Uma noite qualquer.

Foi em uma noite qualquer, quando ela bateu na porta de minha casa. Eu, míope, mas com olhos suficientemente bons, reconheci sua forma e a sua voz, desentendo a lógica da aparição. O amor quando verdadeiro é insensato. Eu não precisava da lógica. Instintivamente, eu sabia. Era ela, inequivocamente era, pois eu havia memorizado até mesmo o jeito de se insinuar. Escutei mais três batidas em uma insistência atípica, fiz-me surdo e perguntei mais de uma vez, apenas para avaliar a minha própria sanidade. Ela respondeu sem titubear.

– Meu bem, você é feliz há tantos dias consecutivos. Tenho convicção de que sentiu a minha falta. Não vai me deixar entrar?

Respirei fundo, enchi-me de coragem para falar o que ela merecia ouvir, tudo o que estava sufocado, preso estreito dentro do peito, mas me flagrei diante da porta e minha mão destra a abriu. Ninguém me conhecia tão bem. O que mais eu poderia fazer? Prometi que lançaria um olhar gélido, mas ela viu que meus olhos estavam impregnados de saudade. Avancei quase contente por reconhecer a Tristeza e sorri triste tendo um vislumbre de que os olhos dela também estavam marejados. Dei o meu sorriso mais acolhedor e pedi para que se sentasse enquanto eu fazia o café. Ela me fitou com mistério, como se fosse me contar algo, eu não perguntei, pois aquilo podia ficar para depois. Só quando enchi as duas xícaras, notei que ainda estava sozinho e havia servido café para dois.

Qualquer dia desses.

Qualquer dia desses, eu parto e não volto. Quem sabe, antes de ir, eu avise minha mãe do meu paradeiro, apenas para que ela se tranquilize. Não há mãe que mereça perder o sono pelas aventuras de um filho, entretanto, todas as mães do mundo entram na estatística da insônia e se tornam vítimas da indústria farmacêutica.

Todos falam o tempo inteiro e, exigem-me coisas, atitudes, posicionamentos e eu, tão feito de pausas quanto de silêncios, enervo-me perante ao esdrúxulo espetáculo da dramatização do tédio alheio. Por ter pacificado a minha relação com o nada, por ter me tornado um mestre dos espaços vazios, não tumultuo meu próprio silêncio com barulho. A minha mente, que costumava ser uma tela constantemente colorida, hoje em dia surge, vez ou outra, como uma tela em branco. Aprecio o interlúdio e respiro.

Todos falam tanto e raramente escutam o mínimo. Eu já nem lembro quais foram minhas últimas demandas atendidas. Quantos pedidos meus foram colocados na fila de espera? A realidade é que muito se exige e pouco se entrega.

Estou exausto de fazer solicitações e concessões. Esqueceram o meu aniversário e como tudo sucede ao contrário, eu fui alvejado de reclamações. Ainda eu, vítima da vituperação alheia, recebo a recomendação de ficar calado. Insisto tanto em ser leve que todos supõem que eu não sei “pegar pesado”. Afaste-se, acaso pretenda me ferir, deixe-me, se quer provar o sabor do meu sangue. Use a prerrogativa da honestidade direta e indiscreta, mas não me ataque com oportunismos que visam minha derrota e vexame.

Se odeia alguém, não seja simpático. Se possui algo contra, seja enfático. Se são bons os seus motivos, aplique-os e seja prático. Essa praticidade que tanto me exigem, ninguém nunca me deu.

Até quando eu deveria pedir licença por existir? Até quando será que me vão me exigir retratações frágeis seguidas por deificações de falsos ídolos? Eles não são o planeta inteiro. Eles são a única coisa que você possui. Estou farto dessa arrogância constante, destes sorrisos plásticos, dessa constante atuação. Vá ou não vá. Estreite ou rompa o laço. Faça ou não faça, mas se porventura alimentar o rancor, recuse beijos e abraços.

Se me exigem tanto, comecem por vocês mesmos. Quero ser apenas unidade, eu sou apenas um. Quantas vezes terei que repetir para que me ouçam? Não escravizo ninguém segundo minhas vontades e estou cansado de viver pelos outros. Todo o muito que entrego, em réplica, sempre soa pouco. O que ofereço nunca é o bastante? Saiba que é tudo o que tinha neste instante.

Sina desesperadora de existir é ter que liderar. Todo mundo quer que eu os faça sorrir, mas ocultamente se aprazem de me ver falhar. Não sou eu também humano, feito de falhas, derrotas e medos? Se estou no meu tempo, por que alguém sempre diz que cheguei tarde ou cedo? Aceitem a minha ausência de pontualidade. Eu falto em muitas coisas, porém, eu sobro também. Sou um especialista em ser quem sou e essa teimosia de amor ainda vai me levar além.

Só por hoje imploro para que cesse esse drama, oro, mesmo sem crer, para que me sobre um vislumbre de felicidade, um pedaço onírico de sonho para sonhar, uma realidade que me seja menos pungente, uma ou outra pessoa que me escute e que tente, realmente tente me entender…

Estou preso a não sei o quê, mas qualquer dia desses me solto. Se eu me cansar de vocês, eu parto e nunca mais volto. Se isso acontecer, neste ínterim final, lembrem-se, enfim, que eu era humano. Acostumados a heroísmos e obrigações que não deveriam me pertencer, recordem-se de que eu era apenas mais uma gota neste imenso oceano.

Cuidado com o que constroem em suas cabeças vãs. Se vocês desconhecem até os seus parceiros, que é que vocês sabem dos outros? Essa mentalidade de clã transborda uma hostilidade lúcida somente aos loucos. Preciso sobreviver, ainda que não saiba mais os meus motivos. Preciso permanecer… é a única chance de encontrar os tantos sonhos e anos perdidos.

Estou me desapegando para não me apagar. Estou me acendendo para que possa continuar. Estou sendo, cada vez mais, eu mesmo.

Como todos me exigem e nada me entregam, eu aprendi que as verdadeiras ânsias da alma são individualistas e cegas. Este altruísmo de boteco não vai me levar a nenhum lugar. Se essa é a minha maior verdade, por que não consigo mudar?

Desligue suas obsessões. Desapegue-se das suas expectativas. Vocês todos acham muitas coisas e eu…

Eu sou apenas o que sou, longe dos achismos e opiniões. Repleto de puerilidade, eu me habituei a ser franco e não fazer comparações. Eu sou apenas o que sou e firo por ser, coisa que é realmente rara. Às vezes me constranjo, mas estampo minhas verdades na cara. Se a mim permaneço um mistério, insondável, profundo, complexo, como vocês ousam tentar me antever? A única realidade lógica é que vou cair e perder.

Esqueçam o que supuseram de mim. Nunca mais me idealizem. Vocês todos acham muitas coisas e eu sou diferente. Vocês todos acham muita coisas e eu apenas…

Sou.

Uma covardia.

