A lacuna da ausência aumenta
E reconheço que, até eu mesmo, falto-me
Assim, por consciência da inconsequência,
Entrego-me aos menores prazeres
Ando nu pela casa e me fito no espelho
Não tenho vergonha nem orgulho do que vejo
Nesta vida tenho sido sempre o mesmo
Pudera me entregar ao instinto ébrio
e ousar não me ser por algumas horas
Há tanta coisa que consigo com
o corpo e a mente que tenho agora
Ainda assim não quero o que posso ter
e só posso querer o que nunca hei de alcançar
A lacuna da ausência aumenta
E reconheço que agora preciso de uma cerveja
Assim, pela consciência de realizar um prazer individual
caminho decididamente até a geladeira
Sou um vexame para os outros poetas
por ser relativamente organizado
Um poeta de verdade não teria achado
tão facilmente aquilo que procura
Abro a minha cerveja preta e a bebo
e faço das goladas consecutivas
uma tradução malfeita de mim
A minha docilidade é amarga,
mas é tão fácil se acostumar comigo
que todos insistem em me querer por perto
Por não ser esperto, eu nunca consigo evitar
essa gente toda que se aproxima
Tento fugir, mas parece que é a minha sina
Há abraços e beijos em cada esquina
E eu, que por vezes reconheço que preciso ficar só,
estou quase sempre acompanhado e meu coração
é mais um balde derramado
Até a minha alma escancara minhas vontades,
entretanto, não há empatia que os faça quererem realizar-me,
Por apenas quererem-me sem realização ou ideais e propósitos
Por não quererem a mim ou de mim o que eu quero
Por se decepcionarem com o que eu mesmo espero
Todo mundo pensa que tem um conselho para tudo
e essa sabedoria falsa é uma súplica de nossas vaidades
E essa nostalgia de vontades não realizadas
Não nos fará mais realizados por fora e nem por dentro
É possível sentir orgulho dos outros, porém
o que não realizamos não realizamos
E a realização alheia não nos fará realizados
A lacuna da ausência aumenta e já não sei
Se um dia deixarei de sentir falta dos tempos de menino
Onde eu era desatento, distraído e desatino,
mas opulentamente livre como um antigo rei.
Tag: solidão
Eu me cansei de mim.
Às vezes me canso de ser quem eu sou, mas me vejo preso em mim, como se a vida me zombasse em um dar de ombros. A vida, entretanto, nem é corpórea, portanto, como poderia ter ombros? Rio de mim, pensando que quase a vida toda tenho sido o mesmo, dentro da minha cabeça, distante deste pesado e coercivo mundo real. Distancio-me da realidade e de quem erra irrefreavelmente. Quero acertar mais. Quero errar mais. Quero o que nem sei, mas não costumo me repetir. Sou inédito nos detalhes, mas nunca aprendi a dizer a palavra certa na hora certa. Será que aprenderei? Queria antecipar a língua dos anjos, conjurar magias benévolas e simplesmente fazer com que os sérios pudessem sorrir. Sinto-me estranho. Faço o que me parece ser a coisa certa e deixo o orgulho de lado. É necessário se desculpar quando se percebe errado. Flocos de neve nunca caíram diante de mim, assim, a neve é tão irreal quanto os amanhãs que nunca aconteceram. O segredo para se ter dias agradáveis é pensar perto e existir longe. O agrimensor mede a extensão das terras. Quem mede a extensão dos homens?
