Eu me peguei refletindo sobre a persistência, sobre uma vontade insistente de agir e ser diferente, de não sucumbir diante das mazelas mundanas e concluí que não sabia se tinha esse tipo de força. Você sabe reconhecer suas fraquezas? Li ainda hoje na internet alguém dizer que sofreu centenas de traições e me imaginei assim tão traído. Acho que, se fosse o meu caso, eu me fecharia para todos e escolheria a solidão absoluta, em ordem de me manter seguro, sem me tornar ríspido, sem correr o risco de descontar as minhas frustrações nos outros. Nunca fui traído nos romances que tive e tampouco traí, assim, localizo-me distante deste local de fala, ainda assim, penso-me traído e nas traições que nunca foram e essa ira muda que sinto brevemente me leva para longe.
Os corações sensíveis assim o são, viciados na melancolia, acostumados com a voracidade alheia que contrasta com a paciência serena. Pessoas assim, tão furiosamente delicadas, não raramente são testadas, como se o ato único da vida, esse viver cotidiano, zombasse incessantemente da nossa fibra e nos guiasse para um hedonismo como solução geral. Se me permito a acreditar que devo viver a vida somente pelos prazeres, ignorando todo o resto, eu estou fatalmente perdido. Custam a aceitar, mas há muito mais envolvido. Quando criança e adolescente presenciei muitas traições, umas tantas ocorriam no ambiente familiar, envolvendo o que acontecia na minha própria casa ou nas casas dos meus amigos. Não tanto depois vi esses mesmos amigos copiando o comportamento de seus pais e dando sequência a um ciclo potencialmente infinito. Furioso e frágil, eu bravejava que escreveria minha história diferente. Não falhei, pelo menos não ainda e admito que por vezes não sei de onde tirei forças para ser exatamente quem eu sou. Não subestime a capacidade de ser autêntico. Ser exige esforço e persistência, pois é preciso ser continuamente. Ser é, sobretudo, navegar contra a maré e ter a consciência de si. Aos dezessete, certa feita, minha mãe me olhou e disse que eu estava me tornando um homem incrível e lindo. Aquelas palavras, poucas, retas e sinceras, foram suficientes e me serviram como combustível para que continuasse no caminho para ser alguém de quem eu sempre me orgulhasse, mas e se as pessoas que mais amo de repente me traíssem? E se o punhal ensanguentado removido de mim pudesse ter sido a arma de alguém que adoro? O que seria do Daniel nos dias de hoje?
Para ser honesto, eu não sei o que me seria e nem a minha argúcia intelectual pode de verdade prever uma realidade alternativa. Só o que foi realmente foi e todas as outras possibilidades morreram. A dualidade é incômoda e estranha. Fui e sou correto, sem exigir da vida recompensas, porém nunca esperei que houvesse tanta punição. Sim, se você for como eu, um maldito certinho, muitas vezes se sentiu mal por estar fazendo o bem, pois parece que agir direito é digno de castigo. Acho que é por essas e outras que tanto acabam cedendo aos tantos perigos ou sedentos pelos perigos. Eu até brincaria com fogo, entretanto, jamais incendiaria a casa. Sou o último acordado antes dos outros dormirem por sentir o dever de zelar pelos que convivem comigo. Tudo é vago e longe. Acreditava no Amor romântico e eterno e nas Amizades românticas e eternas, até que me dissuadiram destas crenças. Necessitei de quase três anos para, enfim, recuperá-las, mas não foi nada fácil. A vida nos testa ao contrário.
