Saiba ser sozinho e adote um animal.

Eu me peguei refletindo sobre a persistência, sobre uma vontade insistente de agir e ser diferente, de não sucumbir diante das mazelas mundanas e concluí que não sabia se tinha esse tipo de força. Você sabe reconhecer suas fraquezas? Li ainda hoje na internet alguém dizer que sofreu centenas de traições e me imaginei assim tão traído. Acho que, se fosse o meu caso, eu me fecharia para todos e escolheria a solidão absoluta, em ordem de me manter seguro, sem me tornar ríspido, sem correr o risco de descontar as minhas frustrações nos outros. Nunca fui traído nos romances que tive e tampouco traí, assim, localizo-me distante deste local de fala, ainda assim, penso-me traído e nas traições que nunca foram e essa ira muda que sinto brevemente me leva para longe.

Os corações sensíveis assim o são, viciados na melancolia, acostumados com a voracidade alheia que contrasta com a paciência serena. Pessoas assim, tão furiosamente delicadas, não raramente são testadas, como se o ato único da vida, esse viver cotidiano, zombasse incessantemente da nossa fibra e nos guiasse para um hedonismo como solução geral. Se me permito a acreditar que devo viver a vida somente pelos prazeres, ignorando todo o resto, eu estou fatalmente perdido. Custam a aceitar, mas há muito mais envolvido. Quando criança e adolescente presenciei muitas traições, umas tantas ocorriam no ambiente familiar, envolvendo o que acontecia na minha própria casa ou nas casas dos meus amigos. Não tanto depois vi esses mesmos amigos copiando o comportamento de seus pais e dando sequência a um ciclo potencialmente infinito. Furioso e frágil, eu bravejava que escreveria minha história diferente. Não falhei, pelo menos não ainda e admito que por vezes não sei de onde tirei forças para ser exatamente quem eu sou. Não subestime a capacidade de ser autêntico. Ser exige esforço e persistência, pois é preciso ser continuamente. Ser é, sobretudo, navegar contra a maré e ter a consciência de si. Aos dezessete, certa feita, minha mãe me olhou e disse que eu estava me tornando um homem incrível e lindo. Aquelas palavras, poucas, retas e sinceras, foram suficientes e me serviram como combustível para que continuasse no caminho para ser alguém de quem eu sempre me orgulhasse, mas e se as pessoas que mais amo de repente me traíssem? E se o punhal ensanguentado removido de mim pudesse ter sido a arma de alguém que adoro? O que seria do Daniel nos dias de hoje?

Para ser honesto, eu não sei o que me seria e nem a minha argúcia intelectual pode de verdade prever uma realidade alternativa. Só o que foi realmente foi e todas as outras possibilidades morreram. A dualidade é incômoda e estranha. Fui e sou correto, sem exigir da vida recompensas, porém nunca esperei que houvesse tanta punição. Sim, se você for como eu, um maldito certinho, muitas vezes se sentiu mal por estar fazendo o bem, pois parece que agir direito é digno de castigo. Acho que é por essas e outras que tanto acabam cedendo aos tantos perigos ou sedentos pelos perigos. Eu até brincaria com fogo, entretanto, jamais incendiaria a casa. Sou o último acordado antes dos outros dormirem por sentir o dever de zelar pelos que convivem comigo. Tudo é vago e longe. Acreditava no Amor romântico e eterno e nas Amizades românticas e eternas, até que me dissuadiram destas crenças. Necessitei de quase três anos para, enfim, recuperá-las, mas não foi nada fácil. A vida nos testa ao contrário.

Um dos grandes amigos que tive, uma vez, veio se gabar de uma mulher com quem havia transado. Eu o confrontei, sem dar bola para o assunto e o indaguei sobre o motivo de ter feito algo assim sendo que namorava com outra. O resultado desta satisfação foi catastrófico. Fui eu acusado de ser traíra, afastado do meu grupo de amigos e colocado em isolamento, apenas por não ser conivente com algo que nunca poderia tolerar. Passei anos com pouquíssimos amigos por ter a coragem do embate e meu prêmio foi a retaliação. A pior parte é que eu sentia falta desse meu amigo, ainda que não reconhecesse nele valor moral. Quem nunca deu um “foda-se” para a moral? Como dizia Victor Hugo, “que sejam maus e inconsequentes, mas corajosos e fiéis“. Ele era inconsequente e custo a utilizar a palavra “mau”, porém era covarde e não havia fidelidade dele aos amigos ou aos amores. Sofri pelo afastamento, sim, mais do que eu gostaria de admitir. Tantas horas compartilhadas e eu havia perdido o meu amigo para os meus próprios valores. É muito nesta vida questionar a veracidade de outros amores? Sim e não, entretanto, se alguém que amo passa dos limites, não estou obrigado de forma tácita a me posicionar? Se me silencio diante do errado, vejo-me conivente e aprendi há anos que há silêncios que envenenam. Quando quase havia me convencido de que ser duro, mesmo com as coisas certas, sempre nos afastava das pessoas, a vida finalmente me deu amigos novos, amigos significativamente melhores. Com esses novos eu poderia ser sincero sem correr o risco de que facilmente se ofendessem. Quem exige não se importa em ser exigido e com os meus novos amigos eu poderia esperar um caráter férreo em retribuição. Com essas novas pessoas que apareceram os conselhos eram verdadeiros e entravam direto no coração.

Antes disso, entretanto, aprendi a acreditar na solidão. Se há solidões maléficas, depressivas e sufocantes, há solidões largas, espaçosas, onde se encaixam todos os mundos com seus respectivos países, cidades e praças. Aprendi a acreditar no trabalho, embora não tenha me sentido mais digno. Eu, sempre sensível em escutar os outros, aprendi a escutar os meus silêncios e a amar os meus barulhos. Sem o grande afastamento, eu jamais teria amadurecido tanto. Fazia as coisas da maneira correta por instinto e me esticava para a compreensão alheia por ser empático, entretanto, só após ficar completamente solitário é que me entendi e se entender representa um passo importante para tentar entender a sociedade que me cerca. Não posso me considerar exceção de coisa alguma, se sou tão humano quanto os outros, mas quanto mais você vive e vê, mais chances surgem de encontrar pessoas que valham mais que o ouro. Aguardo o fim do expediente pensando nessas pessoas, outrora tão distantes ao ponto de serem inexistentes em imaginação, hoje tão próximas que posso as encontrar em algumas horas. Toda essa noção é estrangeira e confusa e sofro, porém, imagino-me feliz em breve ao chegar no meu próximo destino e, enfim, encontrar-me com pessoas que me tornam mais alegre e me tornam ainda mais efusivo, apenas por existir. Abraço-os ou aperto suas mãos e os nossos sorrisos são luminescentes. Sim, eu os amo e sou amado de volta. Ouvi muitas vezes sobre o quanto sou importante como amigo, filho, namorado e isso nunca fica enjoativo. Respiro essas tantas palavras e me sinto bem. As palavras e os gestos são, em regra, o único conforto.