Ainda ontem eu era criança e encontrava todos os tesouros que nunca procurei. Os insetos eram meus amigos silenciosos e a poeira subia como nuvens diante dos meus óculos. Os gatos de rua me observavam enquanto eu via o que só eles também viam. Os cães deitavam para receber o meu afago, pois sempre fui um grande entendedor de carinhos. Nem todos me viam, mas eu via todos. Nem todos sabiam o meu nome, mas eu memorizava todos os que conseguia. Coletava tudo o que encontrava pelo caminho, alimentando secretamente a esperança de utilizar uma chave perdida que encontrei no chão para abrir uma porta ou um baú. O que pensava ter, eu vejo hoje que não me pertencia e muito do que eu era, eu nem sabia ser. O charme dos que nunca foram charmosos, as mentiras boas, espetáculos de sombras e luzes, ligações telefônicas, duras verdades, vozes ofegantes, trotes, patas sujas de lama, juventude, o segredo dos ônibus noturnos, vácuos emocionais, discussões acaloradas, conversas mornas, vazios, ausências, as fases da lua, corujas, andarilhos perdidos e sinceros, o coração puro para os equívocos honestos e as coisas que exalavam o perfume do abandono. Tudo isso sempre existiu no retrovisor de mim, nunca abandonado, nunca sozinho, sempre sozinho, arredio, carinhoso, evasivo, difícil, muito sorridente, muito sério, singular, expansivo, discreto, por anos e anos sem me encontrar com uma alma parecida. Eventualmente, no futuro, eu encontraria algumas, mas enquanto se espera sempre se demora e a rotina pode ser tortuosa no constante correr das horas.
Envelheci mais pela experiência e pelos grandes diálogos do que pelo decorrer do tempo. Ninguém sabe para onde foram os anos passados. O descaso é uma bênção e uma maldição. Eu hoje não sei o que procuro, mas analiso com paciência tudo o que encontro. Ontem mesmo borboletas saíram de dentro do armário. Percebi pelo evento que, vez ou outra, nada faz sentido. Há tanta ficção no meio destas coisas concretas que desconfio da realidade e me sinto perdido. Tudo hoje me parece possível e rio outra vez de minhas futilidades. Oscilo como os gênios e os preguiçosos, cônscio de que sou absolutamente comum. Suspiros duradouros nos interlúdios que faço em mim. Será que tenho feito o meu melhor? O otimismo, de quando em quando, exaure-me. A minha inteligência, de quando em quando, aborrece-me. Quando tudo decorre de acordo com minhas previsões, noto-me furioso. Particularmente me acho patético e incrível quando tropeço ou bato meus ombros nos lugares de sempre. É como se o meu cérebro se desligasse para uma realidade óbvia, assim, meu desastre se torna um fator novo e sinto uma raiva latente e real da minha memória, apenas por não ter conseguido antecipar a dor. Como trombo nos mesmos objetos se eles estão no mesmo lugar?
Às vezes me canso de ser quem eu sou, mas por estar preso em mim, não luto para me tornar alheio. Essas tantas camuflagens me parecem deploráveis e esses tantos disfarces atiçam o meu lado sombrio. O cansaço de todas as hipóteses, os inutensílios que acumulo pelo caminho, as fragilidades que me fazem sensível, as sombras que nos perseguem, tudo o que é diante de tudo o que poderia ser e do que nunca será. Tudo isso me cansa e me pune, assim, repleto dessa exaustão mental, noto minhas lágrimas escorrendo outra vez. Não desvie teus olhos dos meus, acaso me perceba chorando. Eu aprendi a não ter vergonha de derramar o meu sal. Somos mais que as partes que nos formam e, vez ou outra, talvez você também se canse de ser quem é, apenas pela falta de um tipo específico de descanso. Aceite-se, ame-se, perdoe-se e, enfim, erga-se. Eu aprendi que de olhos postos no chão, deixamos de enxergar a vida que acontece.
Às vezes me canso de ser quem eu sou, mas na maior parte do tempo ando de peito estufado, satisfeito por ter me aceitado defectível e inconstante, imprevisível, atento, viciado em cafeína e em detalhes. Decifro-me até me tornar outra vez um novo mistério. Sou o que sou e me amo, entretanto, percebo que posso mudar nos gestos mínimos e me tornar ainda melhor. Não me iludo com facilidade. Observo a vida com paciência e absorvo o máximo que consigo. A tendência é que amanhã eu seja alguém parecido com quem sou hoje, mas quem sabe o que serei daqui a uma década? Quem sabe o que posso alcançar? Tento ter calma. A vida é marcante por ser real, mesmo que a ficção se misture com o cotidiano. Devo lutar pelos meus sonhos, pelas vontades que são apenas minhas e lutar por um mundo melhor, não porque isso seja intrínseco a nós como seres humanos, mas que seja uma necessidade de sobrevivência da minha parte. Já fui vil, já errei feio, porém me noto acertando na maior parte do tempo. Procuro ainda pelo rosto que tinha antes da criação do Universo, mas não abalo o meu sono com as tantas respostas que ainda não tenho. Busco os meus objetivos grandiloquentes, ainda que muitos os achem impossíveis. Avanço com meu ímpeto juvenil no rumo do que me proponho. O agrimensor mede a extensão da terra, mas ninguém mede a extensão dos sonhos.