Escrevo estes meus fracassos
com tinta, sangue e covardia
Sinto que tenho sido julgado
por falhar em ser perfeito
Anjo mau, indiferente, confundido
com qualquer diabo que sabe se portar
Um dia desses, se acordar diabo, fujam
Se este mundo porventura me dobrar pelo susto,
Tornar-me-ei assustador
Arranjarei um diabrete sorridente
que andará atrás de mim como um cão
Que tu pensas, velho caquético e bigodudo,
que tira o lixo pontualmente às sete e dez?
Faz do hábito uma oração para se enganar,
porém o ar lhe escapa e o peito dói
Um dia tirará o lixo, mas sequer estará ali
para ver o caminhão passar
Teus hábitos não engodam a cronologia
Tu também não escapas da morte
Que tu sonhas, mestra das artes?
Parece disposta a largar tua vida alinhada
e desaparecer para sempre no próximo bonde
Ninguém sabe da tua verdadeira estrada
nem dos segredos que o coração esconde
Que te inquieta, corsário ferido?
A mágoa velada que carrega no fundo dos olhos?
A raiva atrincheirada atrás da consciência?
A tua mudez que afastou todos que ama?
Escrevo estes meus fracassos
com sangue, covardia e impaciência
O que está quebrado, é claro, se quebrou
Este golpe forte no teu orgulho te matou?
Que te assombra, príncipe da eterna adolescência?
Traiu todos os teus amores e teme pelas consequências?
Esse ceticismo forçado é forjado pelo medo?
Há anos tu tens me evitado por ser capaz
de ler teus mais óbvios segredos?
No teu caso optei por nunca te escancarar
Mas porque teme o que sei, eu espero que trema
É sozinho que um dia você vai falhar
Eu vou me calar porque sinto pena
Que tu desejas, sombra cigana?
Transitando lentamente e evitando os domingos
Não há corrida para fora que nos salve
quando dentro estamos caindo
Justiceiros ébrios com seus punhais afiados
desconhecem os alvos que são perfurados
Escrevo estes meus fracassos
com vinho, impaciência e covardia
Pois ainda me lembro como abrir garrafas
Conhecimentos inúteis para um inútil completo
Problema inevitável de caso indiscreto
Estou me matando por tolos obstinados em arrogância
Estou tentando salvá-los de sua própria ignorância
Quando foi que eu me tornei tão valente?
Quero voltar a ser aquele moleque chorão e indecente
Acovardado atrás das pernas de minha mãe
Repleto de remelas nos olhos e caos nos ouvidos
Rezando para que o dia acabasse e eu
Escrevo estes relatos com covardia e honestidade
Lembram de quando a Tristeza bateu à minha porta
em uma madrugada solitária na cidade de Dourados?
Lembram de quando servi duas xícaras de café às três
em São Paulo e me esqueci de que estava sozinho?
Talvez eu esteja enlouquecendo o tempo inteiro
E inventando esse mundo estúpido com danças imbecis
Talvez essas tantas coreografias vexatórias me provoquem
Talvez eu esteja na beira por tentar ajudar quando deveria
estar pouco me fudendo para esses idiotas
Não compreendo como não me tornei misantropo
Todo o muito que sofri ainda assim é pouco?
Talvez eu esteja apenas cansado e confunda as coisas
Não, isso não, eu não confundo as coisas
Mesmo na beira do meu limite e das minhas dificuldades
Ainda que os pássaros amarelos me atormentem
Eu não confundo as coisas
Sofrerei vinte minutos e uma noite de sono
por todos os livros que ainda não escrevi
Sofrerei até outubro pelos livros que não publiquei
Prefiro a introspecção e me disseram inúmeras vezes
que queriam me ouvir falar
É um prazer imenso te ouvir falar
Ei, espere, eu não tenho monólogos hoje
Quem sabe eu só não queira ficar no meu canto
e esquecer de todos vocês enquanto escrevo obscenidades
Claro que vocês duvidam da sujeira dos meus dedos,
pois escreveria erotismo puro para me livrar de vocês todos
Sim, eu estou atento, ninguém lembra tanto das corujas
Nenhuma voz alcança tanto e eu vi o velho vulto perto das onze
Eu não estou enlouquecendo, eu estou chegando lá
Eu estou perto de começar a me entender,
Sim, eu entendi todo o resto e agora faço uma oração
Para quem oro? Ora, se isso interessa a qualquer um
Eu, na verdade, oro para quem me ouça
Que quem me escuta possa me ajudar porque ando exausto
Entendo toda essa gente pútrida que se move com a maré
E sou eu o alvo da ignomínia final
Sentenciado pelos réprobos por tê-los decepcionado
Sanguessugas ordinários, eu vou decepcionar todo mundo
Aguardem, oportunistas teatrais, eu falharei com todos
Vocês, que não são quem são, ainda hei de olhá-los sem máscaras
Cortarei os fios e acabarei com a graça dessa brincadeira
Olha nos meus olhos, titereiro
Estou fora de tuas cordas, meu velho amo
Estou dançando a minha própria música, seu imbecil
Não sou mais o teu fantoche e hoje vou me vingar de mim
Estou cansado de ser o anjo bom e previsível
Quero vê-los sofrer e começar do zero
Quero ser humano pelo menos por um dia
Se não puder ser humano, deixem-me retornar ao pó
Deixem-me virar matéria de poesia
Só não façam de mim o que fazem de todo o resto
Eu aceito o meu fim e a morte, mas se mentirem
Erguer-me-ei do cemitério em protesto
Esqueça o pedestal que tu mesmo ergueu e subiu
Você não é melhor do que ninguém
Tua vida perfeita também jaz por um fio
Pois quem deveria saber de ti não o sabe
Olha para mim, velha louca deitada na luxúria
Se tua realidade é tão alegre e opulenta,
por que não te desliga da tua nojenta fúria?
A personificação da inveja e da lamúria,
Olha-me nos olhos, megera, receba minha injúria
O vômito das minhas palavras no teu chão
Sente na minha bile a sinceridade do meu coração
Estou cansado de ser o anjo bom e previsível
Inventa algo novo, deturpa tudo e me detesta
Vitupera o que sobrar de mim em tuas festas
Estou cansado de ser o anjo cheio de qualidades
Grande, altruísta, preocupado e quase morto  
Sim, eu estou cansado de tanto me ser
Esqueça a calma
Estava enganada na tua premonição de vida eterna
Ajoelha diante de mim e sente o gosto do meu esperma
Idolatra-me por uma noite como se eu fosse
o guitarrista medíocre da tua banda dos sonhos
Deifica-me por vinte e quatro horas e me entrega tudo
Quero que não sobre absolutamente nada
Absolutamente almejo ter até a sua alma
Não se desespera se porventura errar meu nome
Isso é definitivamente consequência de viver insone
Acordado por seis dias e meio e sonhando com
Qualquer coisa que me faça sentir vontade de
Insistir
Eu estou prestes a chorar
Eu estou prestes e desistir
Eu estou prestes a quebrar os espelhos
e emudecer de uma vez por todas
Minhas reflexões cessam com a memória
do punho atravessando a madeira do guarda-roupas
A vida não nos afasta de ninguém
Silêncio afasta, arrogância afasta,
Vontades recíprocas e orgulho obstinado afastam
Um ano atrás meu velho nos deixava
Queria sonhar em ter sua altivez
Os apertos de mãos dizem muito
e nunca apertei todas as mãos que gostaria
Os olhares vibrantes dizem muito
e nunca mais te olhei
Chame-me do que quiser, eu estou entendendo
Vocês precisam de um novo bode expiatório
Preparem um tipo especial de missa para o meu velório
Eu estou prestes a sonhar
Eu estou prestes a sorrir
Eu estou prestes a dar o salto derradeiro
para a morte ou para o voo que libertará minhas asas
Estou prestes a compreender a simplicidade
deste ódio que se fixa facilmente em pessoas rasas
E ainda quase todos subestimam a potência de um poema
Se não me escutam, deveriam ouvir o Valter,
“quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas”
Escreve algo humilde neste papel e escuta o silêncio
essa extravagância atroz está me deixando puto
Se eu morrer sem desatar esses nós,
Recuso suas lágrimas e seu luto
Até porque tenho lutado sozinho
por quem nunca me ouviu ou me leu
Estou longe da metade do caminho e lamento
Ninguém nunca me aprendeu
O louva-deus não ora por porra nenhuma
Fiéis e ateus desaparecerão na mesma bruma
E até os que são lembrados serão esquecidos
Nossos nomes se dissiparão e seguiremos ao limbo
Desce do teu trono, rei de espadas
Ninguém neste mundo é realmente teu inimigo
Qualquer santo perfeito em sua jornada
pode lhe apresentar um grande perigo
E se os vilões porventura forem sempre os outros
É melhor que olhe para dentro e tenha cuidado
Quando estamos ficando loucos é que tudo sucede o contrário
É bem provável que você seja o responsável
por esse seu declínio melancólico e deplorável
É bem provável que você seja um pedinte
Você pensa no final do livro, mas
nunca escreveu o capítulo seguinte
Tira os olhos do umbigo e cessa tua obsessão narcisa
O mundo não gira por você, embora eu admita
Sua ausência pesaria se um dia me faltasse
Ninguém neste mundo é realmente teu inimigo
Nossas ações revelam algo individual e intransferível
Nossas ações revelam a profundidade de nossos abismos
Cala-te agora, revolve devagar e olha para dentro
Aceita-se humano e desiste de se tornar uma lenda
Faça uma loucura espontânea e não se arrependa
Não espere nunca que todos te entendam,
mas agradeça acaso seja compreendido por um ou dois
Agradeça o dobro por quem nunca te deixa para depois
O destino lúgubre do ferro é que ele enferruja
Se um dia eu for moldado pela dor e acordar diabo
Fujam
Interlúdio e minutos para o intervalo
Guardo agora os sonhos nos bolsos
São 22h55 e sei que preciso dormir e trabalhar,
mas nesta véspera de segunda-feira,
Eu sei que dormirei sem me vingar de mim
Se eu dormisse covarde e acordasse corajoso
Faria da minha próxima manhã um novo jogo
Entretanto, tudo sucede lento e pesaroso
Sigo ostentando na pele e no peito
inquietações sinceras e verdades doloridas
Eu queria dizer que isso aqui é um poema,
mas estas palavras de merda não me resumiriam
Eu queria gritar que essa tragédia é um desabafo,
mas é só uma covardia
E eu, covarde de tudo, acocorado e aterrorizado pelo medo do escuro,
Eu sigo indignado com os impostos e as manchetes dos jornais
Eu sigo perturbado por quem se comunica apenas por sinais
Eu sigo indignado com os roubos e assassinatos
Eu sigo incomodado com a soberba
Eu sigo delicadamente furioso
Eu sigo delicadamente
Eu sigo covarde, mas
Eu sigo
Eu.