A solidão de Dourados ensinou a mim tudo. A fábrica de tratores, os céus laranjas ou rosados, a poeira vermelha, o coelho branco perto do supermercado, a BR-163, a jornada de trabalho, tudo isso se consolidou em mim como uma amálgama de coisas inúteis dotadas de uma importância celestial. Numa tarde, naquele posto de rodovia, a abelha gigante que sobrevoava o meu energético venceu. Não sei se faria tão bem para seu corpo diminuto o energético e imaginei que o coração fosse uma coisa insignificante, mas a abelha bebeu e depois disparou rumo ao desconhecido, mostrando-me sua coragem selvagem, provando meu erro. Aquele coração suportava mais do que eu supunha. Eu nada entendia de abelhas. O Nada ensina muito sobre o Tudo. Só o silêncio que traz sentido aos barulhos. E então eu absorvia da vida a própria vida e me preparava para algo que não sabia. Acumulei decepções e fui o príncipe de horas sombrias e me vi esquecido e distante. Nas sextas e sábados e domingos eu trabalhava. Todo o resto fumava, bebia e fodia. Eu era o único esquecido pela humanidade e longe do que me fazia humano, eu me reinventava do zero, como se tivesse acabado de nascer ali. Busquei não me ressentir com os outros, pois eventualmente seriam eles isolados e eu me divertindo. Quem nunca pôde viver um período de isolamento não tem sequer um parâmetro mínimo, básico, para o autoconhecimento. A solidão nos ensina a buscar nós mesmos, conhecer essas pequenas e preciosas coisas que revelam nosso propósito de vida. Fui talhado por essas noites infinitas e vivi o sábado sem fim. Só por ser só é que ainda tenho todos os sonhos do mundo em mim. Por vezes, ainda que quatro anos tenham se passado, eu fecho os olhos e me enxergo preso naquele sábado dolorido.

Olhos fechados. Imersão. É sábado novamente, 2018. O que eu posso fazer além de ficar recluso? Ir na pizzaria? Entrar em uma festa como penetra? Não, eu não conheço ninguém nessa cidade. Sou muito afável e polido para as zonas; muito direto para o romance, muito tímido para fazer amizades e estou cansado de ser engando por mulheres nos aplicativos. Só eu sou quem sou e mais ninguém é quem deveria ser. Tantos questionamentos sem respostas e um bafo de morte me seduz dizendo que tudo se iguala e que um dia virarei pó. Eu, resignado com a solidão, devo aproveitar então a condição de ser só? Como se aproveitar se a solidão é assustadora? Tenho medo de mim ou do que não conheço ainda? Eu preciso acordar. Eu preciso me acordar. Alguém me sacuda agora. Eu quero muito sair daqui. Tanto faz Campo Grande ou Paris. Eu quero qualquer cidade que não seja essa e qualquer dia que não seja sábado. Alguém me acorda longe. Emersão. Olhos fechados.

Quatro anos depois e me vejo lá naquele passado sem ter a menor noção de mim. O sábado infinito vive a uma janela do presente. Eu vivia em automatismos, quase robô de mim mesmo, com ações previsíveis e espelhadas. Nessa época, havia uma moça do supermercado que sorria para mim e só um ou dois anos depois percebi. Um jovem vagaroso, descuidado e inocente. Ela queria ser convidada para sair, porque aquele sorriso era exclusivo, íntimo e intransferível. Eu, ingênuo de tudo, confundia com uma simpatia natural, mas só em uma epifania notei que ela nunca sorria para os outros. Tudo o que não soube naquelas tardes, eu aprendi depois. Assim vai a vida. Acontece o tempo inteiro, mesmo quando não percebemos. Por vezes até supomos perceber e a ignoramos. Tudo é real, às vezes, até algumas mentiras e é preciso tomar cuidado com o que ensombra e é, na realidade, armadilha. Não é toda sombra de árvore que oferece descanso. Respiro e fecho os olhos. A fúria cessa e me sinto manso.

Se é na ausência que se percebe as tantas nuances da falta de alguém, pergunto-lhes, como é tão comum que nos relacionamentos distantes ocorram tantas traições? Como alguém, ao perceber extenuada a falta de outrem, preenche-se de coragem e consegue trair alguém? Vileza cruel e sombria! É por isso que me criei contra os relacionamentos ao longe, por ver neles a maior possibilidade de imaginação e amor, até se provarem mais venenosos do que a maioria. Cumprem a falta de um em qualquer outro e essa astúcia estética me soa perniciosa. Odeio os relacionamentos ao longe por deduzir que se encerrarão em dor e sofrimento. Se o amor precisa tanto de presença, crer na distância faz a diferença? Estamos apostando no desconhecido a nossa fé cega ou isso é outra coisa? Não entendo agora, portanto, não me meto. É mentira que cada um sabe o que faz, mas é verdade que geralmente não devemos meter o dedo. O que fazer para os esforços se revelarem válidos? Como conseguir a astúcia de tentar de novo após acumular tantos revezes? Como se regozijar com a memória de tantos fracassos? Respiro e medito. Há partes que entendo e repenso. Há partes que ainda não entendo e faço as pazes com o desconhecimento. Quem sabe daqui uma década eu seja sábio o bastante? Vou perder para a vida, mas pretendo existir longe.

Aprendi que a minha linguagem do amor é o tempo de qualidade, assim, esforço-me ao máximo para estar presente e ser uma boa companhia na vida das pessoas que me cercam. Todo o restante perde o encanto quando estão longe de mim ou quando, por algum motivo, estão presentes e simultaneamente distantes. A presença física, quando não acompanhada de sintonia emocional, pode ser nula. Não posso me acostumar a ser ignorado, principalmente quando, vez ou outra, sinto a latente necessidade de ser visto. Que fazer de mim quando quem me ama se esquece que eu existo? Respiro e medito. Persisto? Penso a vida inteira e encontro paz, mesmo que não encontre respostas. Cogito a condição de solidão para afiar meus pensamentos e afinar meus conhecimentos. Será que sozinho entenderia parte dessas tantas coisas que me escapam? Por vezes desejo ficar sozinho e me parece que o mundo se ofende, como se eu não tivesse direito de me pertencer. Sou mais dos outros do que meu? Sou overthinker por natureza e se não tento compreender, os pensamentos me matam (ou tentam). Tenho a impressão de que vim falar de sensibilidade e de que acabei por narrar tudo sobre a solidão, mas lhes pergunto: não seria a sensibilidade uma característica marcante de quem aprendeu a conhecer a solidão? Quem nunca se conhece corre o risco de viver fugindo de si mesmo, porém nossos pensamentos são mais rápidos que nós e nos alcançam. O que fazer para não viver eternamente sem esperanças?

“Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates. “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”, como neste relato agudo de Machado de Assis em Dom Casmurro. Aprendemo-nos sozinhos? Interlúdio e respiração ofegante e difícil. O peso ou a leveza? Não sei ainda. Meço meus desejos e posteriormente meus sonhos. Como li anteontem, “nossos sonhos merecem nossa disciplina”. Como tantas vezes falho até nas próximas rimas? Os meus romances aguardam mais palavras e mais coragem. A vida pungente quer me mostrar algo. O que estou deixando escapar? Não tenho convivido o bastante comigo mesmo. Estou sempre claudicante, exausto e queria me deitar em uma banheira de gelo, para restaurar meu corpo. Poderia o gelo restaurar também a minha mente? Qualquer detalhe faria a minha vida diferente. Que sejamos ocultos a quem é alheio e que toda a honestidade do mundo fira os outros, entretanto, quando se olhar no espelho nas manhãs, você deve dizer a si mesmo o que deseja, sem se avexar ou enrubescer. A vida exige que saibamos o que queremos querer.

Bem, sinto que cheguei ao fim destes relatos e sustento um orgulho tosco, quase vil, em apreciar o meu tempo sozinho. Tenho a impressão insistente de que quem não sabe ser só, simplesmente não se tolera e eu, mais do que me tolerar, aprendi desde cedo a me amar. Quem é que passeia no shopping e não repara nas famílias com filhos pequenos? Quem corre nos parques e não para numa apreciação lenta dos animais? Quem nunca se admirou com o sopro súbito do vento que faz as folhas dançarem? Quem nunca deitou no chão gelado de pedra e contemplou as tantas estrelas no teto do céu? Os meus gatos e o meu cão me ensinam todos os dias sobre a importância das coisas frágeis. Que mais me resta dizer?

Saiba ser sozinho, eu imploro, assim, você nunca correrá o risco de se perder das coisas que são realmente importantes na sua vida. E se não tiver animais de estimação, eu recomendo fortemente que arranje um. Em princípio, você sentirá que precisará cuidar deles, mas a realidade que se prova é avessa. Nossos bichos cuidam mais de nós e nos ensinam em menos tempo muito mais sobre a delicadeza, o carinho e o amor, portanto, enfim, altero a minha sentença final. Retifico-a e digo:

– Saiba ser sozinho e adote um animal!

Na manhã de hoje

Na manhã de hoje acordei com uma raríssima vontade de continuar dormindo. Tenho o hábito de ser vagaroso e só por ver lento e enxergar devagar é que compreendo um décimo da natureza das coisas frágeis. Repito há anos sobre maneiras e métodos de prestar atenção, embora eu tenha meu déficit acentuado. Quando criança ninguém sabia do que me chamar, pois eu era distraído, desinteressado, mole e até fútil, pelo menos segundo a língua alheia, entretanto, agora que sou adulto, eu tenho esperança de que as novas crianças sofram menos por serem diagnosticadas com TDAH. Já passei da fase que odiava todos os estudantes de medicina da cidade e superei também a outra fase na qual parecia que todas as estudantes de medicina cultivavam um interesse legítimo em mim. Que é que quer a medicina com a literatura? Não sei e suponho que nunca saberei, entretanto, apesar da arrogância pomposa da maioria dos candidatos a médico, eu sou grato a eles por todos os avanços científicos, especialmente aos neurologistas por nos oferecerem uma saída ao déficit de atenção. Fútil me cabe bem, mas não sou mole e desinteressado, pelo contrário, bem como diz um trecho do Livro do Desassossego “tudo me interessa e nada me prende”. Reconheço em mim essa tendência mutável e a respeito em ordem de me respeita e sentir que faço sentido aos meus próprios olhos.

Os estudantes de direito ficam em segundo no pódio da chatice e podem ser absurdamente desagradáveis em seus tratos advocatícios tagarelas. Falam mil horas por dia e trocam segredos de profissão sem enrubescer. Quando estão cercados de qualquer pessoa estranha, percebi, seus modos se tornam ainda mais afetados, como se o orgulho fosse excessivamente grande para caber no peito. Dotados de um conhecimento exclusivo, falam alto como se falassem russo, para exibição do ego. Confesso, caríssimos leitores, que sou formado no curso, portanto, bacharel, porém é um segredo tão bem guardado que se depender de mim nunca mais falo juridicamente para o resto da vida. Revelar isso me exigiu um quanto de energia.

Outra coisa que constantemente incomoda quem é alheio é o fato de eu nunca ter tentado me tornar um advogado, afinal, qual é o ponto do curso se não vai advogar? Eu fiz o curso, prezados leitores, tendo a única convicção de estar perdido. Passei entre os dez primeiros para Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, porém fui persuadido de que seria um adulto miserável e faminto. Com a fome não se brinca e a minha ingenuidade comprometeu uma das grandes escolhas da vida. É preciso ver, sem hesitação, o copo meio cheio. Foi na metade da faculdade que acabei escrevendo “O Livro de Geffen” e este é ainda até hoje um dos projetos dos quais eu mais me orgulho. Por detestar o direito, procurei maneiras de evitar o curso e fugi da casca, de tudo o que havia externamente e mergulhei fundo em mim, para descobrir. Encontrei motivos bastante concisos para escrever e motivos mais belos para continuar escrevendo. Em regra, eu não cultivo o hábito de me importar com o que os outros pensam de mim, mas se não escrevo, eu sofro e se sofro, pergunto-me de que vale uma vida inteira sem poder se sentir, ao menos uma vez, absolutamente dono de si. Será que uma hora a gente se cansa de ser tão menos por nós mesmos? Aqui e agora, percebo essas nuances trevosas, pessimistas e acho que é porque ainda queria estar dormindo. Seria melhor ter evitado esse dia. A gente subestima uma noite adequada de descanso.

Meu coração não é meu.

Meu coração não é meu,
embora me pertença desde que nasci
Quando estreei no mundo
já tinha uma identidade estética
O meu rosto aprendi a conhecer porque
crescemos todos cercados por espelhos e reflexos,
Entretanto, busco ainda a face original da alma que tenho
Só quem se desvê realmente se conhece um pouco
É preciso mergulhar fundo para deixar de ser oco
Sou um inútil e me chamam de idiota por acreditar
Eles não sabem que todos somos idiotas, acreditando ou não
Suspiro, deito na pedra e fito o céu sem usar fitas
Analiso a forma de uma nuvem branca
Ela dança e se divide até se dissipar
Existe nuvem que quer chover
como se quisesse chorar
Existe nuvem que vai desaparecer
depois de tanto dançar
Os físicos explicarão o fenômeno segundo suas Leis
Só que não há muitos fisicistas que bailem
Fecho os olhos e enxergo novas coisas
Tudo o que saiu da minha cabeça é meu
Amo os espaços vazios e sou incompreendido
Quando me observavam, ainda criança,
vagando e divagando pelo quintal
sempre se perguntavam: – Que será que está fazendo?
Eu apenas fazia, entendendo-me menos ainda
O que acontece dentro do peito é estreito
Confesso que nunca me soube tão bem
Queria ser convicto de tudo, entretanto, emudeço
Será que os desajustados vão além?
Sou uma espécie de confusão acumulada
prestes a irromper em uma certeza
Se soubesse qual parafuso me falta
eu mesmo me martelava até me consertar
Só que sinto que sei quando algo está com defeito
Reconheço tudo que está quebrado
Eu só estou do meu jeito
E tudo o que não surgiu
da minha mente é estrangeiro,
mas não necessariamente mentira
A única verdade que creio é que o mundo gira
Meu coração não é meu,
embora me pertença desde que nasci
Sou eu tudo o que vi
Sou eu tudo o que vivi
Sou eu ainda tudo o que não sei
Sou eu, enfim,
tudo o que nunca saberei
Este coração que não é meu desaparecerá
no dia que o meu corpo se decompor
Sou inútil a ponto de acreditar, que mesmo morto,
sobreviverão os meus versos de amor.