Sonho Lúcido
Flocos gelados despencam do céu
Derretem em contato com minha pele quente
Este sonho lúcido é muito antigo
Observo um campo florido e um lago
Reparo que o reflexo na água não é o meu
Eu enxerguei o seu rosto desde a primeira vez
Eu soube desde o primeiro encontro
que eu nunca me esqueceria do seu nome
Os batimentos cardíacos das estrelas estavam altos
A ansiedade do Universo criava uma tensão nova
Divindades matreiras falavam por metáforas
Será que algum dia estive acordado?
Flocos gelados despencam do céu
Derretem em contato com minha pele quente
A febre que sinto nunca mais passou
Os fantasmas que existem me zombam
Ridicularizam-me pelos grito que não gritei
e por todas as flores que amo e morrem
A vida é fugaz e o próximo verão se aproxima
Eu soube desde o primeiro encontro
que eu nunca me esqueceria do seu nome
A cadeira reclinável do avião estava quebrada
e eu queria te contar que vi colchões nas nuvens
Flocos gelados despencam do céu
Distantes da minha pele quente
A febre que sinto nunca mais passou
O futuro é uma brincadeira de mau gosto
Personificam em mim esperanças e promessas
Sorrio e a tristeza marca meu semblante
Sou como um Deus esquecido e não choro
Sou como um Deus esquecido e faço o que devo
Gotas de chuva despencam do céu
Molham minha pele durante a caminhada
Estou em uma praia de areia branca e mar bravo
Sou como um Deus esquecido e não sangro
O sal das lágrimas é igual ao sal do mar
Deixo pegadas por onde passo
Os fantasmas brincalhões me perseguem
E os cavalos nas dunas soam como um milagre
lúcido o bastante para dois mundos
Fecho os olhos e me perco das convicções
Este sonho lúcido é muito antigo
E eu soube desde o primeiro encontro
que eu nunca me esqueceria do seu nome
Agora a vida segue e me torno melancólico
Sou como um Deus esquecido e não choro
Estou conectado com algo imenso e terrível
O nome que preciso proferir ainda não foi inventado
Devo conhecer o nome dessa coisa antes de ir
Mergulhar na escuridão profusa do céu noturno
Essa jornada é extremamente solitária
Flocos gelados despencam do céu
E desejo sentir o gosto da neve
Ainda que morra congelado
Este sonho lúcido é muito antigo
O sangue escuro está em ebulição
Abandono todos para compreender
Livro-me de tudo para ir mais longe
Agora a vida segue e me torno melancólico
Tudo é fugaz e o próximo verão se aproxima
Mas eu soube desde o primeiro encontro
que eu sempre me lembraria do seu nome.
Antes de sair do quarto.
Hoje preciso ser sozinho. Reconheço-me em um estado profundo de torpor e uma profusão de cores anuvia minha mente. Perco momentaneamente a capacidade de distinguir e pensar. Desnudo de pudores, preconceitos e longe do vício das primeiras impressões, eu observo o mundo primeiro para depois observar e analisar a pequenez de minhas diversas versões.
