Sonho Lúcido

Flocos gelados despencam do céu
Derretem em contato com minha pele quente
Este sonho lúcido é muito antigo
Observo um campo florido e um lago
Reparo que o reflexo na água não é o meu
Eu enxerguei o seu rosto desde a primeira vez
Eu soube desde o primeiro encontro
que eu nunca me esqueceria do seu nome
Os batimentos cardíacos das estrelas estavam altos
A ansiedade do Universo criava uma tensão nova
Divindades matreiras falavam por metáforas
Será que algum dia estive acordado?
Flocos gelados despencam do céu
Derretem em contato com minha pele quente
A febre que sinto nunca mais passou
Os fantasmas que existem me zombam
Ridicularizam-me pelos grito que não gritei
e por todas as flores que amo e morrem
A vida é fugaz e o próximo verão se aproxima
Eu soube desde o primeiro encontro
que eu nunca me esqueceria do seu nome
A cadeira reclinável do avião estava quebrada
e eu queria te contar que vi colchões nas nuvens
Flocos gelados despencam do céu
Distantes da minha pele quente
A febre que sinto nunca mais passou
O futuro é uma brincadeira de mau gosto
Personificam em mim esperanças e promessas
Sorrio e a tristeza marca meu semblante
Sou como um Deus esquecido e não choro
Sou como um Deus esquecido e faço o que devo
Gotas de chuva despencam do céu
Molham minha pele durante a caminhada
Estou em uma praia de areia branca e mar bravo
Sou como um Deus esquecido e não sangro
O sal das lágrimas é igual ao sal do mar
Deixo pegadas por onde passo
Os fantasmas brincalhões me perseguem
E os cavalos nas dunas soam como um milagre
lúcido o bastante para dois mundos
Fecho os olhos e me perco das convicções
Este sonho lúcido é muito antigo
E eu soube desde o primeiro encontro
que eu nunca me esqueceria do seu nome
Agora a vida segue e me torno melancólico
Sou como um Deus esquecido e não choro
Estou conectado com algo imenso e terrível
O nome que preciso proferir ainda não foi inventado
Devo conhecer o nome dessa coisa antes de ir
Mergulhar na escuridão profusa do céu noturno
Essa jornada é extremamente solitária
Flocos gelados despencam do céu
E desejo sentir o gosto da neve
Ainda que morra congelado
Este sonho lúcido é muito antigo
O sangue escuro está em ebulição
Abandono todos para compreender
Livro-me de tudo para ir mais longe
Agora a vida segue e me torno melancólico
Tudo é fugaz e o próximo verão se aproxima
Mas eu soube desde o primeiro encontro
que eu sempre me lembraria do seu nome. 

Quem é você?

          Eu havia me classificado para a quarta etapa de um campeonato de videogame. Inadvertidamente um menino de uns 11 ou 12 anos de idade comia Doritos perto de mim e, observava ao meu desempenho no jogo com uma espécie de interesse preguiçoso. A nova geração poderia ser um pé no saco, eu pensei, mas mantive a acidez de meus pensamentos distante da radicalidade com a qual eles se insinuavam. Do lado oposto ao comedor de Doritos, outro menino jogava videogame também, creio que Super Metroid, para Super Nintendo. Costumava durante à infância admirar meus primos Rafael e André, principalmente este último, por ser quem mais se dispunha a zerar os jogos difíceis. Àquela época eu acreditava que crianças mais novas não eram capazes de vencer em determinados jogos, coisa qual descobri pouco tempo depois ser pura bobagem. Uma sirene soou e os jogos todos foram pausados imediatamente. Havia cerca de quinze crianças e eu. Cogitei ser uma criança sem ter me notado assim, confesso, mas não me recordo agora como, mas não sinto como se a minha idade pesasse no ambiente. Parecia, no entanto, somente um daqueles adultos tidos como estranhos, tão deslocados em uma festa que se dispunham a jogar videogame com as crianças. É preciso alimentar simpatia para com quem opta pela honestidade e pelos jogos. A sirene produzia um barulho escandaloso que impeliria pessoas comuns a taparem os ouvidos, mas não foi o que fizemos. Estendemos as palmas das mãos, como quem aguarda um pedaço de pão ou algum tipo de recompensa e, permanecemos calados. Sujeitos altos trajados com uma vestimenta que lembrava uma roupa de astronauta entraram e utilizaram aparelhos que faziam grandes bipes para medir nossas temperaturas. Quando chegou a minha vez, o aparelho reagiu e emitiu um bipado diferente, um bipado que soava como um alerta de perigo. Os astronautas todas entraram em desespero, mas não perderam a organização no Modus Operandi. Aos gritos de isolem as crianças, deixem só o contaminado, traga a outra máquina, eu observei estático o alarde que faziam sobre a minha vida. Não me mexi. Dois astronautas trouxeram uma máquina mais pesada e a posicionaram diante de mim. Ainda estava imóvel. Quando ligaram a máquina, um ruído insistente, chato, iniciou-se. O zumbido durou apenas alguns instantes. Um dos astronautas deu um passo para frente, repousou sua mão enluvada no meu ombro esquerdo e disse: era alarme falso. Você não está com o vírus.