E aí?

Já estava chegando em casa quando o celular tocou e uma voz familiar me disse, e aí, estacionei o carro e respondi e aí o que, honestamente eu não sei, estranha, não tanto quanto você, acho que você tá certa, mas é que você sempre foi bom em ser honesta, eu não tenho sido tão honesta assim e acho que a minha terapeuta tá me julgando por isso, então você finalmente tá fazendo terapia, eu estou, que bom, é bom, sim, e você, eu fiz e parei, não se para terapia, pois eu parei, embora sinta saudade do meu terapeuta, é só voltar, claro que não, claro que sim, então quando se sente falta é só andar de trás para frente e voltar? Não é como se uma ligação rompesse a distância, eu disse rapidamente e só depois senti que a frase tinha sido afiada, quase agressiva, compartilhamos um silêncio estendido e escutei a chuva que começava, e aí, eu disse por reflexo, onde você está, ela perguntou, numa rua, eu respondi, qual rua, acho que você não conhece, a cidade é grande, respondeu azeda, não tanto para quem está de carro, o que isso quer dizer, ela me perguntou e o estado azedo saltou para o melífluo em instantes, nada especial, respondi e senti o ânimo dela arrefecer, nada especial, sabe, eu nunca pensei que você ligaria, eu sei que não, claro, você tinha essa mania de saber, tenho, eu ri e a respiração ficou leve do outro lado, as coisas mudam, sim, muito, o que mais mudou em você, eu não vivo para impressionar ninguém e nem tenho uma pedra na ponta da garganta, eu acho que entendo, algum escritor disse que o estado pleno de liberdade é equivalente a você descer a avenida nu, você está nu, a pergunta dela havia sido capciosa, mas abafei o riso, eu só dirigi pelado uma vez e não foi hoje, agora foi ela que riu e aquele som atravessou passado, presente e futuro, olha, para onde, não, sério, olha, não consegui grandes coisas na vida, porém por enquanto acho que consegui pessoas grandes, pessoas, ela perguntou numa mistura de ceticismo e confusão, sim, eu desci a avenida metaforicamente pelado e exposto em absoluto fui capaz de atrair gente para perto de mim, ela riu, você ficou pelado e atraiu pessoas, perguntou em zombaria, atraí as melhores pessoas da cidade, no mínimo, não digo que do mundo porque o mundo é muito grande e não o vi inteiro, entendo, foi a minha vez de rir, entende mesmo, ela tornou a ficar séria, acho que não, um dia quem sabe, um dia, é, mas não hoje, você quer me dizer alguma coisa, pergunto, é que a garoa está virando tempestade, que garota, garoa, eu repito, ah, ela arqueja, seria uma ideia interessante essa não acha, pergunto-lhe, uma garota virando tempestade, ela pergunta indecisa, toda mulher é meio tempestade, inclusive você, ela ri por um segundo e paralisa sem saber se deveria ficar lisonjeada ou ofendida, foi um elogio, ela bufa e responde, eu sei, mesmo, eu duvido em um provocação, claro que sei, não confundo afeto com ataque, que bom, é bom, sim, é, você me ligou por alguma razão específica, liguei porque ainda lembrava do seu número e pensei em te perguntar como é ficar sozinho por tantos anos, eu amo estar sozinho o mesmo tempo que odeio estar sozinho, quase uma década se passou, não vencemos o tempo, ela afirmou com dureza, não vencemos nada, eu complementei, você pioraria o clima de um velório, ela acusou, eu ri e dei de ombros, afinal, talvez fosse verdade, como é passar tanto tempo assim sozinho, eu ri e expliquei com calma, realmente eu não estou sozinho, você foi casado no Ragnarok quando era adolescente e hoje é casado com as palavras, escrever é uma sina maldita e as frases são traiçoeiras, ou seja, eu jamais cairia no papo do texto, eu estou precisando de um interlúdio, ela respondeu, estradas para locais seguros, eu respondi, ela suspirou e o silêncio predominou. E aí, e aí o que, ainda ninguém, isso não é da sua conta, ninguém nunca antes, isso não é mesmo da sua conta, e aí, fica na sua, tá bem. Eu nunca pensei que me ligaria, você nunca me perguntou, ela disse, o que, se estava tudo bem comigo assim que atendeu a ligação, arqueei as sobrancelhas me esquecendo de que ela não podia me notar, tudo bem com você, mais ou menos e aí, mais ou menos também, não me julgue egoísta, mas fico aliviada, eu suspiro e estranhamente entendo o que ela quer dizer, eu espero que as coisas melhorem pra você, respondo, eu também, ela diz e o silêncio se prolonga até ela rir, quero dizer, espero que as coisas melhorem não só pra mim, mas também pra você, eu sorrio sem emitir sons, elas vão melhorar, eu acho, tomara que você esteja certo, eu não vejo a hora de me aposentar e me dedicar integralmente às palavras, você nunca muda, eu mudei, é claro que não, você não teria como saber, isso é verdade, mas nisso eu estou certa, você é sempre você, lá no horizonte o mundo acabando e você não liga, é o quarto apocalipse e você está no seu canto cuidando do seu gato e dos seus livros e das suas palavras, você diz isso como se fosse ruim, ela pensa antes de responder, não é de todo ruim, e aí, eu indago começando a ficar impaciente, a chuva aperta lá fora e tenho medo de ser assaltado, é uma rua que ela não sabe qual é, mas é perigosa na madrugada, eu liguei para ter notícias, ela diz, quem liga geralmente dá notícias, mas eu não tenho notícia nenhuma para dar, exceto que vai chover amanhã também, não vou lavar minhas roupas então, respondo, eu vou desligar, fica bem então, fica bem você também, o silêncio seguiu prolongado e percebi que outrora ele poderia ter sido preenchido por palavras, eu talvez te ligue outro dia, menti, ela suspirou com um ar descrente antes de desligar o telefone, claro, ainda sabia quando eu mentia. Outrora ainda haveria o que dizer, palavras para preencher o silêncio, porém a tempestade dizia tudo. Outrora, repeti em voz alta e saí com o meu carro para a solidão do apartamento.

Um apelo.

Eu queria fazer um apelo, mas o problema dos apelos é que eles são todos direcionados e ando sem direção ultimamente. O Seu Raimundo ontem me lembrou que se perder é o único jeito de realmente se achar e nessa amálgama de confusões, perco-me e despenco para dentro. Ainda não achei nada no porão de mim. Será que deveria ficar preocupado?

