas, eu sei também, mas cresce subitamente em mim a ânsia de realizar a missão.

E se o primeiro avião desaparecer no negrume da noite, eu viverei meu luto em silêncio.

E na manhã seguinte sorrirei sabendo que outro avião partirá.

A vida, eu hoje penso, é uma jornada pelos caminhos já percorridos, mas que ainda nos são inéditos. Só eu posso me livrar do próprio tédio e encontrar o meu propósito. Oh, vida! Escuta a minha voz nesta terça-feira? Dê-me uma saída para que eu seja sério até nas minhas brincadeiras e, assim, que eu nunca desista do que me faz ser exatamente quem sou.

Ainda busco o rosto que eu tinha antes da criação do Universo, mas de maneiras diferentes. Pego a chave do meu carro, que é meu porque eu o comprei, e saio de casa. Hoje não vou perseguir o pôr do sol, mas sinto que persigo o meu âmago.

Acelero o meu carro no final da tarde
Os sons do trânsito caótico me confortam
Alegro-me em conviver com a poluição sonora
Obedeço aos sinais e confio no amarelo
A vida é pelo risco, mas dentro desta máquina
Confesso-me muito mais arisco e cauteloso
A vida é o que fazemos dela e isso me inquieta
A vida é o que fazemos dela e sorrio

A vida é o que ainda farei dela
Sigo dirigindo e tendo paciência
Existo como muitos que dirigem
solitários dentro de seus próprios carros
O meu carro branco se parece com outros,
mas certamente é único no mundo
Dentro dele eu sou o motorista
E o carro confere a mim uma função
qual não posso exercer sem ele
Eu me pareço com muitos outros,
entretanto, sei que sou único
Ouvi sobre o Bem e o Mal
E certa feita não vi bem e mal

Não compreendi a praticidade
desta fútil e insensata divisão
Conheci pessoas reais mais mentirosas
que o próprio Pinóquio e jurei
reconhecer o Gepeto vendendo doces em um bar
Ouvi sobre o Bem e o Mal
Ouvi sobre os ensaios de vileza,
mas não vi mais coisa alguma
Vi apenas outros carros
E outros motoristas e outros passageiros
A maioria agora veste máscaras
e isso tudo não é uma metáfora cafona
Vejo uma réstia do pôr do sol
e me recordo de que em janeiro o persegui
Se eu fosse o mago Howl
talvez até pudesse o engolir
Sonho cadente e secreto que sonho
qual sigo sentado no banco do carro
O objetivo ao que me proponho
pode ser difícil, mas nunca caro
Resisto nas hipóteses e nos fracassos
Persisto como quase ninguém persiste
De cabeça erguida, apesar do cansaço
Sinto falta do trabalho e do dinheiro,
mas não tanta falta de mim
Existia àquela época outro jeito?
Sim, não, tanto faz, mas tinha que ser assim
E devaneio-me em jornadas novas
Sou um andarilho sem cura e sem causa
A salvação não é para todos?
Podemos encarar a vida como um jogo?
Encontros como este são cada vez mais raros
Veja bem do que vai abrir mão
Não espero retornos, assim, nada retorna
Complico o simples e simplifico o complicado
Preciso aprender a falar japonês o quanto antes
Sinto vontade de beber água e cerveja
Sinto vontade de compartilhar minha intimidade,
mas nunca desejo dividir meus hábitos

Afaste-se e me deixe em paz
Queria mais café com a chuva caindo
e a paisagem me soou como um quadro
O deserto do Atacama é o mais árido do mundo
E ainda assim nele há vida
Não importa o quão você tenha ido fundo
há sempre uma saída
Tudo pode ser,
desde que tenha paciência
Tudo pode acontecer,
desde que lide com as consequências
Isso é a vida ou é um novo sonho?
Espero comer chocolates amargos ao final do dia
Espero estar em Londres ou em Londrina ou em Lisboa
quando o meu cansaço me roubar a consciência e a subjetividade
Espero ficar aqui onde estou seguro
Espero ficar longe onde estou desprotegido
Espero tudo e admito que não espero nada
Confio a vida nos pneus do meu carro e no motor
Confio que há coisas tão importantes quanto a Felicidade e o Amor
Preciso continuar insistindo neste Amor
Preciso perpetuá-lo, não importa como,
Pois vive em mim o desejo de tornar o mundo mais bonito
Enquanto não encontro soluções medito dentro de meu carro
Dirigindo para um rumo certo ou para o deserto infinito
Quando tudo se perdeu e

me notei distante do que queria
Sussurrei toda minha esperança

defronte aos medos
Um dia.