Saiba ser sozinho e adote um animal.

Eu me peguei refletindo sobre a persistência, sobre uma vontade insistente de agir e ser diferente, de não sucumbir diante das mazelas mundanas e concluí que não sabia se tinha esse tipo de força. Você sabe reconhecer suas fraquezas? Li ainda hoje na internet alguém dizer que sofreu centenas de traições e me imaginei assim tão traído. Acho que, se fosse o meu caso, eu me fecharia para todos e escolheria a solidão absoluta, em ordem de me manter seguro, sem me tornar ríspido, sem correr o risco de descontar as minhas frustrações nos outros. Nunca fui traído nos romances que tive e tampouco traí, assim, localizo-me distante deste local de fala, ainda assim, penso-me traído e nas traições que nunca foram e essa ira muda que sinto brevemente me leva para longe.

Os corações sensíveis assim o são, viciados na melancolia, acostumados com a voracidade alheia que contrasta com a paciência serena. Pessoas assim, tão furiosamente delicadas, não raramente são testadas, como se o ato único da vida, esse viver cotidiano, zombasse incessantemente da nossa fibra e nos guiasse para um hedonismo como solução geral. Se me permito a acreditar que devo viver a vida somente pelos prazeres, ignorando todo o resto, eu estou fatalmente perdido. Custam a aceitar, mas há muito mais envolvido. Quando criança e adolescente presenciei muitas traições, umas tantas ocorriam no ambiente familiar, envolvendo o que acontecia na minha própria casa ou nas casas dos meus amigos. Não tanto depois vi esses mesmos amigos copiando o comportamento de seus pais e dando sequência a um ciclo potencialmente infinito. Furioso e frágil, eu bravejava que escreveria minha história diferente. Não falhei, pelo menos não ainda e admito que por vezes não sei de onde tirei forças para ser exatamente quem eu sou. Não subestime a capacidade de ser autêntico. Ser exige esforço e persistência, pois é preciso ser continuamente. Ser é, sobretudo, navegar contra a maré e ter a consciência de si. Aos dezessete, certa feita, minha mãe me olhou e disse que eu estava me tornando um homem incrível e lindo. Aquelas palavras, poucas, retas e sinceras, foram suficientes e me serviram como combustível para que continuasse no caminho para ser alguém de quem eu sempre me orgulhasse, mas e se as pessoas que mais amo de repente me traíssem? E se o punhal ensanguentado removido de mim pudesse ter sido a arma de alguém que adoro? O que seria do Daniel nos dias de hoje?

Para ser honesto, eu não sei o que me seria e nem a minha argúcia intelectual pode de verdade prever uma realidade alternativa. Só o que foi realmente foi e todas as outras possibilidades morreram. A dualidade é incômoda e estranha. Fui e sou correto, sem exigir da vida recompensas, porém nunca esperei que houvesse tanta punição. Sim, se você for como eu, um maldito certinho, muitas vezes se sentiu mal por estar fazendo o bem, pois parece que agir direito é digno de castigo. Acho que é por essas e outras que tanto acabam cedendo aos tantos perigos ou sedentos pelos perigos. Eu até brincaria com fogo, entretanto, jamais incendiaria a casa. Sou o último acordado antes dos outros dormirem por sentir o dever de zelar pelos que convivem comigo. Tudo é vago e longe. Acreditava no Amor romântico e eterno e nas Amizades românticas e eternas, até que me dissuadiram destas crenças. Necessitei de quase três anos para, enfim, recuperá-las, mas não foi nada fácil. A vida nos testa ao contrário.

Um dos grandes amigos que tive, uma vez, veio se gabar de uma mulher com quem havia transado. Eu o confrontei, sem dar bola para o assunto e o indaguei sobre o motivo de ter feito algo assim sendo que namorava com outra. O resultado desta satisfação foi catastrófico. Fui eu acusado de ser traíra, afastado do meu grupo de amigos e colocado em isolamento, apenas por não ser conivente com algo que nunca poderia tolerar. Passei anos com pouquíssimos amigos por ter a coragem do embate e meu prêmio foi a retaliação. A pior parte é que eu sentia falta desse meu amigo, ainda que não reconhecesse nele valor moral. Quem nunca deu um “foda-se” para a moral? Como dizia Victor Hugo, “que sejam maus e inconsequentes, mas corajosos e fiéis“. Ele era inconsequente e custo a utilizar a palavra “mau”, porém era covarde e não havia fidelidade dele aos amigos ou aos amores. Sofri pelo afastamento, sim, mais do que eu gostaria de admitir. Tantas horas compartilhadas e eu havia perdido o meu amigo para os meus próprios valores. É muito nesta vida questionar a veracidade de outros amores? Sim e não, entretanto, se alguém que amo passa dos limites, não estou obrigado de forma tácita a me posicionar? Se me silencio diante do errado, vejo-me conivente e aprendi há anos que há silêncios que envenenam. Quando quase havia me convencido de que ser duro, mesmo com as coisas certas, sempre nos afastava das pessoas, a vida finalmente me deu amigos novos, amigos significativamente melhores. Com esses novos eu poderia ser sincero sem correr o risco de que facilmente se ofendessem. Quem exige não se importa em ser exigido e com os meus novos amigos eu poderia esperar um caráter férreo em retribuição. Com essas novas pessoas que apareceram os conselhos eram verdadeiros e entravam direto no coração.

Antes disso, entretanto, aprendi a acreditar na solidão. Se há solidões maléficas, depressivas e sufocantes, há solidões largas, espaçosas, onde se encaixam todos os mundos com seus respectivos países, cidades e praças. Aprendi a acreditar no trabalho, embora não tenha me sentido mais digno. Eu, sempre sensível em escutar os outros, aprendi a escutar os meus silêncios e a amar os meus barulhos. Sem o grande afastamento, eu jamais teria amadurecido tanto. Fazia as coisas da maneira correta por instinto e me esticava para a compreensão alheia por ser empático, entretanto, só após ficar completamente solitário é que me entendi e se entender representa um passo importante para tentar entender a sociedade que me cerca. Não posso me considerar exceção de coisa alguma, se sou tão humano quanto os outros, mas quanto mais você vive e vê, mais chances surgem de encontrar pessoas que valham mais que o ouro. Aguardo o fim do expediente pensando nessas pessoas, outrora tão distantes ao ponto de serem inexistentes em imaginação, hoje tão próximas que posso as encontrar em algumas horas. Toda essa noção é estrangeira e confusa e sofro, porém, imagino-me feliz em breve ao chegar no meu próximo destino e, enfim, encontrar-me com pessoas que me tornam mais alegre e me tornam ainda mais efusivo, apenas por existir. Abraço-os ou aperto suas mãos e os nossos sorrisos são luminescentes. Sim, eu os amo e sou amado de volta. Ouvi muitas vezes sobre o quanto sou importante como amigo, filho, namorado e isso nunca fica enjoativo. Respiro essas tantas palavras e me sinto bem. As palavras e os gestos são, em regra, o único conforto.

A solidão de Dourados ensinou a mim tudo. A fábrica de tratores, os céus laranjas ou rosados, a poeira vermelha, o coelho branco perto do supermercado, a BR-163, a jornada de trabalho, tudo isso se consolidou em mim como uma amálgama de coisas inúteis dotadas de uma importância celestial. Numa tarde, naquele posto de rodovia, a abelha gigante que sobrevoava o meu energético venceu. Não sei se faria tão bem para seu corpo diminuto o energético e imaginei que o coração fosse uma coisa insignificante, mas a abelha bebeu e depois disparou rumo ao desconhecido, mostrando-me sua coragem selvagem, provando meu erro. Aquele coração suportava mais do que eu supunha. Eu nada entendia de abelhas. O Nada ensina muito sobre o Tudo. Só o silêncio que traz sentido aos barulhos. E então eu absorvia da vida a própria vida e me preparava para algo que não sabia. Acumulei decepções e fui o príncipe de horas sombrias e me vi esquecido e distante. Nas sextas e sábados e domingos eu trabalhava. Todo o resto fumava, bebia e fodia. Eu era o único esquecido pela humanidade e longe do que me fazia humano, eu me reinventava do zero, como se tivesse acabado de nascer ali. Busquei não me ressentir com os outros, pois eventualmente seriam eles isolados e eu me divertindo. Quem nunca pôde viver um período de isolamento não tem sequer um parâmetro mínimo, básico, para o autoconhecimento. A solidão nos ensina a buscar nós mesmos, conhecer essas pequenas e preciosas coisas que revelam nosso propósito de vida. Fui talhado por essas noites infinitas e vivi o sábado sem fim. Só por ser só é que ainda tenho todos os sonhos do mundo em mim. Por vezes, ainda que quatro anos tenham se passado, eu fecho os olhos e me enxergo preso naquele sábado dolorido.