Queria que o meu próximo não, a minha próxima recusa fosse firme. Tenho sido de muitos sins aos outros e recebido raríssimos sins de volta. Eu queria fazer um apelo, um apelo de receber pelo menos alguns sins em troca. É engraçado que o plural da afirmação remeta ao pecado em outra língua, assim, vejo-me obrigado a ser enfático: quero sua anuência e não o seu pecado, porém como vai chegando o meu aniversário, entrega-me o que quiser.

Eu queria fazer um apelo, mas o problema é que todos são direcionados. Queria poder apelar para Deus e dizer que queria uma vidinha simples de escritor, preso em um loft, fadado ao tédio da minha própria companhia. É claro que de vez em quando acordo metade dragão e carbonizo todas as ervas daninhas, porém o dano colateral reflete a morte das flores e isso me lembra que eu também queria fazer um apelo para quem pensa que não vai sobreviver a essas tantas dores. Somos todos talhados para a sobrevivência. O sofrimento tirou o meu ar e a minha paciência, porém ainda estou aqui. Eu me remendei e voltei a sorrir.

Eu queria fazer um apelo, mas o problema dos apelos é que eles são todos direcionados e ultimamente ando sem direção. Que se danem os apelos. O jeito é confiar no meu coração.

o jardineiro.

Avancei para averiguar a avenca
Era uma coisinha diminuta, porém bela
Eu especialista nas inutilidades antevi
que poderia crescer por onde e como quisesse
O trabalho do correto é cometer acertos, assim,
pus-me a regar a planta todos os dias
Sorria enquanto a aguava e lhe pedia paciência
É claro que sabia que um dia poderia estar tão alta
que nunca mais olharia para mim
Também estava cônscio de que talvez me esquecesse,
embora no meu peito entendesse que jamais a esqueceria
É estranho que se me marque a violência
Que me recordem através dos impulsos reativos
Justo eu que sempre me ajoelhei para afagar os seres vivos
Eu que deitei meu olhar dócil para o bosque sem fim e
que me vi acocorado e grato por existir
O peso da sensibilidade exacerbada, da empatia, é fatal
Ainda que você melhore a vida dos outros
São poucos que se lembram que você um dia existiu
Que é essa tanta aversão ao costume?
O que é esse cheiro de memória repleto de perfume?
Que faço para recuperar meu antigo lume?
Esqueço-me, sim, essa é a resposta
Estou vivo, mas oco, sem novas apostas
Condenado ao peso de nunca poder me sentir leve
Em sonhos áureos sou feito de sol e neve
Despenco sem a pressão de ser cobrado e não solto o ar
porque, enfim, tornei-me o ar e parti
Sou invisível ou argênteo, astronauta de prata
Interplanetário não impressionável
Contemplo outros mundos e galáxias e estrelas e sonhos
Quando avistares um animal com a cor do cobre
Quiçá se lembrem de um vislumbre do meu coração nobre
que de tanta nobreza constante e dureza férrea
fez lânguido e embriagado o meu corpo outrora forte
A minha vastidão me fazia invencível, porém
a honra me prostrava de joelhos e defronte aos espelhos
chorava pela solidão e sentença de só poder ser eu mesmo
Suspiro profundo no escuro e eu dentro dos eixos
Por que o breu me assusta se é Nele que existe o Amor?
Por que nada me ofusca esse tanto de dor?
Talvez seja a verdade que uns nascem para se cumprir
enquanto outros nascem para assistir
Quem sabe possa me fazer satisfeito
apenas por me reconhecer e me saber imperfeito?
Libero a minha respiração e recobro o ar
Estava aprisionado dentro da minha ansiedade
Estava insano dentro da minha sanidade
O escuro é onde mora Deus
O escuro é onde mora todo o resto também
Queria ser objetivo e traçar e realizar um plano
Sou errado demais para ser humano
Sou exato demais para ser humano
Estou exausto demais para ser humano
Que me sobra então para ser?
Uma sombra qualquer que se alegra com a jardinagem
A cautela com as flores, a sutileza com os amores,
é o remédio para o meu coração selvagem
Essa expansividade deveria ser domesticada?
Essa vontade de longevidade deveria ser remediada?
Avancei para averiguar a avenca
Tenho regado muitas plantas ao longo da vida
Especialistas nas inutilidades sorri satisfeito
ao notar que haviam se modificado radicalmente
Palmeiras, sequoias, salgueiros, figueiras, sibipirunas
Cada qual enorme e deslumbrante e perfeita
Não adivinhava fragilidade nelas
E fiquei com cara de bobo com a lembrança da fragilidade
No fundo, nas raízes fixadas na terra, ainda têm a mesma idade
Entretanto, altas e imponentes, não se lembram de mim
Engulo meu orgulho tosco e percebo que essa é minha sina
Criar coisas belas, regar, ser esquecido
e seguir para a próxima rima.

Overthinker.

            Escrevo por impulso e insistência, por necessidade e descaso, por prazer e por alívio, por tudo e por nada. Acontece é que penso muito o tempo inteiro, overthinker, qualquer coisa não tão alongada assim, conjecturas esticadas, mas não o suficiente para alcançar o mundo inteiro. Existir sem pensar é exercício de liberdade total. Pensar é sofrer e admito que sou tomado por dores até quando doer não faz sentido. Um grito reverbera no fundo da consciência, mas eu o ignoro. É que nunca esperaram pouco de mim e por isso vivi pressionado. Sou tudo e nada, portanto, é difícil me descrer em absoluto. Vi muita televisão ao longo da vida e agora sou tolo o bastante para acreditar. Eu preciso me desapegar da ilusão de que posso alcançar o que chamo de totalidade. Sou irremediavelmente eu e há dias que me canso. Há noites que me canso e.

            É possível mesmo individualizar um desprezo fulgurante para a figura de um ou outro homem enquanto concomitantemente o amor maiúsculo pela humanidade segue em uma crescente? Li alguns ensaios sobre isso, estudos ou filosofias (ou só discussões) de homens que odiaram um homem em específico e se derramaram em amores pela humanidade. A ideia me faz rir, mas não me arrisco ao teste. Tenho me perguntando qual é a relação minha com os outros e me vejo em um labirinto. O que é que faço do elo com os outros da mesma espécie que eu, esses tantos tão iguais e tão ridiculamente diferentes, que é que me conecta? A conexão que busco é vã ou a ilusão de conexão é necessária para sobrevivermos? O que devo aos outros tacitamente por ser também humano? Os deveres, mesmo os básicos e claros, poderão ser ignorados por uns, ainda que sejam essenciais em um quadro maior? Temos escolha ou somos eternamente vítimas das escolhas que fizeram antes que fôssemos independentes o bastante para escolhermos por nós mesmos?