Você vai sentir esse peso

– Você vai sentir esse peso.

O conselho soava despropositado, tosco, fora de hora, longe do nexo, ainda assim, os ombros agora carregavam uma bagagem que não havia anteriormente. Por quê? Não sabia dizer. A gente é tudo aquilo que pode? A gente é aquilo que nunca mente?

– Que é esse peso? – Pergunto e me deparo com o silêncio em resposta. O conselheiro se foi.

Contrariado, ergo-me e bebo um copo de água gelada. Até nas noites o clima quente atrapalha. Se pudesse escolher, eu hoje tomaria uma garrafa de vinho tinto. Se eu pudesse me entender, beberia tudo sozinho. A gente é aquilo que nunca mente e o que pesa internamente antes do novo dia ter amanhecido? A sinceridade é o melhor caminho para não sair ferido?

A noite ainda é longa, porém, reconheço-me distante da excitante luz solar. Reconheço-me com estranheza, mas sigo inconsciente sobre a minha beleza. O brilho fraco das estrelas é a única coisa que me impede de (me) apagar. Venço o estado soporífero. Escuto vozes, velozes, pessoas correndo, fazendo barulho, frenesi louco, ebriedade costumeira, cruzam a madrugada, todos atravessam, arriscando-se, morrendo porque desejam viver. Se eu pudesse recuperar tudo aquilo que havia perdido. Se eu ainda tivesse as chaves para voltar para a orgia de meu sofrido mundo proibido. Se as coisas simplesmente não doessem como doem.

– Você vai sentir esse peso e conhecer essa dor.

A dor não se evita. Acendo uma vela e fito a chama acesa. Este momento é meu, embora nada mais me pertença. A luz bruxuleante queima a cera e toda a minha esperança ingênua se projeta na sombra. Não sei explicar, mas falta algo lúcido e próximo, possível e real, algo esquecido e deixado de lado pela prece de horas sombrias. Não posso ser o foco, entretanto, desejo ser a fogueira que queima através do tempo-espaço, o fogo que nunca apaga e que ilumina caminhos. Jogam-me água. Os que se importam logo desistem e os que apenas não ligam o suficiente se utilizam das situações. Sinto o peso de me sentir solitário em uma existência compartilhada por bilhões.

– Você vai sentir esse peso. Vive no mesmo mundo que eles. Carrega o inevitável fardo de compartilhar seus êxitos e revezes.

Penso nos outros que ousaram ter coragem em épocas mais sombrias e continuaram lançando-se em horizontes densos e escuros, engolidos por violentas tempestades, resistindo, sobrevivendo, minuto a minuto, entre a vida e a morte. Ansiando pelo futuro e contando apenas com a sorte. Sobreviviam pelo ofício, pela recompensa ou pelos que os esperavam? Penso nos que pensaram além de si mesmos, nestes raríssimos que deixaram o egoísmo de lado e se preocuparam primeiramente com a missão do que com os louvores individuais. Penso ainda que nenhum pensamento é único e a repetição é a única tendência infinita na existência, pelo menos enquanto existirmos. Vai desistir da sua vida como se ela não se importasse? Fortaleça-se!

– Você vai sentir esse peso e vai decidir. Chegará o momento em que vai entender se vai se erguer ou se vai sucumbir.

As dúvidas serão incontáveis, o conselheiro avisou, mas se a missão deve ser cumprida é porque talvez exista algo maior do que o próprio amor? Quiçá para uns, certamente não para outros. Silêncio do conselheiro compartilhado por aquele que foi aconselhado. Se existe algo maior, ele sente que deve descobrir e resgatar. Conclui descuidadamente com uma frase de efeito: aquele que sacrifica a felicidade individual para que o mergulho nos aprendizados seja intenso e lúcido o bastante será recompensado e nas profundezas de nossos próprios lagos, enfim, poderá achar suas próprias respostas, acaso não seja assim tão raso. Risca um S.O.S na areia e pensa em quantos pedidos de socorro foram feitos nos areais, céus e mares. Quantos pediram ajuda e morreram antes dos heróis chegarem?

– Você vai sentir esse peso, garoto.