Eu olho para o menino, olhe para o menino também, ria dele comigo, sustente seu mais afiado olhar de desdém. Agora observe o menino de novo e veja como ele absorve os detalhes, como se algo pudesse existir de significativo ou importante, como se a vida fosse mais que a concentração de egos em um jogo extravagante, olhe-o, vamos, por favor, ria comigo de como ele se debruça no parapeito da sacada e fita o brilho vespertino da cidade. Deite seu olhar mais pacífico sobre a figura do menino, que agora é adolescente, que amanhã será adulto e que nunca poderá ser velho, pois a velhice só chega para quem derrota a própria imaginação até que não possa mais imaginar. Olhe para o menino e extravase a dó que você sente, vamos, ele é completamente apaixonado por um mundo doente e, aos trancos e barrancos, não é capaz nem de cuidar da própria vida, mas sonha com um mundo decente e com sua capacidade em encontrar diversas saídas. Ora, pobre menino, como insiste se pode se reconhecer pequeno? Como desafia o destino com este sorriso sereno? Renda-se ao inevitável sabor do veneno e desista. Observaremos você beijar o chão e gargalharemos quando seus lábios cuspirem a terra vermelha, mas será tarde, o sabor da poeira vai repousar para sempre na ponta de sua língua. Lamentavelmente o menino se levanta todo sujo de terra e, sem lamentação, sem comiseração, sem perdão, nós todos rimos do seu instinto revolucionário que supõe ter o poder de provocar guerras.
Respiro-me e me situo, recuo dois passos tentando recuperar meu espaço. Que fazia eu ao rir do menino ou era eu próprio a rir de mim em uma insinuação banal de vitalidade? Eu era o menino ou o sujeito que gargalhava do menino ou ainda os dois coexistindo simultaneamente? Que penso na metafísica ou na astrologia se buscar significado é diretamente contra a simplicidade que deveríamos buscar para sermos felizes? De que adianta nessa vida criarmos raízes se não lidamos com cicatrizes? Que provoca esse desassossego sem fim? Puxo o ar e o solto depois em uma tentativa bem sucedida de recuperar o controle de minha própria respiração. Ergo a cabeça e no céu noturno vejo o voo de um gigantesco avião, que antecipo ser gigante por já tê-lo visto de perto. A visão engana e de longe a miragem o faz menor que a minha mão destra. Os espelhos refletem nossa imagem e nos viciamos em nos observar. Cuida-se tanto a aparência que o que deveríamos ver somos incapazes de enxergar. A alma implora por alimentos, mas tudo o que posso oferecer é vulgar.
Encerrei a reflexão para tentar cessar os pensamentos, aconteço, porém, contra todas as perspectivas. Não há conclusão nesta vida. Todas as histórias continuam sem parar e o tempo nunca para de passar, assim, os relógios dos ponteiros fictícios que criamos e hoje chamamos de real existem apenas para que sejam congelados quando nos despedimos desta Vida para o que chamamos de Morte. Alguns desejam a eternidade. A Eternidade é real ou projeção de uma vontade de júbilo duradouro? Nada na vida é constante. Nada disso existe e menos ainda do que as coisas que vemos e sentimos é realmente real. Quando fecho os olhos, imagino o quarto que vi por último. Lembro-me de quando meus olhos estiveram abertos e há uma imagem quase nítida. O frio que eu sinto é real como uma sensação particular minha, mas não o sinto como se ele existisse, exceto se vejo os outros vestindo garbosos casacos e roupas elegantes e resfriados coletivos. Não fosse os outros como comprovação do frio, eu não sei nem se poderia afirmar a realidade deste mesmo frio, ainda que eu morresse por hipotermia.
Veja, a vida segue e os corpos envelhecem e os anos continuam passando e nossas peles lindas um dia serão secas e feias e nossos corpos um dia serão murchos e só nos restará a qualidade de enxergar, mesmo quando não vemos, com a profundidade que o enxergar existe. Futuramente, quando o amanhã for o presente, você vai perceber como a dor molda nossa personalidade e como o que fazemos com a dor reflete nas nossas mais drásticas atitudes. Não chore pelos caminhos não percorridos, por favor, alegre-se pelas estradas seguras e pelos momentos bons e lúcidos e reais que viveu no que agora já é passado. Chore e tire isso tudo do seu peito, eu sei, eu também estou cansado, mas ainda penso nos outros, revolto-me, minha empatia complica minhas ideias e sinto uma espécie inédita de nojo de mim. Como vou conquistar meus objetivos se persistir assim? Como conviver com este asco insistente?