            Contenho meus impulsos de violência, sim, enraivecido estou, entretanto, liberto-me em pensamentos. Sou livre e me admito imperfeito. Hipócrita? Não, mesmo que me contradiga vez ou outra. Suspiro e liberto do peito o peso do Universo. Fui tudo por saber que sou nada. Se tudo lhes parece sem sentido, isso não me afeta. Não preciso me atribuir sentido para seguir em frente. Acordo e torno a dormir sem motivos e sigo em frente. Erro ou acerto e sigo em frente. A vida é apenas seguir em frente. Estou sendo deixado para trás por muita gente, mas de que isso interessa? Só preciso seguir em frente obstinadamente como sempre o fiz. A felicidade chega e passa. A tristeza chega e passa. A raiva me manteve alerta e o meu orgulho ferido me fez dar um passo adiante e viver coisas inesperadas e bonitas. Toda história triste acaba. Toda história feliz também. Eu hoje me regozijo pela sorte de viver minhas melhores horas. Estão me esquecendo. Estão me deixando para trás e há pouquíssimos que notam. Estão fazendo tudo isso e.

            Para ser honesto, eu não tenho uma resposta para isso. Tudo me escapa, entretanto, capto tudo (mesmo o que me escapa) em um retrato mental fracionado. A minha memória vai se esquecendo de coisas desimportantes e, ainda assim, tenho a capacidade de me lembrar das melhores lutas da WWE, dos melhores gols do Palmeiras, das maiores crises de riso na adolescência, do maior medo da infância. A família por parte de pai era rica e a família por parte de mãe era pobre. Era excitante transitar entre os dois mundos e deixar flutuar a sensibilidade que sentia. Nada que os opulentos me deram valeu um dia mais do que os tomates com sal. Era tudo o que a minha avó poderia me oferecer, mas ela sabia que ao me entregar aqueles tomates, que eram apenas tomates, estava ali recebendo toda a minha gratidão e o meu amor. Sei que divago, sim, claro que sei. Tudo se perde entre minhas fantasias e ficções, entre realidades e encenações, não obstante, eu repito o que li anteontem em uma crônica de Clarice. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos.

            Se não lhes parece, que não lhes pareça. Não vivo para comprovar o vínculo, entretanto, insisto em lhes contar que essa convicção genuína que sinto, esses impulsos livres e amorosos, fazem-me acreditar em heróis, filósofos, santos, loucos e até em mim mesmo. Sim, tornei-me ousado o suficiente para me amar e até para me crer. Se não lhes parece que a minha mente e o meu coração estão ligados à escrita, bem, parecer é menos importante do que ser e sou, sem dúvidas, escritor. Escrevo por impulso e insistência, por necessidade e descaso, por prazer e por alívio, por tudo e por nada. Acontece é que penso muito o tempo inteiro. Penso desde que era criança e acredito que vou pensar até meus últimos segundos de vida. Penso em mais milhares de coisas que não caberão neste texto ou nessa vida. Sorrio e me distraio antes de suspirar. Os pensamentos logo voltarão. Como é frustrante ser um overthinker.

MANCHA.

Estou ficando sem tempo
por estar com muitas horas sobrando
Perambulo nu pelo apartamento
Estranhas coincidências me fizeram
morar sempre no andar mais alto dos prédios
Outras casualidades me colocaram ao lado de igrejas
Vizinho de Deus e alto como os anjos
Gargalho destas notas mentais e bebo cerveja preta
Sou acometido por uma memória sexual
e dedico um tempo na rima mais óbvia
Entro em um banho gelado na madrugada
saio com as costas molhadas e fito o reflexo
Sei que estou ficando sem tempo
Perambulo pelo apartamento, úmido, sutil
Depois ligo a música alta e ignoro os vizinhos
Eventualmente adotarei um gato de rua
Medito sobre o futebol, a poesia e a morte  
Abro a porta da geladeira e como chocolates amargos
Os chocolates, os ovos mexidos, o suco de limão
são os primeiros pilares da minha independência
Gargalho de como é ridículo o termo “independência”
Ninguém nunca poderá existir realmente sozinho
Nesta quinta-feira que já foi sábado
Neste início de março que outrora foi coisa nenhuma
Suspiro e solto o peso todo de minha existência inútil
Filho, parece que você carrega o Universo inteiro no peito
Não conte aos outros, mãe, é verdade, eu carrego
Desdobro-me pelas pessoas importantes e
me reconheço esquecido em meus tantos cacos
Mania repulsiva de me deixar para mais tarde
A música romântica toca na televisão distante
Um bicho que não é uma aranha escorrega pelas teias
A metáfora do ferro e do vinho me abandona
As lições de Rivière agitam minhas moléculas
O propósito é uma loucura obstinada dos teimosos
Pelo menos nós temos a coragem para pensar e gritar
Esses tolos emudecidos pela ilusão do dever de passividade
Como me irritam os que engoliram o manual das boas maneiras
Querem matar qualquer um que seja autêntico
Disseram-me que o fracasso traz lições e falho em aprender
A minha atenção divaga ao sentir o vento ou notar as cores  
Distraio-me da vida quando me agacho e cheiro as flores
Excessivamente curioso acabo perfurado pelos espinhos
O sangue rubro pinga no tapete branco
Não é preciso perdoar os tolos imprudentes
Não é realmente necessário ser independente e rico
Os melhores enganadores mergulham os distraídos em truques
Os feios são belos, os vulgares são polidos e tudo é ao contrário
Ver a verdade é uma infelicidade tremenda
Contenho meus impulsos de distanciamento
Convicções irrefutáveis se agigantam na consciência
Eu sei que há feridas que nunca se fecham
e há manchas que não saem com a lavagem.

A CIDADE FEIA

            Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra. A culpa pode ser do TDAH, da memória, da inconstância, não importa. Não se realizar traz uma clareza sobrenatural sobre a vida. Nunca deixo de sentir que continuar é falhar, ainda assim, algo me impele, por reflexo ou também por distração, a seguir em frente. Quem dera os meus (nossos) mistérios fossem facilmente solucionáveis e a gente não precisasse aumentar o volume da cabeça para continuar processando a quantidade avassaladora de mudanças que ocorrem. Mudo de opiniões, porém me flagro em um esforço hercúleo para preservar minha essência. O que não contradiz o âmago, de um jeito ou de outro, resguarda-me. Há vezes, entretanto, que me pergunto a razão de me resguardar tanto, a razão de não me admitir desarrazoado e cometer loucuras, porque isso tudo flutua distraidamente na nossa cabeça e tudo se sucederá súbito e semelhante enquanto todos compartilharmos o mesmo fim. Despropósito pessoal e outra enxurrada de informações. Na vida a gente aceita migalhas de amor, mesmo sabendo que são migalhas. Queremos todas as lutas, mesmo quando é vazio o valor da batalha. Queremos desesperadamente vencer e sermos lembrados. Precisamos da ilusão de que seguiremos aqui, mesmo depois de mortos, ainda que em um vulto distante de lembrança, um detalhe passageiro na recordação de alguém. É difícil contemplar o reflexo no espelho e ver ninguém.