Disse-me, entretanto, certamente sem notar que doze fios de cabelos grisalhos despontavam em minha cabeça. Sou contra comemorar novos aniversários para que eu nunca mais envelheça. A idade atual se esvai, assim como a chama da vela, sim, ela ainda queima e sobrevive diante de outra aurora, defronte a outra despedida. Regente da madrugada, príncipe de melhores horas, ele se levanta poderoso e aproveita o breve momento de reinar. Sabe que eventualmente vai padecer. Está cônscio da possibilidade de falhar. Dragão das manhãs, réprobo do crepúsculo, quase sempre me senti fora do lugar. Segui sentindo na pele todo o mundo que nunca me sentiu, notando e abraçando quem não faz questão de se importar. Sofro a angústia inevitável de ser quem eu fui e choro. Às vezes a comoção abarca o Universo e às vezes resumo a felicidade em um verso solitário que escrevo quando estou sozinho. Às vezes a vida o fustiga e o frustra. Às vezes é melhor continuar na busca. As fatalidades exteriores não existem? Qual é o verdadeiro sentido que nos guia?

Sinto o peso do que não vejo e ainda vive em mim. E sinto os desejos que tenho desde que nasci. E sinto o ensejo do caminho que escolhi. Eu vou carregar esse peso. Verei de perto situações degradantes, cafajestes, trastes, viciados e bajuladores. Superarei o medo e não vou me acovardar. Vou ver a maldição do mundo e me recordar dela em uma lembrança olfativa e adocicada que me causará ânsias de vômito. E vou observar o caótico cenário político e diversos documentários e crises e fins de mundo tão terríveis e chocantes quanto à continuidade da vida. A alma agora se embriaga, mas a essência antes perdida, parece-me, enfim, encontrada. Ninguém vive nesse mundo longe dos perigos. Podemos evitar e chamamos de inevitável. Desvios de rotas são imperdoáveis. Choro melhor quando choro sozinho.

Dirijo meu carro e os olhos marejados tornam as luzes de faróis parecidas com as estrelas. Ofereço um breve aceno tentando entretê-las. É uma metáfora literal, mas vejo a vida conforme atravesso uma nova porta. Alguém situado lá em cima me nota? Retorno-me ao ponto de não retorno, ignorando a placa da proibição. Cada olho enxerga uma realidade diferente. Há tantas realidades assim? O que você seria sem as pessoas que você conheceu? Eu perdi a minha pedra de signo e o meu dado de vinte faces. Nunca mais me encontrei. Nunca mais encontrei os objetos. Aguento o dia árido. Vou sobreviver hoje mesmo tendo sentido o peso. Vou entender que a minha felicidade depende do que faço de mim e, assim, farei algo. O protagonismo, a vela, o fogo, a vida, o jogo, o que sufoca e o que nos torna leves, as responsabilidades e quem decidimos ser, o gosto podre de fracasso, a inebriante sensação de vencer. Muss es sein? Es muß sein! Tomas não tinha certeza. Quanta certeza cada indivíduo pode ter? As mortes de todos os antecessores e parentes queridos, as vidas inúteis de tanta gente que se machuca sem nunca ter merecido, as traições, as angústias, eu quero carregar esse peso. O inferno, a luxúria, a oportunidade não é menos do que o que vejo. Perito em enfrentar os problemas, eu me ergui fora de lugar. Não existe moldura qual eu possa me encaixar?

E o cansaço de alma que me persegue avisa que espera por uma chance de me sobrepujar e me vencer. Sinto-me triste, exausto, cansado e indefeso. Ainda assim, eu vou me levantar e lutar. Eu decidi carregar esse peso.

E o conselheiro sorriu com sinceridade em resposta. Sussurrou sua confissão:
– Essa sempre foi a minha aposta. Confia no teu coração.

E as luzes piscam para àqueles que sempre estão com os olhos acesos nas janelas amarelas das cidades. Não importa a carga, ele quer carregar o peso. Essa é a sua única verdade.

Quem é você?

