Talentoso.

A estética de não precisar da estética me agrada e simultaneamente me sinto livre e aprisionado. Estar na distância curta da janela, das portas e saber que só posso sair quando puder sair, quando houver concluído minhas obrigações, isso me pesa o peito e me interrompe os sentidos. Não, na realidade, ainda que eu termine minhas obrigações, ainda que eu finde todos os compromissos pendentes em nome da empresa, eu só poderei sair quando o relógio superar às 17h00. Mal dou conta de respirar direito e sinto inveja do advogado que fuma no estacionamento para aliviar o estresse. Já não sei como não viver estressado. As empresas, sejam privadas, sejam públicas, zelam apenas por si mesmas e nós com nossas individualidades e necessidades básicas somos alvos de um descaso longilíneo e atemporal. Até as companhias e corporações mais cuidadosas secretamente não dão a mínima aos seus funcionários e olho pelas tantas janelas escuras sonhando com o vento gélido nos cabelos e com a ansiedade marcante de quem está prestes a embarcar em uma jornada.

Que será que sonham os caminhoneiros? Creio que seja mais fácil perguntar do que tentar os antecipar, entretanto, forço-me numa especulação presunçosa de me imaginar capaz de prever os sonhos alheios, ainda que saiba que este gesto mísero do meu esforço é insignificante. Ainda assim sonho que sonho seus sonhos como quem sabe que é preciso continuar sonhando a todo o momento, ainda que o estado soporífero invada o dia num horário péssimo. Tudo o que requer esforço se distancia das verdadeiras urgências do espírito e choro por me desagradar. A alma é uma criança mimada que se satisfaz apenas momentaneamente para logo em seguida querer uma nova travessura. Se nos olharmos profundamente, só veremos o fundo. O corpo possui inúmeras limitações, entretanto, o cérebro é irrefreável e a cabeça sempre pode aumentar de volume e comportar ideias novas. A alma é indefinível e indecifrável, porém, por vezes julgo que sei como lançar migalhas a mim e meu espírito diminui a urgência de consumir o mundo quando a minha fome é disfarçada. O hedonismo é funcional por algum tempo, mas não há desconto nos prazeres que nos faça evitar o Vide Noir por mais do que alguns anos. Nasci com uma estrela no lugar do coração e meus batimentos cardíacos são sincronizados com as constelações. Se tudo se apagar, certamente eu apagarei também. Quando este mundo cansar de me entediar, eu seguirei adiante para as novas galáxias, para as novas existências, para os campos mais verdes e flocos de neves mais brancos. Quando eu me cansar da vida e a vida se cansar de mim, partiremos por caminhos distintos, até nos reencontrarmos. Pergunto-me se a travessia é solitária ou se quem me ama ousará seguir comigo.

Interlúdio em mim após um suspiro alto. Atrás do vidro esverdeado eu me sento de frente para esta tela e do outro lado os caminhões passam e invejo os caminhoneiros, por controlarem máquinas, enquanto eu só sou auxiliado pela tecnologia a escrever mais um de meus textos banais e ridículos. Minhas rotinas são simplórias e de nada me adianta me antever gênio ou estúpido, porque ainda que gênio ou estúpido, não sou capaz de fugir da necessidade básica de frequentar os escritórios e viver essa rotina abençoadamente maldita. Se fosse estúpido o bastante talvez já fosse rico o bastante e se fosse realmente gênio, talvez encontrasse um modo de sobreviver sem me alimentar ou ir ao banheiro. Sinto pela primeira vez na vida a inveja e ela é quente, como meus dedos costumam ser, mas não me ataca, como meus dedos se habituaram a atacar. Percebo, sem choque, mas com certo desconforto, que ainda sou humano. Por vezes só queria que minhas mãos sentissem o volante e não que os meus dedos sentissem as teclas. Por vezes me sonho em estradas infinitas, como na rodovia de meus pesadelos e paraísos, a temível e majestosa BR-163. Quiçá ame a estrada apenas por ter sobrevivido e penso subitamente nos tantos que perderam suas vidas. Bebês que sobreviveram sem os pais, pais que sobreviveram sem os bebês, caminhões que amassaram carros como eu amasso uma lata de refrigerante ao pisar com força. Vidas que desaparecem. Tudo termina em nada e apenas as máquinas mais pesadas, vez ou outra, sobrevivem às colisões. O peso quase sempre vence a leveza. Quão certo sou das minhas certezas? O que guia nossas escolhas em direção ao futuro imprevisível? Será que um dia poderei folhear meus próprios livros?