            São Paulo é uma cidade ambivalente. A realidade crua choca e aterroriza. Pessoas deitadas e esquecidas, muitas delas dormindo, algumas outras pedindo insistentemente e ao mesmo tempo surgem artistas produzindo belas músicas e paisagens únicas e significações. Tudo está ali quase como se não estivesse. O Beco do Batman, agora Buraco de Minhoca, abriga secretamente aventura e prazer, mas me flagro andando solto, distraído e leio uma frase “você se orgulha de quem tanto tenta ser”. A frase me comove e na releitura percebo que esqueci a interrogação, mas tudo fica bem porque há perguntas que são certezas no meu coração. São Paulo é uma cidade feia e intrigante, eu digo com certeza que em quesito beleza não se compara com a minha Campo Grande. Que há nesta cidade antiga e suja que me atrai? Julgo ser a capacidade de tornar tudo indiferente. Existe uma obrigação tácita, algo nas entrelinhas, que te força a abrir mão da vaidade em um limite extremo. Há méis que são venenos. Será que eu abandonaria a minha sensibilidade tão constante acaso morasse em um lugar assim? A feiura não deve ser romantizada, entretanto, percebo-me deificando os especialistas na indiferença como se a abstração definisse quem sabe realmente viver a vida. Quem se aprofunda demais em tudo acaba afogado e foi assim, quase sem ar, vomitando água que parecia nunca terminar, que me desfiz da convicção de que se importar é sempre benéfico. Se olho para todos com a intenção de zelo, eu contenho meus impulsos que urgem por retribuição. Todo ato de amor deve ser genuíno, direto e sem intenções, mas posso eu controlar meu âmago, a minha sede de justiça? Vez ou outra me vituperaram por me assumir cru, incontível e incontido, escancarado. Quando zombam o meu sonho sacro de escrever livros, quando escarnecem dos contos ou crônicas, quando me provocam, eu retribuo com agressividade. Sinto que sou e sempre serei furiosamente delicado e essa indolência, essa indiferença paulistana é inatingível pra mim. Até mesmo os vendedores, que por antecipação supomos que agirão com delicadeza, destratam os clientes tranquilamente, como se a grosseria fosse motivo de celebração. Ah, São Paulo! Tão inigualável nas noites e tão ridícula nos modos! Ah, São Paulo! Tão triste, agitada e comovente… A cidade feia é repleta de magia. Chame do que quiser, mas aprendi que há algo de especial nesta feiura. Julgo que a personalidade da cidade é fria e dura.

            Flagro-me pensativo sentado dentro do carro e observo o céu e as pichações. Muros, paredes, pontes, prédios, tudo alvo da arte de rua. Quem é que sobe tão alto para desenhar um símbolo que pouquíssimos saberão o significado? Não, claro, eu deveria saber melhor. Quem sobe alto sobe por conta própria e por si. É sobre fazer o que deve ser feito, ainda que os outros não entendam. Julgo que os grafiteiros e os pichadores e os artistas ajam todos por instinto, pois só o que é feito por instinto representa realmente arte autêntica. Sofrer é pensar, assim, para a criação de coisas frágeis é preciso se entregar de corpo e alma ao trabalho. Se mudará vidas ou não, isso não pode interessar, mas quando algo belo e legítimo cruzar a minha mente, que meus dedos desnudem minhas verdades e me narrem por inteiro. Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra, mas isso não interessa. Quando não puderes mais permanecer neste mundo, erguerei a cabeça, recobrarei o ar e seguirei caminhando. A jornada não acaba enquanto eu puder continuar sonhando. Talvez eu nunca me cumpra e isso não faz diferença. Não há fatalidades e a liberdade é a minha única sentença.

Razão da escrita.

Escrevo, pois preciso sobreviver e não há alternativas.

A frase soa pretensiosa, entretanto, é verdadeira. Estranhos são os caminhos que levam ao crescimento, tudo isso que me guia até o que chamo de autopercepção. Perceber a si mesmo, porém, não basta. Estar cônscio e ignorar a realidade me faz flertar com o vexame. Existo como uma espécie de ponto de exclamação. Nunca me oferecem o benefício da dúvida. Há sempre sentenças entusiasmadas, sejam elas decretos alegres ou fúnebres. Que faço eu de mim se não sei o que os outros o fazem?

Não, essa não é a maneira correta de se pensar. Os que já desistiram revolverão para dentro e dirão qualquer coisa como “não é bem assim”. Claro, é raro, nunca é o que parece, tampouco o que é, afinal, em regra, não é bem assim. As novas pessoas ditam as novas regras e esperam que eu me acostume ao incômodo odor do estrume. Em seguida me fitam desconfiadas, franzem o cenho e me julgam com uma opinião pulverizadora. Inexisto ou estou morto após o extermínio da originalidade? Antecipo a realidade, absorvendo-a, digerindo-a, não sem sentir uma extrema náusea, uma aguda vontade de vomitar. As opiniões que interessam são flechas no vazio, afinal, ninguém se dispõe a ler sobre quem não tem voz, mas se o palco é conquistado através do texto, como devo me tornar uma estrela literária sem a oportunidade de ser lido? Escrevo para sobreviver e saciar meu alívio, mesmo que não faça sentido. Continuarei escrevendo, eu sei, mas por que palpita em mim a urgência da publicação? O que explica essa vontade de escancarar ao mundo meu frágil coração? Quero transcrever a realidade pungente e linda em um livro de ficção. Ouso nesta confissão sugerir que, se por minhas entrelinhas derramasse meus segredos amalgamados, não haveria sequer uma pessoa que os percebesse. A necessidade de ser o centro das atenções diminui diretamente a capacidade de ser atento. Cobriu-se de glitter, gritou suas mil qualidades e naquele desfile infinito de vaidades, eu observava a tudo, triste e lento. Casa de palha e porquinho despreparado. Vê que a maturidade se perdeu no primeiro sopro do vento?

Olha, se pela minha língua vejo a sinceridade bloqueada, não pela presunção do que é falso em mim e sim pela surdez forçada, resigno-me ao silêncio. Sei, por outras cronologias quais habitei que há silêncios que envenenam, entretanto, há honestidades que quando diante da vaidade suprema se esfacelem e se perdem. Não sou hostil com os outros, até que passem muito do ponto. Condenam a minha agressividade, mas só reajo quando me fazem de tonto. Afaste-se no ápice da minha lamúria. Ao ser provocado, posso mostrar a minha fúria. Zombaram de mim e esperavam um silêncio vazio. Respeite o temor do sábio e tenha cuidado com a ira de um homem gentil. Tenho o hábito chato e insistente de duvidar de mim. Quem está sempre certo de si e de tudo o que faz perdeu o senso de direção e qualquer réstia de humildade. A grande problemática em não ser humilde é começar a olhar para o espelho e se enxergar maior do que realmente é. Além disso, não obstante, a cautela nunca deixa de ser necessária no caminho do progresso. Essa simbologia narcisista de se apaixonar pelo espelho é o reflexo do regresso. Acalmo minhas expectativas, afinal, ainda sou ingênuo para o mundo. Sofro, choro, acerto e erro, mas sou presente e me desculpo.