          Eu havia me classificado para a quarta etapa de um campeonato de videogame. Inadvertidamente um menino de uns 11 ou 12 anos de idade comia Doritos perto de mim e, observava ao meu desempenho no jogo com uma espécie de interesse preguiçoso. A nova geração poderia ser um pé no saco, eu pensei, mas mantive a acidez de meus pensamentos distante da radicalidade com a qual eles se insinuavam. Do lado oposto ao comedor de Doritos, outro menino jogava videogame também, creio que Super Metroid, para Super Nintendo. Costumava durante à infância admirar meus primos Rafael e André, principalmente este último, por ser quem mais se dispunha a zerar os jogos difíceis. Àquela época eu acreditava que crianças mais novas não eram capazes de vencer em determinados jogos, coisa qual descobri pouco tempo depois ser pura bobagem. Uma sirene soou e os jogos todos foram pausados imediatamente. Havia cerca de quinze crianças e eu. Cogitei ser uma criança sem ter me notado assim, confesso, mas não me recordo agora como, mas não sinto como se a minha idade pesasse no ambiente. Parecia, no entanto, somente um daqueles adultos tidos como estranhos, tão deslocados em uma festa que se dispunham a jogar videogame com as crianças. É preciso alimentar simpatia para com quem opta pela honestidade e pelos jogos. A sirene produzia um barulho escandaloso que impeliria pessoas comuns a taparem os ouvidos, mas não foi o que fizemos. Estendemos as palmas das mãos, como quem aguarda um pedaço de pão ou algum tipo de recompensa e, permanecemos calados. Sujeitos altos trajados com uma vestimenta que lembrava uma roupa de astronauta entraram e utilizaram aparelhos que faziam grandes bipes para medir nossas temperaturas. Quando chegou a minha vez, o aparelho reagiu e emitiu um bipado diferente, um bipado que soava como um alerta de perigo. Os astronautas todas entraram em desespero, mas não perderam a organização no Modus Operandi. Aos gritos de isolem as crianças, deixem só o contaminado, traga a outra máquina, eu observei estático o alarde que faziam sobre a minha vida. Não me mexi. Dois astronautas trouxeram uma máquina mais pesada e a posicionaram diante de mim. Ainda estava imóvel. Quando ligaram a máquina, um ruído insistente, chato, iniciou-se. O zumbido durou apenas alguns instantes. Um dos astronautas deu um passo para frente, repousou sua mão enluvada no meu ombro esquerdo e disse: era alarme falso. Você não está com o vírus.

           Andei com rapidez por uma galeria e quando me dei conta, eu estava já em um shopping. Enfurecido com o resultado falso positivo do teste e a acusação da minha irreal contaminação, eu abandonei as outras crianças com os videogames. Tomei uma pequena xícara de café expresso e resmunguei sobre pagar o que havia pago, assim, eu reconheci que, no mínimo, eu deveria ter me negado esta oportunidade. Distraí-me com o pensamento inútil sobre a verdadeira natureza da liberdade. Esta consistiria em ceder aos impulsos ou controlá-los? Deitei, logo na sequência, minhas preocupações todas para algo mais afastado da subjetividade, também me sentia sem paciência para discutir a metafísica, assim, quando a atendente me perguntou sobre a secura do tempo, ganhou de brinde o meu sorriso mais largo e sincero. Eu a chamei pelo nome, ela enrubesceu e, eu sorri mais uma vez antes de me despedir.

            Mal havia me virado para sair do Café do Ponto e, quase trompei com uma vendedora. Eu a conhecia, provavelmente, na realidade, confesso me perder aqui e agora na sinceridade deste tópico. Eu a conhecia? Não importa, mas ela agia como se me conhecesse. Quando alguém te chama pelo nome, sabe de todas as usas necessidades e te guia com um toque suave nas mãos, você aceita de bom grado o passeio, ainda que o item qual ela queira te vender seja a última coisa qual você realmente queira comprar. Foi assim que uma vez me vi na cidade de Brasília com óculos-escuros novos, ou seja, é preciso tomar cuidado com gente muito decidida. A vendedora da vez disse, nesta ocasião, que sabia exatamente o que eu precisava. Descemos para o primeiro piso do shopping e ela olhava para trás, de minutos em minutos, conferindo se eu ainda estava a segui-la.

            – Para falar de assuntos assim, somente em lugares sérios, Guilherme.

            – Como você sabe o meu nome?

            – Ora, nestes dias, que vendedora que se preze não conhece o cliente?

            – Está bem. Onde vamos?

            – Chegamos. Este é o lugar ideal para a nossa conversa. – Quando me dei conta, estávamos subindo a escada rolante que fora feita para pessoas descerem. A minha perplexidade deve ter ficado nítida no rosto, porém ela disfarçou com maestria o exagero da reação. Exagero? Perguntei-me e respondi, claro que não, afinal, eu estava andando e ela também, ambos os dois sem sair do lugar.

            – Uma escada rolante?