Queria poder me simplificar, mas não posso. Queria poder entender o meu lugar, mas sinto um frio de inverno que me faz congelar todos os ossos. Que há de errado em mim? Que há de errado neste desejo prolixo e demorado por solidão? Sozinho posso sanar o que grita em meu coração?
Um pássaro caiu do céu e o percebi morto entre a rua e a calçada. Penso na ave como penso na vida e me pergunto se o pássaro costumava voar sozinho ou acompanhado, se havia morrido caçando comida ou se já havia se alimentado, se deixou filhotes no ninho e, a complexidade da minha mente me enche de pavor e sinto uma vontade inenarrável de chorar. Não, eu não estou de luto pela morte do pássaro, era apenas um pássaro como outros milhares, estou cônscio, entro em estado de luto por tudo o que isso me significa e não deveria significar. Meu desespero é crescente e medito sobre os desesperados. O infortúnio é pensar sobre o que existe na vida quando deveríamos apenas vivê-la. A miséria do homem é só lembrar do que deixa como dívida e se esquecer de olhar as estrelas. Planetas acenam suas cores distantes para os minúsculos e deselegantes seres da Terra. Os corpos dos mortos retornam ao solo e se transformam em adubo e ervas.
Vejo o que vejo como vejo, mas fico atento para não transformar o que existe como coisa real em apenas um reflexo falso baseado nas minhas impressões pessoais. Sigo os movimentos felinos da gata preta e me sinto longe da capacidade de prever suas ações. Sou brevemente feliz por não saber o que acontecerá em seguida. Nenhum dos movimentos dela depende dos meus e celebro essa distância que há entre nós como um segredo ancestral que carrego no peito e na vida. Ouço a música e os ritmos e sorrio por não saber criar músicas e por não conhecer todos os ritmos. O que me escapa é o que torna feliz, assim, alegro-me com coisas que eu nunca quis. Fiz de mim um sujeito uniforme, que é retilíneo e corajoso, ainda que machuque pessoas pelas estradas desta vida. Quem sai impune? Não ajo com falsidade, pois a sinceridade se tornou natural e extravasa na ponta da língua. Observo o lusco-fusco sem sol e as janelas solitárias ornam com ruas que conheço como a palma da mão, mas que não são minhas. Eu sou mais do que as coisas que tive e sei disso e me regozijo por enfrentar minhas lutas singulares, não, hoje percebo que não posso e nem preciso vencer todas as lutas, posso caminhar junto, ainda que nem sempre deva, mas canso de restringir minhas capacidades ao que me é alheio e me incendeio por um futuro qual eu dependa exclusivamente de mim.
Deito-me no colchão que foi fabricado e no piso do segundo andar que foi construído e, enfim, deito-me na terra que estava e sempre esteve ali. Escapa-me o mundo, porém, sinto-me mais conectado com a Verdade da minha alma e sei que apenas minhas palavras podem alimentá-la. Procuro o rosto que tinha antes da criação do Universo e sinto que a resposta se aproxima a cada novo trecho, conto e verso, assim, escrevo-me pela liberdade que desejo possuir, escrevo, pois escrever é mais importante do que sorrir e agora anseio pela solidão desacompanhada e nem meu amor, nem minha imaginação, nem minha gata, nem meu cão, ninguém mesmo pode me confortar. As palavras soltas talvez possam. Não, nem mesmo as palavras e os textos. Fecho os olhos e sinto tudo me deixar.
Abraço a Verdade do meu mundo como quem olha para um vislumbre da Beleza original pela primeira vez na vida. A luz é muito forte e me cega temporariamente e fecho meus olhos, sem precisar imaginar uma beleza inventada pela minha poderosa imaginação. Nunca envelhecerei, nunca morrerei, pois nunca nem soube se algum dia estive vivo. Será que estive?