Um dos grandes amigos que tive, uma vez, veio se gabar de uma mulher com quem havia transado. Eu o confrontei, sem dar bola para o assunto e o indaguei sobre o motivo de ter feito algo assim sendo que namorava com outra. O resultado desta satisfação foi catastrófico. Fui eu acusado de ser traíra, afastado do meu grupo de amigos e colocado em isolamento, apenas por não ser conivente com algo que nunca poderia tolerar. Passei anos com pouquíssimos amigos por ter a coragem do embate e meu prêmio foi a retaliação. A pior parte é que eu sentia falta desse meu amigo, ainda que não reconhecesse nele valor moral. Quem nunca deu um “foda-se” para a moral? Como dizia Victor Hugo, “que sejam maus e inconsequentes, mas corajosos e fiéis“. Ele era inconsequente e custo a utilizar a palavra “mau”, porém era covarde e não havia fidelidade dele aos amigos ou aos amores. Sofri pelo afastamento, sim, mais do que eu gostaria de admitir. Tantas horas compartilhadas e eu havia perdido o meu amigo para os meus próprios valores. É muito nesta vida questionar a veracidade de outros amores? Sim e não, entretanto, se alguém que amo passa dos limites, não estou obrigado de forma tácita a me posicionar? Se me silencio diante do errado, vejo-me conivente e aprendi há anos que há silêncios que envenenam. Quando quase havia me convencido de que ser duro, mesmo com as coisas certas, sempre nos afastava das pessoas, a vida finalmente me deu amigos novos, amigos significativamente melhores. Com esses novos eu poderia ser sincero sem correr o risco de que facilmente se ofendessem. Quem exige não se importa em ser exigido e com os meus novos amigos eu poderia esperar um caráter férreo em retribuição. Com essas novas pessoas que apareceram os conselhos eram verdadeiros e entravam direto no coração.
Antes disso, entretanto, aprendi a acreditar na solidão. Se há solidões maléficas, depressivas e sufocantes, há solidões largas, espaçosas, onde se encaixam todos os mundos com seus respectivos países, cidades e praças. Aprendi a acreditar no trabalho, embora não tenha me sentido mais digno. Eu, sempre sensível em escutar os outros, aprendi a escutar os meus silêncios e a amar os meus barulhos. Sem o grande afastamento, eu jamais teria amadurecido tanto. Fazia as coisas da maneira correta por instinto e me esticava para a compreensão alheia por ser empático, entretanto, só após ficar completamente solitário é que me entendi e se entender representa um passo importante para tentar entender a sociedade que me cerca. Não posso me considerar exceção de coisa alguma, se sou tão humano quanto os outros, mas quanto mais você vive e vê, mais chances surgem de encontrar pessoas que valham mais que o ouro. Aguardo o fim do expediente pensando nessas pessoas, outrora tão distantes ao ponto de serem inexistentes em imaginação, hoje tão próximas que posso as encontrar em algumas horas. Toda essa noção é estrangeira e confusa e sofro, porém, imagino-me feliz em breve ao chegar no meu próximo destino e, enfim, encontrar-me com pessoas que me tornam mais alegre e me tornam ainda mais efusivo, apenas por existir. Abraço-os ou aperto suas mãos e os nossos sorrisos são luminescentes. Sim, eu os amo e sou amado de volta. Ouvi muitas vezes sobre o quanto sou importante como amigo, filho, namorado e isso nunca fica enjoativo. Respiro essas tantas palavras e me sinto bem. As palavras e os gestos são, em regra, o único conforto.
A solidão de Dourados ensinou a mim tudo. A fábrica de tratores, os céus laranjas ou rosados, a poeira vermelha, o coelho branco perto do supermercado, a BR-163, a jornada de trabalho, tudo isso se consolidou em mim como uma amálgama de coisas inúteis dotadas de uma importância celestial. Numa tarde, naquele posto de rodovia, a abelha gigante que sobrevoava o meu energético venceu. Não sei se faria tão bem para seu corpo diminuto o energético e imaginei que o coração fosse uma coisa insignificante, mas a abelha bebeu e depois disparou rumo ao desconhecido, mostrando-me sua coragem selvagem, provando meu erro. Aquele coração suportava mais do que eu supunha. Eu nada entendia de abelhas. O Nada ensina muito sobre o Tudo. Só o silêncio que traz sentido aos barulhos. E então eu absorvia da vida a própria vida e me preparava para algo que não sabia. Acumulei decepções e fui o príncipe de horas sombrias e me vi esquecido e distante. Nas sextas e sábados e domingos eu trabalhava. Todo o resto fumava, bebia e fodia. Eu era o único esquecido pela humanidade e longe do que me fazia humano, eu me reinventava do zero, como se tivesse acabado de nascer ali. Busquei não me ressentir com os outros, pois eventualmente seriam eles isolados e eu me divertindo. Quem nunca pôde viver um período de isolamento não tem sequer um parâmetro mínimo, básico, para o autoconhecimento. A solidão nos ensina a buscar nós mesmos, conhecer essas pequenas e preciosas coisas que revelam nosso propósito de vida. Fui talhado por essas noites infinitas e vivi o sábado sem fim. Só por ser só é que ainda tenho todos os sonhos do mundo em mim. Por vezes, ainda que quatro anos tenham se passado, eu fecho os olhos e me enxergo preso naquele sábado dolorido.