Olhos fechados. Imersão. É sábado novamente, 2018. O que eu posso fazer além de ficar recluso? Ir na pizzaria? Entrar em uma festa como penetra? Não, eu não conheço ninguém nessa cidade. Sou muito afável e polido para as zonas; muito direto para o romance, muito tímido para fazer amizades e estou cansado de ser engando por mulheres nos aplicativos. Só eu sou quem sou e mais ninguém é quem deveria ser. Tantos questionamentos sem respostas e um bafo de morte me seduz dizendo que tudo se iguala e que um dia virarei pó. Eu, resignado com a solidão, devo aproveitar então a condição de ser só? Como se aproveitar se a solidão é assustadora? Tenho medo de mim ou do que não conheço ainda? Eu preciso acordar. Eu preciso me acordar. Alguém me sacuda agora. Eu quero muito sair daqui. Tanto faz Campo Grande ou Paris. Eu quero qualquer cidade que não seja essa e qualquer dia que não seja sábado. Alguém me acorda longe. Emersão. Olhos fechados.

Quatro anos depois e me vejo lá naquele passado sem ter a menor noção de mim. O sábado infinito vive a uma janela do presente. Eu vivia em automatismos, quase robô de mim mesmo, com ações previsíveis e espelhadas. Nessa época, havia uma moça do supermercado que sorria para mim e só um ou dois anos depois percebi. Um jovem vagaroso, descuidado e inocente. Ela queria ser convidada para sair, porque aquele sorriso era exclusivo, íntimo e intransferível. Eu, ingênuo de tudo, confundia com uma simpatia natural, mas só em uma epifania notei que ela nunca sorria para os outros. Tudo o que não soube naquelas tardes, eu aprendi depois. Assim vai a vida. Acontece o tempo inteiro, mesmo quando não percebemos. Por vezes até supomos perceber e a ignoramos. Tudo é real, às vezes, até algumas mentiras e é preciso tomar cuidado com o que ensombra e é, na realidade, armadilha. Não é toda sombra de árvore que oferece descanso. Respiro e fecho os olhos. A fúria cessa e me sinto manso.

Se é na ausência que se percebe as tantas nuances da falta de alguém, pergunto-lhes, como é tão comum que nos relacionamentos distantes ocorram tantas traições? Como alguém, ao perceber extenuada a falta de outrem, preenche-se de coragem e consegue trair alguém? Vileza cruel e sombria! É por isso que me criei contra os relacionamentos ao longe, por ver neles a maior possibilidade de imaginação e amor, até se provarem mais venenosos do que a maioria. Cumprem a falta de um em qualquer outro e essa astúcia estética me soa perniciosa. Odeio os relacionamentos ao longe por deduzir que se encerrarão em dor e sofrimento. Se o amor precisa tanto de presença, crer na distância faz a diferença? Estamos apostando no desconhecido a nossa fé cega ou isso é outra coisa? Não entendo agora, portanto, não me meto. É mentira que cada um sabe o que faz, mas é verdade que geralmente não devemos meter o dedo. O que fazer para os esforços se revelarem válidos? Como conseguir a astúcia de tentar de novo após acumular tantos revezes? Como se regozijar com a memória de tantos fracassos? Respiro e medito. Há partes que entendo e repenso. Há partes que ainda não entendo e faço as pazes com o desconhecimento. Quem sabe daqui uma década eu seja sábio o bastante? Vou perder para a vida, mas pretendo existir longe.

Aprendi que a minha linguagem do amor é o tempo de qualidade, assim, esforço-me ao máximo para estar presente e ser uma boa companhia na vida das pessoas que me cercam. Todo o restante perde o encanto quando estão longe de mim ou quando, por algum motivo, estão presentes e simultaneamente distantes. A presença física, quando não acompanhada de sintonia emocional, pode ser nula. Não posso me acostumar a ser ignorado, principalmente quando, vez ou outra, sinto a latente necessidade de ser visto. Que fazer de mim quando quem me ama se esquece que eu existo? Respiro e medito. Persisto? Penso a vida inteira e encontro paz, mesmo que não encontre respostas. Cogito a condição de solidão para afiar meus pensamentos e afinar meus conhecimentos. Será que sozinho entenderia parte dessas tantas coisas que me escapam? Por vezes desejo ficar sozinho e me parece que o mundo se ofende, como se eu não tivesse direito de me pertencer. Sou mais dos outros do que meu? Sou overthinker por natureza e se não tento compreender, os pensamentos me matam (ou tentam). Tenho a impressão de que vim falar de sensibilidade e de que acabei por narrar tudo sobre a solidão, mas lhes pergunto: não seria a sensibilidade uma característica marcante de quem aprendeu a conhecer a solidão? Quem nunca se conhece corre o risco de viver fugindo de si mesmo, porém nossos pensamentos são mais rápidos que nós e nos alcançam. O que fazer para não viver eternamente sem esperanças?

“Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates. “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”, como neste relato agudo de Machado de Assis em Dom Casmurro. Aprendemo-nos sozinhos? Interlúdio e respiração ofegante e difícil. O peso ou a leveza? Não sei ainda. Meço meus desejos e posteriormente meus sonhos. Como li anteontem, “nossos sonhos merecem nossa disciplina”. Como tantas vezes falho até nas próximas rimas? Os meus romances aguardam mais palavras e mais coragem. A vida pungente quer me mostrar algo. O que estou deixando escapar? Não tenho convivido o bastante comigo mesmo. Estou sempre claudicante, exausto e queria me deitar em uma banheira de gelo, para restaurar meu corpo. Poderia o gelo restaurar também a minha mente? Qualquer detalhe faria a minha vida diferente. Que sejamos ocultos a quem é alheio e que toda a honestidade do mundo fira os outros, entretanto, quando se olhar no espelho nas manhãs, você deve dizer a si mesmo o que deseja, sem se avexar ou enrubescer. A vida exige que saibamos o que queremos querer.

Bem, sinto que cheguei ao fim destes relatos e sustento um orgulho tosco, quase vil, em apreciar o meu tempo sozinho. Tenho a impressão insistente de que quem não sabe ser só, simplesmente não se tolera e eu, mais do que me tolerar, aprendi desde cedo a me amar. Quem é que passeia no shopping e não repara nas famílias com filhos pequenos? Quem corre nos parques e não para numa apreciação lenta dos animais? Quem nunca se admirou com o sopro súbito do vento que faz as folhas dançarem? Quem nunca deitou no chão gelado de pedra e contemplou as tantas estrelas no teto do céu? Os meus gatos e o meu cão me ensinam todos os dias sobre a importância das coisas frágeis. Que mais me resta dizer?

Saiba ser sozinho, eu imploro, assim, você nunca correrá o risco de se perder das coisas que são realmente importantes na sua vida. E se não tiver animais de estimação, eu recomendo fortemente que arranje um. Em princípio, você sentirá que precisará cuidar deles, mas a realidade que se prova é avessa. Nossos bichos cuidam mais de nós e nos ensinam em menos tempo muito mais sobre a delicadeza, o carinho e o amor, portanto, enfim, altero a minha sentença final. Retifico-a e digo:

– Saiba ser sozinho e adote um animal!

Meu coração não é meu.