Escuto a Voz do mundo me resgatando da Escuridão e do Vazio e ela se parece com a sua voz. Sinto saudades, mas não quero ser resgatado. Confesso que bem correria para os braços que quero que me abracem, mas qualquer conforto é oposto ao que tenho mirado. Pelos outros, eu vou correr no sentido contrário. A minha missão encontra sua conclusão do outro lado. Desejo fervorosamente superar meu medo do escuro e juro que ainda nesta vida este pavor some. Juro pela honra jamais esquecida e pelo valor de meu próprio nome. Pois nomes são importantes, devemos recordá-los e não podemos perder a identidade. Repito e ecoa o silêncio que me afasta ainda mais da vaidade.
Não me finjo, mas talvez eu exista exagerado, demasiado, expansivo, estranho, prolixo, muito. Não me finjo. O cumprimento da missão não teria sentido, acaso minha missão fosse centrada apenas na autorrealização e não evoco esta palavra como mantras culturais e sim como o desejo de se impor, de vencer sozinho. Os que só pensam em seus umbigos nunca sabem para onde vão e, ainda que muitos destes sejam ótimos oradores, fervorosos nos discursos contra os contos de fadas, no âmago deles repousa contraditoriamente uma vontade púrpura de voar. Preciso me tornar quem eu nasci para ser e encontrar o rosto que eu tinha no momento da Criação. Necessito vislumbrar a Verdade qual existe além da verdade que conheço. Posso encontrá-la antes do fim? Claro, principalmente tendo a consciência de que o fim pode não ser exatamente o fim. Não sinto nada e em seguida sinto tudo. Diante da violência assustadora, eu permaneço mudo e pego impulso para o maior dos saltos. Quero combater a vileza, apesar dos meus vestígios de cansaço.
E sofro o sofrimento vulgar de bilhões, pois meu coração está despedaçado, decidido e dividido. Sofro internamente os ventos incessantes de furacões que surgem e não posso salvar todos e nem oferecer abrigo. Resigno-me totalmente e me vejo diante de uma situação fatalista qual não posso fugir, correr, evitar ou disfarçar. Essa é a vida e este sofrimento me faz ter a certeza de que não sonho. O vento amaina, mas não para, assim como a minha respiração.
Os movimentos dos animais, o constante correr das horas, as coisas frágeis, tudo o que foge ao controle, tudo isso existe como a representação simbólica e discreta da fragmentação divina da vida. Deus não fala em voz alta, mas os teístas seguem suas palavras. Será que o melhor presente divino foi a oportunidade de apreciar o silêncio?
Sinto o cheiro da chuva e sei que ele pode ser uma impressão do que eu gostaria que acontecesse. Só quando as gotas despencarem do céu terei a certeza se a minha impressão foi baseada na realidade fática ou apenas na minha vontade. Penso os pensamentos proibidos e me destoo dos tantos vulgares que cogitam uma espécie de limitação intelectual pré-estabelecida. Não compartilho meus hábitos e procuro a minha solidão. Hoje preciso ser sozinho. Hoje preciso existir sozinho.
Escuto um barulho interno e é o meu próprio corpo, existindo como coisa real, que me alerta da fome. Eu não como nada há horas e é preciso obedecer a uma ordem que surge de dentro. Poderia dizer não a mim, como muitas vezes já o disse, mas mereço um jantar discreto. Sigo aqui enquanto meus dedos não se descansam e eu teclo. Se tivesse disposição e não sentisse dores de cabeça, eu dirigiria para longe do meu computador e dos meus problemas. Tenho coisa nenhuma e coisa nenhuma me tem. Perco-me, enfim, até das ilusões do Mal e do Bem. A ilusão pode ser o primeiro dos prazeres, mas só é prazer porque nos deleitamos também com o que é falso. O que é memória, verdadeira ou falsa, pode se manter em nosso encalço. Canso-me de minhas impressões e de minhas próprias histórias e de minhas próprias palavras.
Quero vagar por aí como um anjo sem asas.