           Andei com rapidez por uma galeria e quando me dei conta, eu estava já em um shopping. Enfurecido com o resultado falso positivo do teste e a acusação da minha irreal contaminação, eu abandonei as outras crianças com os videogames. Tomei uma pequena xícara de café expresso e resmunguei sobre pagar o que havia pago, assim, eu reconheci que, no mínimo, eu deveria ter me negado esta oportunidade. Distraí-me com o pensamento inútil sobre a verdadeira natureza da liberdade. Esta consistiria em ceder aos impulsos ou controlá-los? Deitei, logo na sequência, minhas preocupações todas para algo mais afastado da subjetividade, também me sentia sem paciência para discutir a metafísica, assim, quando a atendente me perguntou sobre a secura do tempo, ganhou de brinde o meu sorriso mais largo e sincero. Eu a chamei pelo nome, ela enrubesceu e, eu sorri mais uma vez antes de me despedir.

            Mal havia me virado para sair do Café do Ponto e, quase trompei com uma vendedora. Eu a conhecia, provavelmente, na realidade, confesso me perder aqui e agora na sinceridade deste tópico. Eu a conhecia? Não importa, mas ela agia como se me conhecesse. Quando alguém te chama pelo nome, sabe de todas as usas necessidades e te guia com um toque suave nas mãos, você aceita de bom grado o passeio, ainda que o item qual ela queira te vender seja a última coisa qual você realmente queira comprar. Foi assim que uma vez me vi na cidade de Brasília com óculos-escuros novos, ou seja, é preciso tomar cuidado com gente muito decidida. A vendedora da vez disse, nesta ocasião, que sabia exatamente o que eu precisava. Descemos para o primeiro piso do shopping e ela olhava para trás, de minutos em minutos, conferindo se eu ainda estava a segui-la.

            – Para falar de assuntos assim, somente em lugares sérios, Guilherme.

            – Como você sabe o meu nome?

            – Ora, nestes dias, que vendedora que se preze não conhece o cliente?

            – Está bem. Onde vamos?

            – Chegamos. Este é o lugar ideal para a nossa conversa. – Quando me dei conta, estávamos subindo a escada rolante que fora feita para pessoas descerem. A minha perplexidade deve ter ficado nítida no rosto, porém ela disfarçou com maestria o exagero da reação. Exagero? Perguntei-me e respondi, claro que não, afinal, eu estava andando e ela também, ambos os dois sem sair do lugar.

            – Uma escada rolante?

            – Não se prende nos detalhes não importantes, meu bom homem.

            – Certo, isso está estranho, mas suponho que não seja o fim do mundo. Posso me concentrar em andar e falar com você, mas teremos problemas se alguém resolver descer.

            – Ninguém vai descer, Guilherme. Vamos falar da minha razão de estar aqui?

            – Graças a Deus! Eu estou curioso a respeito disso faz alguns minutos.

           – Então sua curiosidade dura pouco já que está me seguindo faz algumas horas, Guilherme. – Ela sorriu um sorriso de boneca e senti um calafrio. – As maquiagens, Guilherme, separei as que melhor se encaixam como presente para aquela sua amiga.

            – É mesmo?

            – Ou era para sua namorada?

            – Não me lembro ao certo.

           – Você disse que uma tal de Francisca estava muito interessada em maquiagens para mulheres negras. Você quer ver os produtos?

            – Quero.

            – Diga lá, Guilherme. Sua namorada é negra? – Meditei sobre a minha resposta. Não, Francisca não era uma mulher negra, mas estava fazendo pesquisas para o trabalho de conclusão de curso que questionavam e explicavam a ausência destes produtos e o que deveria ser feito por algumas marcas para que essa lacuna fosse suprida. Em países como os Estados Unidos, mulheres negras não encontravam tantos problemas com isso, mas no Brasil, por exemplo, era quase impossível que uma mulher negra encontrasse uma maquiagem adequada à coloração da pele.

            – Não… Na verdade, não.

            – Então você não pretende comprar comigo, Guilherme?