            – Não se prende nos detalhes não importantes, meu bom homem.

            – Certo, isso está estranho, mas suponho que não seja o fim do mundo. Posso me concentrar em andar e falar com você, mas teremos problemas se alguém resolver descer.

            – Ninguém vai descer, Guilherme. Vamos falar da minha razão de estar aqui?

            – Graças a Deus! Eu estou curioso a respeito disso faz alguns minutos.

           – Então sua curiosidade dura pouco já que está me seguindo faz algumas horas, Guilherme. – Ela sorriu um sorriso de boneca e senti um calafrio. – As maquiagens, Guilherme, separei as que melhor se encaixam como presente para aquela sua amiga.

            – É mesmo?

            – Ou era para sua namorada?

            – Não me lembro ao certo.

           – Você disse que uma tal de Francisca estava muito interessada em maquiagens para mulheres negras. Você quer ver os produtos?

            – Quero.

            – Diga lá, Guilherme. Sua namorada é negra? – Meditei sobre a minha resposta. Não, Francisca não era uma mulher negra, mas estava fazendo pesquisas para o trabalho de conclusão de curso que questionavam e explicavam a ausência destes produtos e o que deveria ser feito por algumas marcas para que essa lacuna fosse suprida. Em países como os Estados Unidos, mulheres negras não encontravam tantos problemas com isso, mas no Brasil, por exemplo, era quase impossível que uma mulher negra encontrasse uma maquiagem adequada à coloração da pele.

            – Não… Na verdade, não.

            – Então você não pretende comprar comigo, Guilherme?

            – Bem, eu…

            – Diga-me agora o seu propósito. Estou aqui para lhe ajudar, como sempre.

            – Eu só tenho uma curiosidade legítima a respeito do assunto.

            – Ainda bem que me disse! Eu pensei que fosse me enrolar durante a tarde inteira. Eu sei suas respostas, Guilherme, sei da sua paixão por solidão, sei dos seus segredos e sei, sei mesmo até os produtos que você quer comprar e eu poderia te vender, mas se hoje estamos aqui por causa de uma curiosidade legítima, siga-me.

            A vendedora indicou para que eu descesse a escada rolante e foi o que eu fiz. Ela passou por mim e deu uma piscadinha. Chamou-me para segui-la e lá me vi atrás da mulher outra vez. Passamos por várias mesas de ponta cabeça em várias praças de alimentação. O visual lúgubre era comum aos que saíam tardes das sessões de cinema. Guilherme, outrora, estimulava a tradição sagrada de ir aos cinemas em todas as segundas. Os olhos marejaram e ele nem teve tempo de pensar sobre. Continua seguindo a mulher, que andava ligeira e os dois passaram por dezenas de lojas fechadas. Enfim, a vendedora entrou em uma loja e seguimos rumo ao estoque que estranhamente levava até a rua. Na saída para a sociedade, porém, havia arcos altos que surgiam do asfalto e diminuí o ritmo quando fui, vagarosamente, atravessando-os.

           – O que está acontecendo aqui?! – Tudo havia ficado mais obscuro. Algo sinistro pairava nas sombras, aguardando. A voz da vendedora respondeu fracamente de longe.

            – Você está no local que me pediu, Guilherme. Bem-vindo.

            – Que porra é essa?! O que você quer comigo?!

            Abri os olhos e vi a televisão do quarto. O filme A Viagem de Chihiro entrava nos seus últimos trinta minutos e eu me peguei suado na minha cama. Fechei os olhos como que para aceitar que eu estava sonhando e fui transportado de volta aos arcos. A voz novamente surgiu.

            – Vamos, Guilherme. Faça o que tem que fazer. Não era isso?!

            – Quem é você, vendedora?!

         – Quem é você, Guilherme?! – A pergunta o revirou e ele sentiu subitamente uma vontade de vomitar. Desta vez não era a voz da vendedora e sim a sua própria voz.

            – Quem é você, Guilherme?!

            Guilherme se sentou ao banco e sentiu que um monstro se levantava do chão. Tudo era incerto, tudo era irregular. Abriu os olhos e estava sentado na cama. Olhou para a televisão e agora ela estava apagada. Acendeu as luzes porque estava assustado. Acendeu as luzes porque, nesta noite, talvez não existisse um pedaço de escuridão que fosse saudável. Acendeu as luzes porque a pergunta ainda revirava e ele relutava, mas falhava em ter uma resposta concreta. Quem é você, Guilherme? Acendeu as luzes porque não sabia responder a uma simples pergunta.