Meu coração não é meu,
embora me pertença desde que nasci
Quando estreei no mundo
já tinha uma identidade estética
O meu rosto aprendi a conhecer porque
crescemos todos cercados por espelhos e reflexos,
Entretanto, busco ainda a face original da alma que tenho
Só quem se desvê realmente se conhece um pouco
É preciso mergulhar fundo para deixar de ser oco
Sou um inútil e me chamam de idiota por acreditar
Eles não sabem que todos somos idiotas, acreditando ou não
Suspiro, deito na pedra e fito o céu sem usar fitas
Analiso a forma de uma nuvem branca
Ela dança e se divide até se dissipar
Existe nuvem que quer chover
como se quisesse chorar
Existe nuvem que vai desaparecer
depois de tanto dançar
Os físicos explicarão o fenômeno segundo suas Leis
Só que não há muitos fisicistas que bailem
Fecho os olhos e enxergo novas coisas
Tudo o que saiu da minha cabeça é meu
Amo os espaços vazios e sou incompreendido
Quando me observavam, ainda criança,
vagando e divagando pelo quintal
sempre se perguntavam: – Que será que está fazendo?
Eu apenas fazia, entendendo-me menos ainda
O que acontece dentro do peito é estreito
Confesso que nunca me soube tão bem
Queria ser convicto de tudo, entretanto, emudeço
Será que os desajustados vão além?
Sou uma espécie de confusão acumulada
prestes a irromper em uma certeza
Se soubesse qual parafuso me falta
eu mesmo me martelava até me consertar
Só que sinto que sei quando algo está com defeito
Reconheço tudo que está quebrado
Eu só estou do meu jeito
E tudo o que não surgiu
da minha mente é estrangeiro,
mas não necessariamente mentira
A única verdade que creio é que o mundo gira
Meu coração não é meu,
embora me pertença desde que nasci
Sou eu tudo o que vi
Sou eu tudo o que vivi
Sou eu ainda tudo o que não sei
Sou eu, enfim,
tudo o que nunca saberei
Este coração que não é meu desaparecerá
no dia que o meu corpo se decompor
Sou inútil a ponto de acreditar, que mesmo morto,
sobreviverão os meus versos de amor.

o jardineiro.

Avancei para averiguar a avenca
Era uma coisinha diminuta, porém bela
Eu especialista nas inutilidades antevi
que poderia crescer por onde e como quisesse
O trabalho do correto é cometer acertos, assim,
pus-me a regar a planta todos os dias
Sorria enquanto a aguava e lhe pedia paciência
É claro que sabia que um dia poderia estar tão alta
que nunca mais olharia para mim
Também estava cônscio de que talvez me esquecesse,
embora no meu peito entendesse que jamais a esqueceria
É estranho que se me marque a violência
Que me recordem através dos impulsos reativos
Justo eu que sempre me ajoelhei para afagar os seres vivos
Eu que deitei meu olhar dócil para o bosque sem fim e
que me vi acocorado e grato por existir
O peso da sensibilidade exacerbada, da empatia, é fatal
Ainda que você melhore a vida dos outros
São poucos que se lembram que você um dia existiu
Que é essa tanta aversão ao costume?
O que é esse cheiro de memória repleto de perfume?
Que faço para recuperar meu antigo lume?
Esqueço-me, sim, essa é a resposta
Estou vivo, mas oco, sem novas apostas
Condenado ao peso de nunca poder me sentir leve
Em sonhos áureos sou feito de sol e neve
Despenco sem a pressão de ser cobrado e não solto o ar
porque, enfim, tornei-me o ar e parti
Sou invisível ou argênteo, astronauta de prata
Interplanetário não impressionável
Contemplo outros mundos e galáxias e estrelas e sonhos
Quando avistares um animal com a cor do cobre
Quiçá se lembrem de um vislumbre do meu coração nobre
que de tanta nobreza constante e dureza férrea
fez lânguido e embriagado o meu corpo outrora forte
A minha vastidão me fazia invencível, porém
a honra me prostrava de joelhos e defronte aos espelhos
chorava pela solidão e sentença de só poder ser eu mesmo
Suspiro profundo no escuro e eu dentro dos eixos
Por que o breu me assusta se é Nele que existe o Amor?
Por que nada me ofusca esse tanto de dor?
Talvez seja a verdade que uns nascem para se cumprir
enquanto outros nascem para assistir
Quem sabe possa me fazer satisfeito
apenas por me reconhecer e me saber imperfeito?
Libero a minha respiração e recobro o ar
Estava aprisionado dentro da minha ansiedade
Estava insano dentro da minha sanidade
O escuro é onde mora Deus
O escuro é onde mora todo o resto também
Queria ser objetivo e traçar e realizar um plano
Sou errado demais para ser humano
Sou exato demais para ser humano
Estou exausto demais para ser humano
Que me sobra então para ser?
Uma sombra qualquer que se alegra com a jardinagem
A cautela com as flores, a sutileza com os amores,
é o remédio para o meu coração selvagem
Essa expansividade deveria ser domesticada?
Essa vontade de longevidade deveria ser remediada?
Avancei para averiguar a avenca
Tenho regado muitas plantas ao longo da vida
Especialistas nas inutilidades sorri satisfeito
ao notar que haviam se modificado radicalmente
Palmeiras, sequoias, salgueiros, figueiras, sibipirunas
Cada qual enorme e deslumbrante e perfeita
Não adivinhava fragilidade nelas
E fiquei com cara de bobo com a lembrança da fragilidade
No fundo, nas raízes fixadas na terra, ainda têm a mesma idade
Entretanto, altas e imponentes, não se lembram de mim
Engulo meu orgulho tosco e percebo que essa é minha sina
Criar coisas belas, regar, ser esquecido
e seguir para a próxima rima.

A CIDADE FEIA

            Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra. A culpa pode ser do TDAH, da memória, da inconstância, não importa. Não se realizar traz uma clareza sobrenatural sobre a vida. Nunca deixo de sentir que continuar é falhar, ainda assim, algo me impele, por reflexo ou também por distração, a seguir em frente. Quem dera os meus (nossos) mistérios fossem facilmente solucionáveis e a gente não precisasse aumentar o volume da cabeça para continuar processando a quantidade avassaladora de mudanças que ocorrem. Mudo de opiniões, porém me flagro em um esforço hercúleo para preservar minha essência. O que não contradiz o âmago, de um jeito ou de outro, resguarda-me. Há vezes, entretanto, que me pergunto a razão de me resguardar tanto, a razão de não me admitir desarrazoado e cometer loucuras, porque isso tudo flutua distraidamente na nossa cabeça e tudo se sucederá súbito e semelhante enquanto todos compartilharmos o mesmo fim. Despropósito pessoal e outra enxurrada de informações. Na vida a gente aceita migalhas de amor, mesmo sabendo que são migalhas. Queremos todas as lutas, mesmo quando é vazio o valor da batalha. Queremos desesperadamente vencer e sermos lembrados. Precisamos da ilusão de que seguiremos aqui, mesmo depois de mortos, ainda que em um vulto distante de lembrança, um detalhe passageiro na recordação de alguém. É difícil contemplar o reflexo no espelho e ver ninguém.

            São Paulo é uma cidade ambivalente. A realidade crua choca e aterroriza. Pessoas deitadas e esquecidas, muitas delas dormindo, algumas outras pedindo insistentemente e ao mesmo tempo surgem artistas produzindo belas músicas e paisagens únicas e significações. Tudo está ali quase como se não estivesse. O Beco do Batman, agora Buraco de Minhoca, abriga secretamente aventura e prazer, mas me flagro andando solto, distraído e leio uma frase “você se orgulha de quem tanto tenta ser”. A frase me comove e na releitura percebo que esqueci a interrogação, mas tudo fica bem porque há perguntas que são certezas no meu coração. São Paulo é uma cidade feia e intrigante, eu digo com certeza que em quesito beleza não se compara com a minha Campo Grande. Que há nesta cidade antiga e suja que me atrai? Julgo ser a capacidade de tornar tudo indiferente. Existe uma obrigação tácita, algo nas entrelinhas, que te força a abrir mão da vaidade em um limite extremo. Há méis que são venenos. Será que eu abandonaria a minha sensibilidade tão constante acaso morasse em um lugar assim? A feiura não deve ser romantizada, entretanto, percebo-me deificando os especialistas na indiferença como se a abstração definisse quem sabe realmente viver a vida. Quem se aprofunda demais em tudo acaba afogado e foi assim, quase sem ar, vomitando água que parecia nunca terminar, que me desfiz da convicção de que se importar é sempre benéfico. Se olho para todos com a intenção de zelo, eu contenho meus impulsos que urgem por retribuição. Todo ato de amor deve ser genuíno, direto e sem intenções, mas posso eu controlar meu âmago, a minha sede de justiça? Vez ou outra me vituperaram por me assumir cru, incontível e incontido, escancarado. Quando zombam o meu sonho sacro de escrever livros, quando escarnecem dos contos ou crônicas, quando me provocam, eu retribuo com agressividade. Sinto que sou e sempre serei furiosamente delicado e essa indolência, essa indiferença paulistana é inatingível pra mim. Até mesmo os vendedores, que por antecipação supomos que agirão com delicadeza, destratam os clientes tranquilamente, como se a grosseria fosse motivo de celebração. Ah, São Paulo! Tão inigualável nas noites e tão ridícula nos modos! Ah, São Paulo! Tão triste, agitada e comovente… A cidade feia é repleta de magia. Chame do que quiser, mas aprendi que há algo de especial nesta feiura. Julgo que a personalidade da cidade é fria e dura.