            – Bem, eu…

            – Diga-me agora o seu propósito. Estou aqui para lhe ajudar, como sempre.

            – Eu só tenho uma curiosidade legítima a respeito do assunto.

            – Ainda bem que me disse! Eu pensei que fosse me enrolar durante a tarde inteira. Eu sei suas respostas, Guilherme, sei da sua paixão por solidão, sei dos seus segredos e sei, sei mesmo até os produtos que você quer comprar e eu poderia te vender, mas se hoje estamos aqui por causa de uma curiosidade legítima, siga-me.

            A vendedora indicou para que eu descesse a escada rolante e foi o que eu fiz. Ela passou por mim e deu uma piscadinha. Chamou-me para segui-la e lá me vi atrás da mulher outra vez. Passamos por várias mesas de ponta cabeça em várias praças de alimentação. O visual lúgubre era comum aos que saíam tardes das sessões de cinema. Guilherme, outrora, estimulava a tradição sagrada de ir aos cinemas em todas as segundas. Os olhos marejaram e ele nem teve tempo de pensar sobre. Continua seguindo a mulher, que andava ligeira e os dois passaram por dezenas de lojas fechadas. Enfim, a vendedora entrou em uma loja e seguimos rumo ao estoque que estranhamente levava até a rua. Na saída para a sociedade, porém, havia arcos altos que surgiam do asfalto e diminuí o ritmo quando fui, vagarosamente, atravessando-os.

           – O que está acontecendo aqui?! – Tudo havia ficado mais obscuro. Algo sinistro pairava nas sombras, aguardando. A voz da vendedora respondeu fracamente de longe.

            – Você está no local que me pediu, Guilherme. Bem-vindo.

            – Que porra é essa?! O que você quer comigo?!

            Abri os olhos e vi a televisão do quarto. O filme A Viagem de Chihiro entrava nos seus últimos trinta minutos e eu me peguei suado na minha cama. Fechei os olhos como que para aceitar que eu estava sonhando e fui transportado de volta aos arcos. A voz novamente surgiu.

            – Vamos, Guilherme. Faça o que tem que fazer. Não era isso?!

            – Quem é você, vendedora?!

         – Quem é você, Guilherme?! – A pergunta o revirou e ele sentiu subitamente uma vontade de vomitar. Desta vez não era a voz da vendedora e sim a sua própria voz.

            – Quem é você, Guilherme?!

            Guilherme se sentou ao banco e sentiu que um monstro se levantava do chão. Tudo era incerto, tudo era irregular. Abriu os olhos e estava sentado na cama. Olhou para a televisão e agora ela estava apagada. Acendeu as luzes porque estava assustado. Acendeu as luzes porque, nesta noite, talvez não existisse um pedaço de escuridão que fosse saudável. Acendeu as luzes porque a pergunta ainda revirava e ele relutava, mas falhava em ter uma resposta concreta. Quem é você, Guilherme? Acendeu as luzes porque não sabia responder a uma simples pergunta.

Para mudar o mundo

Para mudar o mundo, primeiro, é preciso admitir a insatisfação com as coisas. Se este não é o cenário ideal, reconheça ansiar por mudanças, reconheça-se em seu papel de mudar seu destino e tome bastante cuidado, pois o sonho de mudar o mundo às vezes muda o sonhador (Humberto Gessinger).

Não se preocupe por estar no chão. Os melhores e os piores já caíram e estiveram exatamente no mesmo lugar qual você se encontra. Não é sobre permanecer a vida inteira em sobriedade, imaculado ou livre de constrangimentos e consternações. É sobre entender a leveza e o peso, a liberdade e a responsabilidade, a tristeza e a felicidade, o caos inevitável e a paz absoluta. Certas coisas vão se repetir até o nosso derradeiro amadurecimento. Quando aprendemos, é raro cometermos os mesmos erros.

Se os homens fossem constantes seriam perfeitos, afirmou Shakespeare, mas somos factivelmente falhos e frequentemente nos despedaçamos. Quase todos se escondem com o pretexto de não conseguirem enxergar, mas quando todas as máscaras caem, você realmente fixa os seus olhos naquilo que vê?

Recolher cacos é sempre um trabalho penoso e talvez você dê sorte em estar perto de alguém que saiba tomar cuidado com vidro, pois é difícil remontar, reerguer, reestruturar. Quando ainda no chão suas pontas afiadas estão prontas para ferir a mão de quem ousar tocar, de quem se sujeitar, de quem for suficientemente louco para cruzar os limites e assumir o risco de sangrar por você. Se você é o catador de cacos, eu recomendo apenas cuidado com as hemorragias. Há quem fira pelo prazer de ferir.