Outra vez

Outra vez a cortina fecha e o espetáculo acaba. Outra vez o mergulho profundo na madrugada.

Ando com a cabeça meio solta, meio no mundo da lua, meio em outro mundo qualquer. Se eu soubesse exatamente talvez lhes contasse, mas tenho me estranhado. A minha maior capacidade, eu acho que é essa de produzir quando não há sinais de esperança ou carros nas ruas. Os outros vislumbram passeios caros e eu fito solitariamente a lua. A noite passa e é quando a maioria se deita que eu me levanto. Desaparece a neblina e a fumaça, é quando tudo se ajeita que secretamente me entrego aos prantos.

Olha, essas lágrimas precisam cair do seu rosto, alguém me disse e a obviedade do conselho me deixou atônito. Cale essa sua maldita boca, idiota! Bradei em fúria, mas não havia interlocutor. Estaria eu pirando?

Não é de se estranhar. Estar desempregado é uma desgraça. Você perde a noção do tempo e o dia passa. Às vezes você faz malabarismo com as horas e se sente estranhamente produtivo. Às vezes tudo demora e você se pergunta suas razões em estar vivo. Um pingo de existencialismo no meio de uma tarde. Uma velha ferida repentinamente aberta novamente arde.

Ainda assim, eu tenho me preocupado com a minha memória. Lembro-me de coisas triviais e esqueço o que não deveria me esquecer. Recordo-me de países distantes, mas me perco do que deveria fazer. E a vida continua e eu aqui. Às vezes sinto que nunca mais serei capaz de sorrir.

É quando levanto ou me levantam que eu sinto o peso da sentença. Por tanto tempo fui tanto, mas eu já nem sei a diferença. E continuo como se me existisse uma obrigação em continuar. Desço até a esquina acompanhado por meu cachorro. Eu olho para os cantos. Ele mija nas moitas. Escutamos os uivos e os barulhos da noite silenciosa. Todos temem a madrugada, mas nós somos os donos dessas horas.

Em casa me vejo e tenho um sobressalto. Não sou um poema de Cecília, mas eu não tinha esse rosto assim tão magro. A barba falha, mas eu já nem ligo. Que é que me importa se alguém vai se sentir seduzido? Vou até a cozinha. O que faço para comer é suficiente para sobreviver, mas geralmente sinto fome. Que é que alimenta a alma do homem?

Os meus cabelos lembram o matagal de um terreno baldio. Meus olhos representam um vitral que me faz luz neste mundo sombrio. E eu sinto frio, mas não tanto assim, pois penso que outros estão congelando por aí. E daí? A sensibilidade própria possui mais representação fática do que qualquer notícia alheia. Se pensássemos sempre ao longe, não teríamos motivo para a felicidade e a vida seria sempre feia.

A madrugada entorpece meus sentidos e eu continuo com a cabeça tonta. Os objetos do quarto deitam seus olhos vítreos sobre mim, não se movem, julgam-me. Que é que há?

Cogito fazer uma reclamação formal, mas para quem endereçaria a carta? Para a ingrata que foi fria ou para o ex-amigo filho de uma puta. Eu fui correto até o fim, caí, mas vocês perderam a luta. Que é que há de errado comigo? Fui estender minhas roupas no varal e os cabides se enroscaram e me peguei xingando. Acontece é que é gostoso encher a boca para soltar um palavrão cabeludo, mas as cabides mães não são putas por seus pequenos filhos cabides.

Escrevo muito e digo pouco. Se meus dedos fossem minha língua, eles estariam roucos. Olha, talvez seja tempo de admitir que a noite infinita é uma ilusão. Olha, aproxima-se de mim e me mostra o que você diz ser horrível, sim, eu posso me chocar, mas não vou sair correndo, eu sei, você não está acostumada com esse tipo de homem aparecendo, mas, veja, eu só quero saber que sei o que sei, não, ilusões doem mais, não, sim, mas eu te falei a verdade, você precisa prestar atenção, sabe, eu não sei mais o que dizer, porém, eu sei que você devia me ouvir melhor. Olha, os olhos quase se esquecem de como olhar alguém tão brilhante depois de passar muito tempo no escuro. Do que é que eu não deveria estar falando?