            Flagro-me pensativo sentado dentro do carro e observo o céu e as pichações. Muros, paredes, pontes, prédios, tudo alvo da arte de rua. Quem é que sobe tão alto para desenhar um símbolo que pouquíssimos saberão o significado? Não, claro, eu deveria saber melhor. Quem sobe alto sobe por conta própria e por si. É sobre fazer o que deve ser feito, ainda que os outros não entendam. Julgo que os grafiteiros e os pichadores e os artistas ajam todos por instinto, pois só o que é feito por instinto representa realmente arte autêntica. Sofrer é pensar, assim, para a criação de coisas frágeis é preciso se entregar de corpo e alma ao trabalho. Se mudará vidas ou não, isso não pode interessar, mas quando algo belo e legítimo cruzar a minha mente, que meus dedos desnudem minhas verdades e me narrem por inteiro. Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra, mas isso não interessa. Quando não puderes mais permanecer neste mundo, erguerei a cabeça, recobrarei o ar e seguirei caminhando. A jornada não acaba enquanto eu puder continuar sonhando. Talvez eu nunca me cumpra e isso não faz diferença. Não há fatalidades e a liberdade é a minha única sentença.

Sem reticências

Encontra-me hoje sem reticências
Percebe-me como sou: inédito
Não dê muita esperança para tua crença
Deixe que falem os gestos e a presença
Aquele outro eu de ontem já não existe
Aquela outra você de ontem também não
Outro dia me palpitou ao peito um súbito desejo
Capricho desforme do meu grande coração?
Não, o coração não anseia por muito
Satisfaz-se com a função de bombear sangue
A alma urge por um passeio solitário
e a maioria dos otários só anda em gangue
Sacode o meu corpo com tua força brusca
Nenhuma amizade de verdade te ofusca
Cuidado com o que tanto busca
Há sempre o risco de encontrar
Por existir demasiado tarjaram minha testa
O dia que me matarem, chorarão e farão festa
Contarão minhas melhores memórias e os cultos
descrerão estupefatos diante da minha cronologia inútil
A classe artística não recebe o apoio que merece
O artista que sobressai esnoba quem nunca surgiu
Alimentam-se da farta fama que os envaidece
O desfile deslumbrante do ego macio
Não obstante, fingem que esquecem
Quem solitariamente os aplaudiu
O único jeito de se encarar é subutilizar os espelhos
Dizem-nos tantas coisas o tempo inteiro e nos convencem
Sim, eles nos persuadem de que não somos bons
Eles nos persuadem de que somos muito bons
E nesta descompactação pessoal passamos a crer
As verdades se misturam com as mentiras
O velho não é necessariamente sábio
Bobagem, isso é o suco da idiotice,
Veja como é possível que um estúpido como eu
tenha escrito novelas, histórias e contos de fadas
Persevera nessa vida quem marca o papel com a tinta
e persegue o desfecho até o rabo da palavra
A constância é a perfeição e somos imperfeitos
Fúteis, inúteis, imersos nessas reticências
Acordamos e predizemos o dia, a semana, o futuro,
A arrogância de antecipar o imprevisível
Vê, filho, pessoas nascem e morrem todos os dias
Ninguém dá a mínima para a porra da poesia
até perder o avô, até ser demitido, até o fundo do poço,
De repente uma rima distraída cessa seu período fosco
Extravaso minhas humanidades em uma delicadeza furiosa
E repudio a crença em um mundo indolente e passivo
Te humilham, te cospem, te pisam e quando você reage
AH! VOCÊ… VOCÊ FOI MUITO AGRESSIVO
Ó vida, sonora estúpida de motivação
Você se fode todos os dias e não há comoção
Os cristãos erram propositadamente e julgam
Os não cristãos seguem o exemplo e se Deus existir
deve certamente estar envergonhado de nós
Entretanto os réprobos trajados de santos
são os primeiros que apontam e dizem que você não presta
Foi por escolher ser eu entre tantos
que sigo com a porra do alvo na testa
Estereótipos que não me comportam
Previsões que não me completam
Ainda assim, escrevo tudo isso como um desabafo
Outros humanos com suas humanidades se achegarão e dirão
Daniel, obrigado, ei, obrigado, eu realmente entendo
E nessa confissão secreta de intimidade
Odeio um pouco menos essa cidade
Por mais que me vituperem o tempo inteiro
Por mais que antes dos olhos, olhem minha roupa e meu dinheiro
Ó, VIDA! ELO ESTÚPIDO FINDÁVEL
Estarei a afundar eternamente?
Rasgo o papel, doo dezesseis livros, recito dois poemas
Passo um café, lavo a louça, como qualquer porcaria,
O sapo cangaceiro me cobra sobre as publicações
Não posso reclamar da simplicidade dos anfíbios
Eu o posicionei ao lado e o exigi que me exigisse
Um relâmpago cruza o céu antes do meio-dia
e me comovo ao ponto de provar meu próprio sal
Se os sapos choram, eles estão a cometer suicídio?
Torno-me sorumbático e pessimista
Tentei colocar no papel um pouco de poesia e falhei
Alguns amigos queriam me ver hoje
Disseram que estão com saudades e que tenho crédito
Até os encontraria, se me recordassem sem reticências
e me percebessem inédito
Entretanto, sendo pouco e tanto,
Resigno-me ao meu escritório repleto de tédio
A coluna por coincidência dói e não tomarei remédios
Queria escrever algo magnífico e devaneei sobre o nada
Quem poderia me ver como sou se sou invisível?
A minha imaginação é um milagre
que não odeia o que é real
Ainda assim, às vezes, eu queria ser menos fatal
Negar-se, entretanto, é decretar a morte de mim
Se tudo um dia acaba, vou atrás do rabo da palavra
Escolher eu mesmo meu fim.

Terça-feira morna

O lusco-fusco deste fim de tarde atinge minha pele pálida. O sol se recolhe e o temor cresce nesta noite sem luar. Fecho as janelas e respiro fundo, tentando apagar a sensação incômoda que me sobressalta. O cão, leal, fita-me carinhosamente com seus olhos de jabuticaba. O gato, bicolor, recolhe suas patas e deita ao lado do meu braço direito, cobrindo a distância que pode, sem me atrapalhar. Antes que a ausência da gata se faça sentida, observo-a surgir na porta do escritório e me analisar com uma seriedade misteriosa e complacente, antes de subitamente começar a lamber os próprios pelos em uma higienização longa e demorada. Tudo no cão e nos gatos é absolutamente natural. Estranho-me ao me deparar com a minha imagem letárgica, absorvendo a invernia deste início de novembro. A estreia do penúltimo mês do ano me deixa reflexivo e meus pensamentos percorrem vielas escuras e perigosas. Nos filmes e na vida, não há razão que justifique a insensatez de adentrar um beco de penumbra onde sombras de bichos se misturam e se confundem com fantasmas de pessoas, entretanto, para provar a minha espontaneidade e livre arbítrio através de uma atitude de pura estupidez, eu me flagro caminhando em frente.