A névoa densa outra vez toma conta da cidade e você deixa de enxergar todo o resto. Sua angústia cresce quando repentinamente só enxerga seu próprio corpo, estranho, irregular, quase como se ele não lhe pertencesse. Você age, mas não se sente dentro de você. Uma espécie de monstro estranho tomou posse e suas memórias sobre certas fases são ébrias e entrecortadas. Descemos uma cortina diante das coisas que evitamos ver nos outros e em nós mesmos. Despreparados para a troca de pele, escolhemos nos igualar por baixo, fazemos incentivados por pessoas alheias, guardamos souvenires em recônditos secretos, sejam eles materiais ou não. Você pode se esconder bem, mas nada te afasta do seu reflexo. No fundo, você sabe bem quem é. Talvez secretamente acredite que mereça um prêmio ou uma punição pelas suas atitudes. Se eu não mudar o mundo talvez o mundo me mude. Alguns se regozijam pela autopercepção, outros cantam em voz alta suas lamúrias. Você se envergonha ou se orgulha de quem é?

Levantou já? É manhã outra vez. A escuridão que sugeria infinitude, enfim, morreu. Você estava apavorado, eu notei, mas me imaginou mais forte do que eu realmente sou, pois o negrume da madrugada jogou seu pesado cobertor em cima de mim também e eu senti uma sufocante vontade de chorar. Não chorei. Fiz-me forte, pois eu precisava ser o mais forte, orgulho bobo de quem se levanta quando o resto se deita, de quem se ergue para o sacrifício, de quem levanta correndo para ouvir o barulho estranho dentro de casa, de quem sabe que deve ser o primeiro na linha de combate, ainda que este geralmente seja o primeiro a morrer.

Você sente medo e eu sinto também. Não é diferente com qualquer outra pessoa. Muda-se a forma do medo, mas eventualmente todos se sentem aterrorizados. Já congelou em momentos decisivos? Fraquejou quando deveria ser mais agressivo? Acalme-se e respire fundo uma, duas ou dez vezes. Você é mais do que suas angústias e revezes. Está pronto para tentar de novo? Recomece amanhã. Por hoje, eu apenas recomendo que faça um café forte, beba muita água, coma sua comida favorita, saboreie chocolates amargos, veja a beleza de algo sutil e durma bem.

Nós somos o que fazemos de nós e não o que deixamos fazerem de nós. Não seja aquilo que tentam fazer de você e seja mais amplo nas suas angústias. Você não é o único atormentado por problemas e com a vida complicada. Não pode sofrer pelos outros, mas tampouco deve agir como se você fosse a única pessoa relevante no universo inteiro. Evite o pedantismo, precaução com os silogismos, cuidado com o que come, pois é preciso cuidar do corpo e da alma. Vá em frente, vá sempre, mas vá com calma. Acorde após sua curta noite de sono, consciente de que amanhã tudo começa de novo, até o dia em que, enfim, a vida termina. Para mudar o mundo é preciso estar bem disposto, então, acorde e lave o rosto, desafie o que lhe foi imposto como sina.

Para mudar o mundo precisamos aceitar quem somos, sem perder, entretanto, a consciência de que sempre é possível mudar para uma versão melhor. Seja você.

Feitos para durar

Noutra noite de aventuranças
Vislumbrei
estranhas cenas
Tardios sonhos

de esperança
contidos nas

entranhas de poemas
Devaneio com um

corpo e uma valsa
Boca, toque, aproximação, pele
Sinto-me morto com uma lembrança falsa
Poucas roupas,

choque, vibração,
Estou entregue
Acordo entorpecido sem saber onde estou
Ela se aproxima e me dá um beijo de café
Esvanece o perigo diante do rosto do amor
Ela é sina e se denomina minha nova fé
Envolvo-a com meus braços e sussurro
quando envolve todo o espaço aquele perfume
Ainda que tudo soe escasso e escuro quando fracasso meus olhos encontram o lume
Na madrugada densa nos entregamos completamente
Espiados integralmente pela noite enluarada
Dada nossa sentença suspiramos lentamente
Suados e contentes não nos arrependemos de nada
A beleza hipnotizante some com o raiar do dia
Enquanto rascunho homenagens em meu caderno
Àquela que personifica o bailar e a poesia
Que se tornou o testemunho de um conto eterno
Os risos histéricos e invejosos ficam roucos
Pontualíssima sensação de que é impossível atrapalhar
Rios lodosos que afogam tantos loucos
Anunciam a conclusão: foram feitos para durar.