Gasto palavras e impressões digitais para continuar com a escrita. A cabeça dói, mas a dor é bendita. Quanto mais meus sentidos dormem, mais se revela minha parte bonita. Não tenho medo do que me embriaga e nem do que me excita. Você foge ao perfil, mas, olha, eu decidi que você veio para ficar. Se quiser partir, tudo bem, mas eu nunca vou voltar. E madrugada adentro segui sentindo fome. Matando tempo, dentro, ao centro, eu fico enquanto o resto do mundo some.

Gasto o que resta de mim em mim, pois preciso continuar. Veja, você sabe que eu sei, mas, olha, talvez seja melhor se afastar. Não, você não entende ou pressupõe de maneira errada, seus silogismos são falhos, suas analogias são banais. Sou fácil de lidar e posso fazer qualquer pessoa feliz. Por outro lado sou vidro frágil, caco afiado e apontado, disposto a sangrar quem tentar a minha salvação. Se você descobriu como ficar, cuida bem do meu coração. Não posso me demorar onde não há dedicação.

A manhã surge desbotada no horizonte e eu continuei esperando em vão. A luz se desdobrou pela cidade e iluminou o meu coração. Nuvens cobriram o céu, tornaram tudo nublado e eu vi as pessoas como são. É triste entender a vaidade, notar-me como um dos de verdade, partir para a ação. Sinto vontade de chorar, mas me abafo. Quase fui aprisionado, mas fui salvo. E a vida seguiu e eu fui caminhando como quem entende pouco sobre algo e nada sobre muitas coisas. Espalhei, porém, uma palavra que ouvi diversas vezes e ensombrou meus revezes.

Tudo que é fácil quebra. Talvez eu seja a exceção da regra.

Sonho dos Esquecidos – Parte 1 – Maura.

     Maura observava a televisão e somente a televisão. Ouvia ecos de vozes que, ela juraria se ainda pudesse falar, soavam simultaneamente próximos e distantes.

Mãe.

Ela não entende mais.

Mãe.

Ela está aqui, mas não está.

Mãe.

O pai se foi há anos. É coisa de…

Família é assim mesmo.

Ela deu azar. O Alzheimer é genético.

Sim.

Mãe, a senhora quer alguma coisa?

Mãe, a senhora está com frio?

Mãe?

     As palavras passavam pela memória de Maura como se estivessem passeando apressadas em um shopping com a urgência de evitar a cobrança do ticket do estacionamento. Elas seguiam trôpegas, como se estivessem embriagadas, para os recônditos da cada vez mais inconsciente consciência de Maura. Ela ainda se lembrava de coisa ou outra, sabia diferenciar os seis filhos pelos sons das vozes e pelos ritmos das falas. Não se esquecia de que havia dois que jamais a visitavam, um deles homem e a outra uma mulher, mas como é que ela poderia reclamar na atual conjectura? Não tinha voz. Maura suspirava, mas seus pulmões eram tão fracos que os filhos não distinguiam uma arfada de ar simples de uma respiração prolongada. A velha senhora estava totalmente entregue, ainda assim, era obrigada a escutar os resmungos de quem dividia o ambiente com ela.

Ele foi embora, Paula. Descobriu sobre os meus dois casos. É, eu sei que você é uma santa e nunca faz nada errado, mas eu fiz.

Engraçado. Eu achei que ele fosse um bundão incorrigível.

Eu não sei o que eu achei.

Você vai sentir a falta dele agora, irmã, mas ele não vai sentir a sua. Quer água, mãe?

Por que você defende ele? Eu sou a sua irmã!

Você é a pessoa que errou. Fosse você mesma a mamãe ou o papai, que Deus o tenha, eu ainda falaria sobre o seu erro.

Por que você é tão má comigo?

A minha honestidade te fere? Você foi ruim com as pessoas por anos. Parece que nunca aprende.

     Maura nem se recordava de como a alimentavam, mas já não fazia tanta diferença. A vida era uma tragédia sem importância agora que ela era a extensão do cômodo, apenas uma nova parte envelhecida da mobília. Quando se lembrava de sentir e via, enxergava com atenção tudo ao redor, porém, mantinha-se imóvel. Os gestos que era capaz de fazer com a cabeça fugiam à compreensão dos filhos. Ninguém entendia o vagaroso menear de seu pescoço. Os olhares cheios de significados eram respondidos com frases confortáveis, repletas de pena na intenção e na réplica falada. Maura se sentia velha para isso e seus lábios formaram por um instante seu antigo e discreto sorriso juvenil, afinal, ela estava realmente velha para qualquer coisa. Suspirou outra vez. Maura se recordava de que uma ou outra vez os filhos haviam conversado sobre a infância compartilhada e as melhores refeições que mamãe preparava. Uma ou outra vez discorreram sobre memórias felizes. Uma ou outra vez o mundo real, qual ela já não tinha mais certeza da realidade, voltava a ser palatável para quem se acostumou a sentir o gosto de coisas ruins ou a não sentir qualquer gosto sequer.