A expansão do conhecimento, a absorção da vida social, olhar com o desejo de realmente ver, isso tudo traduz em mim uma segurança que, vez ou outra, rejeitei. Se o tempo é um conceito relativo ou inventado, há obrigação real em me aprimorar? Essa preguiça dos grandes pensadores que se infundem nos conhecimentos dos coachs, os tantos técnicos de pessoas, isso tudo me representa exatamente em que sentido? Nenhum, eu sei, mas por mais que sejam vãs minhas palavras, escorro por entre elas. Escritores escrevem e é tudo o que sei. Esse hiato ingrato quer me provar coisas que eu já aprendi. Aconselho-me por graça e por nostalgia. Sei o que fui, quem sou e quem quero ser um dia. Olha, que nem todas as minhas poesias são excelentes, entretanto, sou poético diante da vida. Confesso que nunca me esqueço da sombra da morte e não vivo por acúmulos. Tudo se perde e não tenho porque enfiar novos papéis na gaveta. Perco-me neste ensaio de mim mesmo e respiro fundo para recobrar o ar enquanto olho para o teto. Problema pessoal do caso concreto. Ia dizendo algo como “saber ter sido só no passado não significa saber ser só no presente”. Avançamos em certas áreas, regredimos em outras. Nada é permanente. Se a única certeza é a morte, como há quem ouse cuspir na vida? O que farei com a sorte se toda história é esquecida?

Não, eu sei, não é o que diriam os historiadores. Talvez Henry, talvez Nelson, talvez outros, talvez esses todos narrem a distopia inserida no meio dessa realidade, sim, talvez falem sobre dissonância cognitiva como meio de explicar a ruptura coletiva em prol de um governo prejudicial às pessoas. Como surgem pessoas viciadas em violência? Deificamos nossos representantes, somos súditos, sem regência. Que fará a história com os nossos ossos? Que será do que nunca foi dito? Quiçá alguns historiadores carreguem a literatura também, ainda que tudo se perca nos interlúdios da gigantesca história. Algum dia, algum lugar, alguma memória. Que contaremos aos próximos humanos se perdermos aqui? Até admito perder, mas mais adiante. Você caiu, é natural, não faz mal, mas levante! Estou divagando e noto os meus pensamentos flutuando e partindo. Frases, letras, poemas, até mesmo novelas, tudo isso me sobrevoa como uma nuvem dentro do meu escritório. Que tipo de histórias minhas contarão ao velório? Que tipo de narrativas cantarão no meu velório? Onde é que estão os meus tantos amigos? Abandonaram-me com tanto oportunismo? Estranho como os valores podem mudar radicalmente. Um dia Cristo, um dia Dorian, outro dia um réprobo deprimente. É inútil se render aos heroísmos, entretanto, ainda acredito nos heróis. Congelei no passado aquele ato que salvou a minha vida, pois o que ocorre hoje é triste e dói. Presente maldito e um homem que choraminga da própria vida após amaldiçoar o amor. Ergue-te logo, filho, você não é o primeiro a sentir essa dor. Essa sua ferida não se cura com excesso de atenção. Disfarçar o machucado aos olhos não é o mesmo que disfarçar ao coração.

Graças ao comprometimento assíduo que tenho com as letras e às artes, no geral, tenho me tornado consciente do meu crescimento vagaroso e gradual. Sim, ainda que eu cresça devagar, estou firme e sólido, ganhando tamanho e espessura, como uma árvore antiga. Crescimentos súbitos não são realmente crescimentos, se neles não se identifica continuidade. Penso-me e entristeço. Se sou contínuo e constante com o caráter, com os amigos, com o amor, com a vida, flagro-me inconstante com a escrita. O que me torna tão apaziguado e estático? Preciso continuar e revelar o que sei e o que não sei. Reconheço que o que não sei ocupa um espaço muito maior e mesmo quando minha alma abarcar os conhecimentos deste Universo, ainda não será o bastante. Um dia traduzirei o canto dos pássaros, a docilidade no olhar de um cão ou os murmúrios da floresta? Um dia serei capaz de estabelecer uma conexão por identificação com milhares de pessoas? Meu sonho alcançará o horizonte? Nasci pequeno e quero existir longe. Aprenderei os segredos indizíveis? Difícil, impreciso, improvável, entretanto, instiga-me o tanto de vida que há na Vida, os livros, a realidade, bem como a ficção. Tenho esse comprometimento assíduo com tudo o que importa. É fácil responsabilizar a vida pelas derrotas, pelos afastamentos, pelas escolhas, quando somos nós que dia após dia determinamos o curso do futuro, ainda assim, essa mania de comprometimento seja relativamente nova. Distraído preencho o papel com a tinta ou brinco com as palavras. Quem não ousa se buscar pode não se perder, mas também não irá se encontrar.

Interlúdio para respiração. O que justifica a escrita senão a própria escrita? Desde que, encontrei-me na denominação de escritor, eu escrevo. Que tipo de escritor não produz textos? Que tipo de alma se sacia? Que tipo de homem não se guia pelo que urge no espírito? Faça de uma vez e não espere. Controlo meu fogo com medo de queimar o mundo, entretanto, meus dedos flamejantes batem no teclado com força. Escrevo e ponto. Quem é que precisa de mais motivos? Tudo é incerto, mas sigo, meio por me importar demais, meio por um instinto selvagem e tosco. Se pelo decorrer da vida domei minhas selvagerias, como explicar que nos textos sou livro e indomável? Bicho dócil, ignóbil, manso, até se fazer irrefreável.

Escrevo e continuo a escrever. Escrevo para desvendar a mim e ao mundo, pois os dedos são mais honestos que a mente e, assim, posso me revelar sem ser teatral ou acrobático. Os dedos nunca sussurram e, bem, esta grande responsabilidade de me expressar no idioma original da alma, essa complexa disposição em falar sobre inúmeras cronologias, isso de tentar através da humanidade ser mais humano e cativar humanos, por meio do afago ou da provocação, isso me significa tudo. Intercalo entre gênio e estúpido. Nasci para amar e escrever, ainda que eu viva a sofrer. A minha gata Nami me observa pela janela, concentrada em algum detalhe que só a percepção felina pode vislumbrar. Há dias que queria ser como os gatos, pulando alto e encontrando um lugar formidável para descansar. Há dias que me perco do sentido e não há Pessoa ou Shakespeare que me sacudam o suficiente para retornar e retomar à realidade. Perco e admito minhas derrotas, nunca faço barulho para interromper o sono alheio, sou fácil ao diálogo com quem não tenta me manipular e entrego meu coração. Sinto um orgulho profundo de mim, mas ainda me sinto envergonhado pelas tantas vezes que errei no caminho. Estou me tornando um homem formidável, mas jamais teria ido tão longe sozinho.

Aviso último, sem tormento, lamento ou alarde: o que há de se perder não tem onde guarde. Anoto a última frase no papel sem sombra de ironias vivas. Escrevo para sobreviver, pois não há alternativas.