Olhos fechados. Imersão. É sábado novamente, 2018. O que eu posso fazer além de ficar recluso? Ir na pizzaria? Entrar em uma festa como penetra? Não, eu não conheço ninguém nessa cidade. Sou muito afável e polido para as zonas; muito direto para o romance, muito tímido para fazer amizades e estou cansado de ser engando por mulheres nos aplicativos. Só eu sou quem sou e mais ninguém é quem deveria ser. Tantos questionamentos sem respostas e um bafo de morte me seduz dizendo que tudo se iguala e que um dia virarei pó. Eu, resignado com a solidão, devo aproveitar então a condição de ser só? Como se aproveitar se a solidão é assustadora? Tenho medo de mim ou do que não conheço ainda? Eu preciso acordar. Eu preciso me acordar. Alguém me sacuda agora. Eu quero muito sair daqui. Tanto faz Campo Grande ou Paris. Eu quero qualquer cidade que não seja essa e qualquer dia que não seja sábado. Alguém me acorda longe. Emersão. Olhos fechados.
Quatro anos depois e me vejo lá naquele passado sem ter a menor noção de mim. O sábado infinito vive a uma janela do presente. Eu vivia em automatismos, quase robô de mim mesmo, com ações previsíveis e espelhadas. Nessa época, havia uma moça do supermercado que sorria para mim e só um ou dois anos depois percebi. Um jovem vagaroso, descuidado e inocente. Ela queria ser convidada para sair, porque aquele sorriso era exclusivo, íntimo e intransferível. Eu, ingênuo de tudo, confundia com uma simpatia natural, mas só em uma epifania notei que ela nunca sorria para os outros. Tudo o que não soube naquelas tardes, eu aprendi depois. Assim vai a vida. Acontece o tempo inteiro, mesmo quando não percebemos. Por vezes até supomos perceber e a ignoramos. Tudo é real, às vezes, até algumas mentiras e é preciso tomar cuidado com o que ensombra e é, na realidade, armadilha. Não é toda sombra de árvore que oferece descanso. Respiro e fecho os olhos. A fúria cessa e me sinto manso.
Se é na ausência que se percebe as tantas nuances da falta de alguém, pergunto-lhes, como é tão comum que nos relacionamentos distantes ocorram tantas traições? Como alguém, ao perceber extenuada a falta de outrem, preenche-se de coragem e consegue trair alguém? Vileza cruel e sombria! É por isso que me criei contra os relacionamentos ao longe, por ver neles a maior possibilidade de imaginação e amor, até se provarem mais venenosos do que a maioria. Cumprem a falta de um em qualquer outro e essa astúcia estética me soa perniciosa. Odeio os relacionamentos ao longe por deduzir que se encerrarão em dor e sofrimento. Se o amor precisa tanto de presença, crer na distância faz a diferença? Estamos apostando no desconhecido a nossa fé cega ou isso é outra coisa? Não entendo agora, portanto, não me meto. É mentira que cada um sabe o que faz, mas é verdade que geralmente não devemos meter o dedo. O que fazer para os esforços se revelarem válidos? Como conseguir a astúcia de tentar de novo após acumular tantos revezes? Como se regozijar com a memória de tantos fracassos? Respiro e medito. Há partes que entendo e repenso. Há partes que ainda não entendo e faço as pazes com o desconhecimento. Quem sabe daqui uma década eu seja sábio o bastante? Vou perder para a vida, mas pretendo existir longe.