Sem sombra de dúvidas, sem sobras, sem nenhuma alcunha alongada que não me pertença, por vezes queria que a vida fosse apenas escrever, até que subitamente me esqueço da escrita e vivo todo o resto da minha realidade, vida que na maior parte do tempo não me interessa. Vislumbro identidades, personas, sonhos, desejos secretos e temo os outros, provavelmente pela capacidade de se me refletirem. Se há neles tantas coisas malucas, se antevejo neles tantos desejos sombrios e maliciosos, quem disse que não há tantas coisas em mim também? Se não as acho, será que não olhei para dentro o bastante? Pelo medo dos outros aprendi a ter um temor ligeiramente sobrenatural a mim mesmo. Há medo por encararmos a finitude ou há medo por termos medo de nunca termos uma atitude? Que se prevalece após o esquecimento? O que não envaidece sobrevive além do tempo? Todos os meus esforços e horas de escritas foram resumidas em… talento. Como se meus dois mil e quinhentos textos fossem ocasionais, casuais, como se meus livros fossem escritos por alguma divindade, como se qualquer força oculta tivesse me empurrado para frente e eu, inerte e passivo, não tivesse o menor mérito sobre minhas conquistas. Olha, como aquele ali tem talento para a escrita… talento. Olha que o destino daquele um é ser escritor e Deus o olhou nos olhos dele e disse: – você sim, meu filho. Sem o talento e os gestos figurativos e falsos, sem as amizades verdadeiras e os surtos dos descompensados que não se admitem nunca errados, o que então me resta? Grito meu desespero no escuro. Será que algum dia dormirei seguro? Quanto mais tento ser dócil mais o mundo me obriga a ser duro.

Sobra-me o sangue quente nas veias e, vez ou outra, sinto-me mimado em meus caprichos. Há dias que sinto uma necessidade de isolamento, apenas por desejar que o mundo se faça segundo as minhas vontades. Se não me isolasse, lutaria para fazer com que todos me agradassem, entretanto, encontrei no instinto de isolamento uma fuga para minhas falhas mais humanas. Por ser cônscio do meu egoísmo, não me dou tantas asas e sou eu mesmo que me podo, quando no meio de um voo que me soa excessivamente extravagante. A vida está aí para ser conquistada e não me vejo distinto dos tantos que já fracassaram e se arrependeram. Insisto em ser real e isso me dói, por antever nos outros só a falsidade de não se serem. Insisto-me e me odeio, por não conseguir me fingir, assim, secretamente julgo que todas as minhas vontades quiçá irrealizáveis, fizessem a curva na metafísica e se ajoelhassem diante de mim. Por insistir, creio-me um pouco mais, como quem não ousa duvidar de si mesmo, por muito menos.

Como posso não crer em mim se nasci assim tão talentoso? Quanto tempo devo ficar em silêncio em um mundo permanentemente ruidoso?

Blues

Escuto uma batida lá no fundo da minha alma. É uma canção antiga e essa espécie de ritmo ancestral percorre túneis secretos até o meu âmago.

Este blues já tocou antes, mas eu pensei que nunca mais fosse ouvir essa canção.

Olha, eu chorei a noite inteira e não consegui dormir. É que eu queria dizer um tanto de coisas, mas sinto que qualquer sombra de palavra vai piorar tudo. Eu sei que o meu jeito não convencional é um pouco complicado e eu deveria estar escrevendo sobre os venezuelanos, entretanto, aqui estou.

O que estou fazendo? Não sei exatamente, mas espero estar decidindo certo. A vida é meio estranha e a gente se desvia dos caminhos geralmente, sabe? Eu só quero não me desviar dos meus.

A cabeça se distrai facilmente com qualquer outra coisa que me leve longe de onde realmente sinto que devo estar. Você cresceu dentro de mim em uma velocidade estupenda e precisa se lembrar disso. O estômago anda mal, eu acho que bebi um litro e meio de café hoje e devo vomitar.

Sinto falta e me sinto fraco nessa ausência dolorida qual não posso controlar. Uma canção antiga reverbera em mim.

Creio que escolhi certo, mas que diferença faz? Na falsa balança não há qualquer vislumbre ou sensação de equilíbrio e, bem, eu sou equiparado com os réprobos e sofro uma retaliação silenciosa. Mereço? Que importa aos outros? Será que em segredo você me desgraça também?

Passo meus dias em casa e me sinto estático. Não me movo e nem sinto vontade de me mover. Sou resgatado por sorrisos breves em episódios de The Office, mas honestamente é a única alegria que sinto.

Escuto uma batida lá no fundo da minha alma. Este blues já tocou antes, mas eu pensei que nunca mais fosse ouvir essa canção.

