A solidão não precisa ser comentada
As frestas da janela estão abertas e não venta
O halter está no chão e eu não malho
Os trapezistas em algum circo ou espetáculo
arriscam suas manobras mais perigosas
A solidão me empurra para perto do risco
O sono felino é avesso ao instinto veloz e arisco
A solidão não precisa ser comentada
Ainda assim ouvi vozes pelos cantos da casa
E isso tudo antes da metade da madrugada
Se existe uma divindade que me inventou
Eu me pergunto a razão de ter me feito sensível
Eu apenas desejo ser inteligente
Sofro as dores de um mundo impossível
A solidão não precisa ser comentada
Leões espaciais rugem sua coragem
Caminhões engolem o escuro sombrio
Há tanta gente que reze por dias quentes
E eu anseio pelo retorno do frio
Sinto o cheiro saudosista do mar e sonho
Capto a sensação da areia entre meus dedos
Escuto o quebrar das ondas e o som do riso
A canção anuncia o inferno no paraíso
Acordo em minha cama consciente
de que um dia não terei o luxo de acordar
A solidão não precisa ser comentada
Eu enchi o copo de água e não bebi até o final
Eu não matei a formiga que me picaria
Gastei minhas palavras, mas não minha energia
Eu precisava dormir, mas seguia acordado
Eu precisava sentir o peso do fardo
As horas tardias não me assustam mais
A televisão ligada é mero costume
A felicidade não me satisfaz
Sou um insignificante vaga-lume
Piscando na noite vulgar
Guiado por diversos perfumes
A solidão não precisa ser comentada
Os livros seguiam intocados e empoeirados
As corujas crocitavam os mistérios da floresta
As baleias saltavam acrobaticamente
embora fossem exageradamente grandes
Sustentavam o lembrete de que
o peso e a leveza podem coexistir
A solidão não precisa ser comentada
Todas aquelas dívidas, enfim, foram pagas
Os filhos que terei ainda não nasceram
A morte que morrerei ainda tarda
Parece que teremos problemas
Parece que teremos que recomeçar
Não se torne como essas centenas
que se esforçam para dissimular o zelo
Não se torne como estes que apenas
são escravos dos próprios erros
A solidão não precisa ser comentada
As lembranças não precisam do esquecimento
Seu nome é o sinônimo da vida
que acontece a todo momento
Tudo parece irregular e me recordo
dos trapezistas saltando pelos abismos
Salvando uns aos outros pela firmeza das mãos
Minhas mãos me orgulham e batem nessas teclas
Só os povos tolos desprezam o valor de seus poetas
Só os imbecis não compreendem a necessidade da solidão
Insisto que a solidão não precisa mesmo ser comentada
Ainda que ela precise de esforços concentrados para ser usufruída
As frestas da janela agora estão fechadas e venta lá fora
Escuto o vendaval bater na janela como se fosse um espírito
Assovia como se fosse uma amante esquecida
Pela casa ecoam vozes recentes e antigas
Vejo que ninguém fala e a boca que não cala é a minha
O halter está no colchão e eu malho
Desisto do vento natural e opto pelo ar-condicionado
Os trapezistas se arriscam por aí em seus espetáculos
Confiam sempre nas mãos uns dos outros
Não sabem o peso da responsabilidade da solidão,
ainda que saibam reconhecer um valoroso coração
Continuei acordado com a impressão de que não dormiria
Continuei a sacrificar tudo o que eu podia
Antecipei a solidão que amanhã sentiria
Aprecio estar sozinho, porém a língua ressalta
Estou no melhor caminho, mas sentirei sua falta
A solidão não precisa ser comentada,
mas eu comentei e narrei toda a minha
A alma distraída se alimentava
de tudo o que o resto do mundo me oferecia.