Aprendi que a minha linguagem do amor é o tempo de qualidade, assim, esforço-me ao máximo para estar presente e ser uma boa companhia na vida das pessoas que me cercam. Todo o restante perde o encanto quando estão longe de mim ou quando, por algum motivo, estão presentes e simultaneamente distantes. A presença física, quando não acompanhada de sintonia emocional, pode ser nula. Não posso me acostumar a ser ignorado, principalmente quando, vez ou outra, sinto a latente necessidade de ser visto. Que fazer de mim quando quem me ama se esquece que eu existo? Respiro e medito. Persisto? Penso a vida inteira e encontro paz, mesmo que não encontre respostas. Cogito a condição de solidão para afiar meus pensamentos e afinar meus conhecimentos. Será que sozinho entenderia parte dessas tantas coisas que me escapam? Por vezes desejo ficar sozinho e me parece que o mundo se ofende, como se eu não tivesse direito de me pertencer. Sou mais dos outros do que meu? Sou overthinker por natureza e se não tento compreender, os pensamentos me matam (ou tentam). Tenho a impressão de que vim falar de sensibilidade e de que acabei por narrar tudo sobre a solidão, mas lhes pergunto: não seria a sensibilidade uma característica marcante de quem aprendeu a conhecer a solidão? Quem nunca se conhece corre o risco de viver fugindo de si mesmo, porém nossos pensamentos são mais rápidos que nós e nos alcançam. O que fazer para não viver eternamente sem esperanças?
“Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates. “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”, como neste relato agudo de Machado de Assis em Dom Casmurro. Aprendemo-nos sozinhos? Interlúdio e respiração ofegante e difícil. O peso ou a leveza? Não sei ainda. Meço meus desejos e posteriormente meus sonhos. Como li anteontem, “nossos sonhos merecem nossa disciplina”. Como tantas vezes falho até nas próximas rimas? Os meus romances aguardam mais palavras e mais coragem. A vida pungente quer me mostrar algo. O que estou deixando escapar? Não tenho convivido o bastante comigo mesmo. Estou sempre claudicante, exausto e queria me deitar em uma banheira de gelo, para restaurar meu corpo. Poderia o gelo restaurar também a minha mente? Qualquer detalhe faria a minha vida diferente. Que sejamos ocultos a quem é alheio e que toda a honestidade do mundo fira os outros, entretanto, quando se olhar no espelho nas manhãs, você deve dizer a si mesmo o que deseja, sem se avexar ou enrubescer. A vida exige que saibamos o que queremos querer.
Bem, sinto que cheguei ao fim destes relatos e sustento um orgulho tosco, quase vil, em apreciar o meu tempo sozinho. Tenho a impressão insistente de que quem não sabe ser só, simplesmente não se tolera e eu, mais do que me tolerar, aprendi desde cedo a me amar. Quem é que passeia no shopping e não repara nas famílias com filhos pequenos? Quem corre nos parques e não para numa apreciação lenta dos animais? Quem nunca se admirou com o sopro súbito do vento que faz as folhas dançarem? Quem nunca deitou no chão gelado de pedra e contemplou as tantas estrelas no teto do céu? Os meus gatos e o meu cão me ensinam todos os dias sobre a importância das coisas frágeis. Que mais me resta dizer?
Saiba ser sozinho, eu imploro, assim, você nunca correrá o risco de se perder das coisas que são realmente importantes na sua vida. E se não tiver animais de estimação, eu recomendo fortemente que arranje um. Em princípio, você sentirá que precisará cuidar deles, mas a realidade que se prova é avessa. Nossos bichos cuidam mais de nós e nos ensinam em menos tempo muito mais sobre a delicadeza, o carinho e o amor, portanto, enfim, altero a minha sentença final. Retifico-a e digo:
– Saiba ser sozinho e adote um animal!