Revolvo-me para dentro, interiorizando-me, internalizando-me, buscando no cerne qualquer coisa com uma pitada de magia, qualquer coisa que me faça deixar de pensar, qualquer solução para voltar a sentir e agir estritamente por instinto. Se todo o sofrer é individual, por que eu me comovo com as dores que não sinto? Se isso não é tristeza, será que secretamente minto? Os mecanismos e as mecanicidades engessam as ações e a sociedade se torna previsível, robótica. As academias de musculação estão cada vez mais lotadas, não pela preservação da saúde, mas por uma espécie de estímulo ao senso coletivo de estética. Todos nós devemos ter os abdomes tonificados e os músculos fortes. A flacidez apavora tanto os cidadãos modernos quanto a fome assola os miseráveis. Tudo que é fruto de um senso coletivo gerado através da indução premeditada me apavora. Resumimo-nos ao que nunca fomos. Os titereiros balanças suas cordas e as pessoas correspondem aos comandos. Absorvem doutrinas inteiras em um minuto e depois abrem suas cabeças ao fanatismo, sem compreender que é um caminho sem volta. Marionetes robustas, violentas e manipuláveis. Ajoelham-se para falsos deuses. Espalham notícias, antes mesmo de as lerem. Tornaram-se os robôs revolucionários, não pensantes, convencidos pelo primeiro vídeo editado que recebem. São liderados por qualquer um que entoe um grito populista e falsamente revolucionário. Pensam-se vitoriosos, mas o que acontece é justamente o contrário. O surgimento dessas novas estéticas, dos novos sensos comuns, dessa necessidade estrita de concordância, envenena pouco a pouco a minha alma. Se não formos iguais, não servimos. Quando suas ações não visam o lucro, quando suas ambições não são puramente monetárias, quando a astronomia da tua existência não engloba e engole o tempo inteiro o que ditamos como Sucesso, outras palavras ardilosas e ásperas como Fracasso entram traiçoeiramente como a brisa gélida pelas frestas da janela. Um dia eles foram outras coisas, mas já não se lembram de quem era. Aprendi que qualquer um que esqueça o passado se torna desprotegido quanto ao futuro. Talvez seja por aprender tanto que diminuí a frequência com que canto e vejo meu coração mais duro.


A alma não pode se tornar empedernida. Os conhecimentos que absorvemos com calma, creio que de alguma forma os levamos para outras vidas. Não é possível que isso seja tudo. A estética grita e cala o conteúdo. Tento falar, mas estou mudo. Será que é mais uma derrota amarga para processar? Não admito que isso seja o fim. Por vezes, sinto que a vida vai acabar, mas ainda tenho tantos sonhos em mim.


O peso das responsabilidades mundanas me sobrecarrega. A crueldade que não pude herdar de nenhum parente distante, esse ímpeto de bondade constante é o que me cega. Não posso admitir ser uno, se sempre me torno outra coisa. Mudo o tempo inteiro e abro a minha cabeça para mais, sem me imbecilizar. A religião de não ter religiões, eu, indivisível e puro, oscilante, falível, confio no meu próprio coração. O maior prazer mora ainda dentro da ilusão. Salto no abismo da inconsciência alvejando me tornar ainda mais puro, ansiando por agir de acordo com todos os estímulos que necessito para satisfazer a alma exigente. Mereço mais e sei, entretanto, acocoro-me no canto perto da privada e vomito, lúcido, sistemas, teorias e teoremas inteiros. Reviso mentalmente livros que nunca foram escritos e me sinto perto da morte e perto do divino. Penso-me grande, mas tenho todas as idades que tive e a gente só sobrevive se guarda em si um pouco de menino. Será que prezo em demasia a criança que fui? Desde a infância amo o vermelho e hoje noto que perdi meu reflexo diante do espelho. O vampiro envelhecido que não envelhece, a cabeça que não se expande, o antigo desejo de existir longe. O primitivo anseio de beber sangue. Ó, escuridão sombria, esconda-me hoje, esconda-me até o domingo, proteja-me quando nada mais puderes servir de escudo, projeta-se e fala quando eu me fizer mudo. Cavaleiro das mil noites trajado em seu manto rubro. Que valentia o faz enfrentar a morte sorrindo? Vituperado prossegue sem sorte com a memória de quando o mundo era lindo. Era lindo por que o era ou por que havia quem amar? Assim como o inferno, o paraíso também não é um lugar. Verifiquei a necessidade dos outros para ser profundamente triste ou imensamente feliz.


Tudo envelhece e um dia voltarei ao pó. Tudo arrefece e no fim se anda só. A vontade de não ter vontades, os suspiros cansados no meio do expediente, o meio expediente da vida, que pode ter acontecido a qualquer momento. Eu sozinho e sem saber como seguir e me orientar. A minha memória em outra cidade. O coração no lugar certo. A alma papeando com divindades em outras cronologias e distantes desertos. Eu tentando aprender algo para que. Tentando ouvir mais e se. Preocupando-me com os outros, mas sem receber essa preocupação de volta. Todos os desejos alheios foram realizados com leveza e facilidade, exceto os meus próprios. Tudo foi conseguido pelos opróbrios. Eu, quase corajoso o suficiente para ser digno, desdobrando-me e desbravando tudo, ficando quando todo o resto vai saindo, eu sofro solitário, sem ter ao menos meu próprio tempo para sofrer. Luto para fazer valer cada momento e mesmo quando tento e venço, é difícil sentir como se eu não tivesse acabado de perder.

Obrigação insistente.

Tenho vivido como se a vida não passasse de uma obrigação insistente, um constante cálculo de penhores, como se tivesse nascido devendo e por uma espécie de premonição, por um instinto divino, virasse a cabeça para trás e reconhecesse uma boa parte de mim que não reconheço completamente, mas enxergo como o exímio vendedor da loja de perfumes que vi apenas uma vez e que por saber vender e sorrir, gravou-se na tela de minha memória. Por vezes fito a tela e tenho a nítida sensação de que a vejo em todos os dias de minha vida, como um filho apegado à mãe, que cresce se escondendo atrás de suas pernas, seguro na proteção materna, na lembrança pontual do sorriso reconfortante. Em outras ocasiões, franzo o cenho e me flagro arisco, vulnerável, defectível e humano, assim, minto que me lembro do semblante do vendedor, entretanto, a imagem é confusa, distorcida e vaga, como se as faces de todos os vendedores do Universo formassem uma amálgama que atordoa a minha alma. Perco-me do fio que me conecta a mim, esqueço-me, atraso-me e perco os horários. Os começos todos soam como fins. Sou um e simultaneamente vários.


Cutuco minhas feridas com a teimosia de uma criança que arranca a casca do machucado recém cicatrizado e observo o sangue escorrer preguiçosamente. Entristeço e sorrio, como se tivesse a vivência de um Deus esquecido que permaneceu sozinho neste planeta silencioso por éons, como se tivesse vislumbrado o Aleph, visto os sóis da Galáxia, antes que me deixassem com apenas uma estrela imensa de calor. Nestes dias, busco em mim a satisfação própria e por não encontrar ou, por me julgar demasiadamente hipócrita ou frágil, recolho-me para dentro como uma tartaruga voltando ao casco, revolvendo para os confins do porão de mim, buscando a própria Via-Láctea cardíaca da minha alma. Lá e em Imaginações, devo encontrar a Redenção que procuro pelos crimes que nunca cometi. Lá e Além, devo compreender o que hoje para mim se escapa na simplicidade sem misticismos. Confio a minha vida a alguém que não deveria e sofro. Desconfio e descredibilizo a minha existência num ato de covardia fúnebre e me vejo tiritando, amedrontado por quem nunca ousaria me ferir. A distância entre a eternidade, o nunca e a primeira vez é curta. Os acertos reverberam. Os erros também.


Humanizo-me e não choro. Abro a gaveta da cozinha e pego uma faca. Brinco com o cabo da faca em meus dedos, leve na consciência pontiaguda de que um movimento errado pode me fazer sangrar. Pisco e me lembro então da casca arrancada, com uma espécie de ironia argêntea. Qualquer um que arranque uma pele morta não é acusado por sua negligência ou afobação, entretanto, alguém que brinca com uma faca e deverá ser interpretado erroneamente. Checo o interior da geladeira com uma desculpa para me livrar dos meus pensamentos mais torpes. Encontrar algo que não se procura traz uma fonte de alegria inesperada. Sobrevivo soporífero nas rotinas diurnas e nas madrugas, triplico a intensidade da minha rotina em sonhos sonâmbulos. Morri em uma queda de elevador triangular. Fui coroado imperador onírico em qualquer século antes de Cristo. Vivi numa realidade em que não havia deuses e que não havia a mera ideia de deificar normalidades. O comum era raro e tudo era extremamente comum. Olhei as coisas pela primeira vez e chorei, como quem corta uma cebola e sente a súbita ardência nas órbitas oculares. Corri até a janela e todas as paisagens eram imensas e deslumbrantes.


Cri, até deixar de crer. Sonhei, até verificar meus sonhos esfacelados pela pungência da realidade desconexa. Eu, que mereço, nunca terei. Os que não merecem, em regra, se cumprem e conseguem exatamente o que pretendem, assim, deveria apenas consumir este mundo de coisas frágeis e lentas ao invés de me comover por suas misérias. As tragédias são individuais e intransferíveis, mas qualquer um que viva a própria vida com as mãos no volante e, vez ou outra, ouse lançar uma olhadela para o retrovisor que revela as outras vidas, pode acabar batendo o carro. A feiura da realidade mancha a tela branca de nossa consciência oportunista.