Água.

Mãe?

Mamãe? A senhora aceita água?

Acho que ela já ficou surda.

Por que perguntamos se ela aceita água? Ela não responde mais.

Precisamos conversar com ela para estimulá-la.

Estimulá-la com qual finalidade?

Que horror! Você parece tão fria!  

Seja racional. Ela parece ouvir algo?

Ela pode ser surda, mas definitivamente não é cega.

E como você sabe?

Olha o jeito que ela assiste a televisão.

É.

É o quê?

Parece que ela presta atenção.

Pobre, mamãe.

Se você diz que sente essa compaixão deveria aparecer mais vezes.

Pelo menos eu me importo de verdade em aparecer.

Eu sei bem como se importa…

Sua rata egoísta!

Sua porca interesseira!

     Sobre uma coisa, porém, as filhas estavam certas: ela gostava de mergulhar profundamente na televisão.     

    Foi em uma terça-feira do mês de janeiro, não que Maura fosse se lembrar da data, mas havia assistido a televisão por volta de oito horas consecutivas. Os filhos não estavam presentes, mas ela também não deu pela ausência deles. A enfermeira que ficava na casa algumas vezes na semana falava em voz alta com seu namorado na sala ao lado. Suas conversas eróticas seriam facilmente escutadas se houvesse mais alguém por perto, mas ela acreditava piamente que a senhora Maura havia passado para a outra vida, deixando só o corpo, uma sombra vaga que fica e habita, mesmo quando todo o resto insiste, implora, para ser deixado para trás. A indiferença era a única característica que marcava a velha senhora. Sentia como se toda a indignação de evitar conflitos e situações dignas de asco fosse apenas um privilégio da juventude. Respirou profundamente, mas ainda que alguém estivesse por perto, não teria notado a diferença entre a leveza e o peso. A enfermeira seguia na chamada.

Cale a boca, seu idiota. Ela está vegetativa! Só a carcaça envelhecida fica ali o dia inteiro. Sim, eu sei o que estou falando. Você pode relaxar. Eu vou…

O que você vai fazer comigo?

Você não dá conta.

Cala a boca.

Eu já disse que a velha é surda.

Se eu ligar a televisão ela fica parecendo um bebê.

Você pode aparecer hoje?

Ela dorme no sofá. A gente usa a cama grande.

    A enfermeira estava parcialmente equivocada sobre a morte precoce da senhora. Maura se sentia tão bem quanto uma mulher de noventa e quatro anos podia se sentir. No começo, quando perdeu os movimentos, irritava-se com a incapacidade de trocar o canal da televisão, mas aprendeu a gostar de tudo o que estava passando, inclusive dos esportes. Naquela noite especificamente, ela juraria se pudesse falar, sentia-se completamente confortável com a programação. Na televisão A Sociedade dos Poetas Mortos havia encerrado para, em seguida, começar a sessão da madrugada com O Exterminador do Futuro. Depois de envelhecer, quando se percebeu incapaz de se expressar, Maura se reconheceu como uma grande fã do famoso ator Arnold Schwarzenegger. Talvez lhe faltasse versatilidade na interpretação, admitia, porém, adorava um brutamontes com cara de maluco que era capaz de explodir tudo. Estreitou os olhos para prestar melhor atenção no filme e sentiu o cansaço lhe pesar. Não era tarefa fácil ser uma velha que vivia para assistir TV. Maura fechou os seus olhos, sem nunca saber se os abriria no dia seguinte. Havia inúmeros relatos de pessoas que morriam durante o sono, ela não estava livre da ameaça da morte nem durante o repouso. Os lábios se abriram discretamente em um sorriso fraco, que desapareceu em instantes. Ela honestamente já não se importava em viver ou morrer. Cada novo dia era quase igual ao anterior, só os filmes eram diferentes. Quando fechou os olhos naquela noite, Maura nem desconfiava do que a esperava quando despertasse. Tudo seria diferente na próxima vez em que abrisse seus olhos.