Quero que o mundo para chamar de quintal de casa.
Quero tudo, mas não posso ser egoísta e devo escolher meus caminhos.
Um dia ainda mudo, mas hoje preciso existir sozinho. Ligo a televisão e apago a luz antes de sair do quarto. Desço as escadas e este é o fim.
Solidão.
A solidão não precisa ser comentada
As frestas da janela estão abertas e não venta
O halter está no chão e eu não malho
Os trapezistas em algum circo ou espetáculo
arriscam suas manobras mais perigosas
A solidão me empurra para perto do risco
O sono felino é avesso ao instinto veloz e arisco
A solidão não precisa ser comentada
Ainda assim ouvi vozes pelos cantos da casa
E isso tudo antes da metade da madrugada
Se existe uma divindade que me inventou
Eu me pergunto a razão de ter me feito sensível
Eu apenas desejo ser inteligente
Sofro as dores de um mundo impossível
A solidão não precisa ser comentada
Leões espaciais rugem sua coragem
Caminhões engolem o escuro sombrio
Há tanta gente que reze por dias quentes
E eu anseio pelo retorno do frio
Sinto o cheiro saudosista do mar e sonho
Capto a sensação da areia entre meus dedos
Escuto o quebrar das ondas e o som do riso
A canção anuncia o inferno no paraíso
Acordo em minha cama consciente
de que um dia não terei o luxo de acordar
A solidão não precisa ser comentada
Eu enchi o copo de água e não bebi até o final
Eu não matei a formiga que me picaria
Gastei minhas palavras, mas não minha energia
Eu precisava dormir, mas seguia acordado
Eu precisava sentir o peso do fardo
As horas tardias não me assustam mais
A televisão ligada é mero costume
A felicidade não me satisfaz
Sou um insignificante vaga-lume
Piscando na noite vulgar
Guiado por diversos perfumes
A solidão não precisa ser comentada
Os livros seguiam intocados e empoeirados
As corujas crocitavam os mistérios da floresta
As baleias saltavam acrobaticamente
embora fossem exageradamente grandes
Sustentavam o lembrete de que
o peso e a leveza podem coexistir
A solidão não precisa ser comentada
Todas aquelas dívidas, enfim, foram pagas
Os filhos que terei ainda não nasceram
A morte que morrerei ainda tarda
Parece que teremos problemas
Parece que teremos que recomeçar
Não se torne como essas centenas
que se esforçam para dissimular o zelo
Não se torne como estes que apenas
são escravos dos próprios erros
A solidão não precisa ser comentada
As lembranças não precisam do esquecimento
Seu nome é o sinônimo da vida
que acontece a todo momento
Tudo parece irregular e me recordo
dos trapezistas saltando pelos abismos
Salvando uns aos outros pela firmeza das mãos
Minhas mãos me orgulham e batem nessas teclas
Só os povos tolos desprezam o valor de seus poetas
Só os imbecis não compreendem a necessidade da solidão
Insisto que a solidão não precisa mesmo ser comentada
Ainda que ela precise de esforços concentrados para ser usufruída
As frestas da janela agora estão fechadas e venta lá fora
Escuto o vendaval bater na janela como se fosse um espírito
Assovia como se fosse uma amante esquecida
Pela casa ecoam vozes recentes e antigas
Vejo que ninguém fala e a boca que não cala é a minha
O halter está no colchão e eu malho
Desisto do vento natural e opto pelo ar-condicionado
Os trapezistas se arriscam por aí em seus espetáculos
Confiam sempre nas mãos uns dos outros
Não sabem o peso da responsabilidade da solidão,
ainda que saibam reconhecer um valoroso coração
Continuei acordado com a impressão de que não dormiria
Continuei a sacrificar tudo o que eu podia
Antecipei a solidão que amanhã sentiria
Aprecio estar sozinho, porém a língua ressalta
Estou no melhor caminho, mas sentirei sua falta
A solidão não precisa ser comentada,
mas eu comentei e narrei toda a minha
A alma distraída se alimentava
de tudo o que o resto do mundo me oferecia.