Há inúmeras crianças e adultos e velhos espalhados pelo planeta, quase nus, sentindo a fome dilacerante. O que sobreviveu de suas consciências é mais atroz que a fome e são obrigados a engolir um pedaço jogado de pão, como quem engole todas as vidas que houveram antes dessa, como quem é obrigado a admitir que não possui nenhuma memória de dignidade e deve comer os restos que encontra no chão, exatamente como fazem os pombos. Aqueles vultos são escombros, pedaços de homens e mulheres que se perderam ao longo do caminho. Há quem dê de ombros e refute “nascemos e morremos sozinhos”. Há quem encontre saídas e mude a própria sorte. Há quem só sofra durante a vida sem nunca pensar na morte, pois se sentem antecipadamente mortos. Tudo é aterrorizante para quem vive com medo. O sofrimento é constante para quem se sufoca com inúmeros segredos. Refém das projeções d’alma, comovo-me, enraiveço-me defronte ao mais simples caso de adultério. Tenho sobrevivido sendo quem sou, entretanto, não compreendo ainda meus próprios mistérios. Fito sério o meu rosto no espelho e envelheço devagar. Sinto-me exposto e a contragosto, estou mais perto de algum lugar. Que paisagem é essa que me aguarda, ainda não sei. Se nunca morri por um capricho dos Administradores, se mantenho o meu emprego de Daniel enquanto a alma veste este corpo imperfeito, por que me preocupo com o futuro, se ele não existe? Que é que molha o meu copo de chope e faz minha alegria ser triste?


Nasci para não me cumprir e a expectativa pesa meu corpo. Teso, sinto meus olhos fixos nos retrovisores. Minhas mãos estão firmes no volante, porém falho em retomar o campo de visão da estrada. Sinto como se uma colisão fosse inevitável, entretanto, o carro segue adiante sem danos severos. Os meus planos já não acontecem como eu espero. Olho-me, curioso, seco, duro. Observo quem está de fora e foge das análises individuais em uma tentativa infantil de tentar se evitar. Ninguém corre mais rápido que os problemas e por isso é fácil notar que todas as tragédias estão sempre ao nosso alcance. O passado, inútil como nostalgia e fundamental como lembrete, avizinha-se constantemente do atual, do pensamento de hoje e constato que quem se firma no presente e somente no presente é consequentemente mais feliz. Que ideia vaga e ultrapassada é esta da realidade. Pisco e vejo centenas de vidas ocorrendo diferentes, apenas por uma decisão caprichosa de virar a esquerda instintivamente e não para a direita. Vejo o Universo rugindo cenários e mais cenários, incalculavelmente drásticos e felizes e tristes e caóticos e diferentes. Fixo-me na realidade sem chorar pelas milhões de vidas que nunca vivi, entretanto, espio pelo buraco no muro, pela fresta da janela que alguém deixou aberta de maneira descuidada logo antes de um dia de tempestade e encaro inúmeras outras realidades alheias. Julgo entender como aquelas pessoas, tão sólidas, íntimas e confortavelmente confiáveis na minha intuição poderiam me trair e sofro oniricamente por todas as traições que já sofri em outros cenários, por meio de outros sonhos e gestos, que por vezes se igualam a qualquer realidade atravessada que fira o ego. Sobre o olhar da consciência, preferia me manter cego, mas enxergo os detalhes paisagísticos de um aceno distante, de um sorriso febril, de uma vingança muda de uma traição que nunca houve e me calo, repousando a minha quantidade avassaladora de pensamentos em Lugar Nenhum. Sento no sofá e vejo o cachorro andando pela casa, assim como os gatos, assim como um garoto tímido de cabelos pretos e lisos e que sonhava em usar um topete, assim como um velho escritor lúgubre e quase satisfeito, não concretizando a satisfação própria por não escrever e finais e sim novos epílogos, por insistir em escrever novos capítulos, por adoçar a vida através de chocolates amargos. Tudo desfila diante dos meus olhos, o que foi e o que fui, o que nunca recuperei e sorrio exultante, como se triunfasse secretamente sobre a vida, que é particular e barulhenta.


O que sabem de mim, ninguém o sabe. O que sei de mim, não o sei. Coroado por vilanias e crimes, nunca fui rei de nada. Em sonhos diurnos fui tudo e fiz tudo. Senti frio, prazer, fome, vergonha, calor, orgulho e até felicidade. Vivi como se a vida significasse algo e posso jurar que vi os Administradores zombeteiros gargalhando da minha pequenez, com a convicção de que por um capricho sem esforço poderiam se livrar de mim. Quiçá a realidade seja apenas uma ilusão e todas essas crenças concretas não passem de coisas corriqueiras.


Interlúdio. O gato deita no meu colo e me fita carinhosamente. Olha dentro de meus olhos com um amor tão profundo e verdadeiro que, por instantes, creio na ilusão estéril de minha bondade. Isso não é útil e tampouco verdadeiro. Ninguém é puramente bom ou ruim, entretanto, o felino deita um olhar longo e repleto de amor, confiando sua frágil existência e todas as suas sete vidas a mim. A melancolia preenche o quarto somente nos espaços não ocupados pelos gatos e pelo cão. O vento ululante sopra qualquer nota de triunfo e sorrio conformado. Volto ao dia de ontem e celebro silencioso a vitória da Democracia, rezando, sem religiões, para que este país polarizado se una, para que se pense mais do bem coletivo do que no individual, para que se preze o que é justo acima daquilo que desejamos solitariamente. Os fanatismos todos me exaurem, assim, ao olhar minha imagem corcunda e cansada no espelho, percebo que o que é alheio tem em si o potencial de vituperar a minha saúde e sanidade. Não são mais do que soldados de uma causa desconhecida. São, eu me vejo solitário numa terra perdida. Prezo pelas luzes nas janelas acesas e pelas pessoas que se movem em seus quartos, em suas restrições, em suas liberdades. Ninguém se importa com o que deveria se importar. Tudo me foge e estremeço novamente, entretanto, é preciso confiar em dias melhores. Respiro fundo e vejo claramente, por um instante sacro, a imagem célere do Paraíso. O alívio necessário encontro na profusão dos meus sorrisos favoritos.


Tenho vivido como se a vida não passasse de uma obrigação insistente, um constante cálculo de penhores. Juntei dinheiro o bastante, mas agora não me lembro do nome do vendedor, não, eu tentei de tudo e não me recordo de sua face, de sua voz ou de seu tom de pele, não, nem mesmo das informações mais básicas. Suspiro.

O avião decola e muitos dormem. Talvez eu seja um deles, sempre dormindo, sentindo a pressão nos ouvidos até não escutar direito e ficar incomodado ou desmaiar em um sono profundo, raro e absolutamente silencioso. O avião decola e julgo que durmo, julgo que nunca acordo, porque todos os voos decolam e aterrissam e eu, mesmo tolo, creio que todos os voos são um só, ainda que todas as jornadas sejam diferentes. Afivelo os meus cintos e me reforço na prudência. Nunca hei de me concretizar. Os sonhos passam entre as nuvens. Não consigo fazê-los acontecer. Letras e ideias flutuam em percepções gênias, como milagres científicos sobrenaturais fabricados pelo meu cérebro, mas pisco meus olhos e todas as ideias voam para fora. Será que o sonho vale mais que a vida? Será que projetar a vida é sabotar o sonho? Nada jamais me convenceu de que a realidade é real, exceto os fracassos. Queria, por merecimento, apenas sentir que me entregarão pela boa vontade tudo o que mereço. Gargalho da minha ingenuidade. Só os suficientemente ousados e vis se concretizam e disso já sei. Ouço o choro do filho que ainda terei e o aninho em meus braços, prometendo para ele segurança e carinho, mesmo que isso esteja distante do meu controle. Não controlo nada. Talvez tenha morrido na estrada, na BR-163, muito antes do bloqueio patético dos caminhoneiros, muito bem pagos. Pisco e estou de volta ao avião. A aeromoça me oferece uma refeição leve. Peço os lanches, tanto o salgado quanto o doce, bebo o café, a água e depois durmo. Tenho a sensação de que nunca mais vou acordar. Tenho vivido como se a vida não passasse de uma obrigação insistente. Tenho a sensação de que nunca vi verdadeiramente. Deita e dorme, garoto, você fez muito e eu sei que parece pouco, mas você pode permanecer contente.


O peso ou a leveza, eu ainda me pergunto frequentemente. O importante é enxergar e propagar a Beleza. Este é único motivo legítimo para seguir em frente.