A verdadeira tristeza é uma falta de ar constante. Eu sinto como se não pudesse aguentar até amanhã de manhã. Encontrarei o meu fim neste solilóquio, nesta noite relativamente gelada? Sinto a dor da ausência e a presença tão calorosa que se insinuava quase como o próprio sol está distante. Meu mundo quente sofre um baque com a queda da temperatura. A canção que toca no fundo é conhecida. Este velho blues rasga o meu coração.

Olha, eu chorei a noite inteira e não consegui dormir.

Escrevi uma carta e depois outra e, enfim, mais uma. O que tanto escrevo eu já não sei mais. Queria conseguir transparecer a convicção que existe por essa espécie de intuição certeira. Falho.

Por quanto tempo estarei assim?

Não me sinto preso e nem liberto. Tampouco sou burro, mas existo longe de me sentir esperto. Os que têm para quem se confessar forçam o erro sem hesitação. E o que faço eu que não conto com a anuência de mais ninguém para me sentir realmente bem ou realmente mal?

Não há quem me abençoe para os dias seguintes e nem quem me ofereça redenção pelos pecados que não cometi. A única coisa imperdoável é a incoerência quando ela é absolutamente hipócrita. Não está tudo bem.

Mas tudo vai ficar, eu sei, pois ainda não escrevi sobre a Venezuela e sigo noite adentro para finalizar trabalhos que deveria ter feito na última tarde. Não estou atrasado, apenas um pouco deslocado do horário normal de funcionamento das coisas.

Que é que há comigo que sempre funciono no meu próprio tempo?

Olha, eu chorei a noite inteira e não consegui dormir, pois queria saber como você está, mas não posso perguntar. Tenho recebido este tratamento gélido e distante de quem costumava fingir que se importava.

Ninguém se importa.

Sigo como posso e até onde posso. Não posso fazer menos por mim do que estou fazendo agora. Talvez eu não esteja fazendo o meu melhor, mas estou realmente tentando tentar.

Redundante?
Necessário.
Ridículo?
Possivelmente.
Prolixo?
Inevitavelmente.

Escuto a mesma batida lá no fundo de minha alma. Este blues já tocou antes, mas eu pensei que nunca mais fosse ouvir essa canção.

Antes de sair do quarto.

Hoje preciso ser sozinho. Reconheço-me em um estado profundo de torpor e uma profusão de cores anuvia minha mente. Perco momentaneamente a capacidade de distinguir e pensar. Desnudo de pudores, preconceitos e longe do vício das primeiras impressões, eu observo o mundo primeiro para depois observar e analisar a pequenez de minhas diversas versões.

Eu olho para o menino, olhe para o menino também, ria dele comigo, sustente seu mais afiado olhar de desdém. Agora observe o menino de novo e veja como ele absorve os detalhes, como se algo pudesse existir de significativo ou importante, como se a vida fosse mais que a concentração de egos em um jogo extravagante, olhe-o, vamos, por favor, ria comigo de como ele se debruça no parapeito da sacada e fita o brilho vespertino da cidade. Deite seu olhar mais pacífico sobre a figura do menino, que agora é adolescente, que amanhã será adulto e que nunca poderá ser velho, pois a velhice só chega para quem derrota a própria imaginação até que não possa mais imaginar. Olhe para o menino e extravase a dó que você sente, vamos, ele é completamente apaixonado por um mundo doente e, aos trancos e barrancos, não é capaz nem de cuidar da própria vida, mas sonha com um mundo decente e com sua capacidade em encontrar diversas saídas. Ora, pobre menino, como insiste se pode se reconhecer pequeno? Como desafia o destino com este sorriso sereno? Renda-se ao inevitável sabor do veneno e desista. Observaremos você beijar o chão e gargalharemos quando seus lábios cuspirem a terra vermelha, mas será tarde, o sabor da poeira vai repousar para sempre na ponta de sua língua. Lamentavelmente o menino se levanta todo sujo de terra e, sem lamentação, sem comiseração, sem perdão, nós todos rimos do seu instinto revolucionário que supõe ter o poder de provocar guerras.

Respiro-me e me situo, recuo dois passos tentando recuperar meu espaço. Que fazia eu ao rir do menino ou era eu próprio a rir de mim em uma insinuação banal de vitalidade? Eu era o menino ou o sujeito que gargalhava do menino ou ainda os dois coexistindo simultaneamente? Que penso na metafísica ou na astrologia se buscar significado é diretamente contra a simplicidade que deveríamos buscar para sermos felizes? De que adianta nessa vida criarmos raízes se não lidamos com cicatrizes? Que provoca esse desassossego sem fim? Puxo o ar e o solto depois em uma tentativa bem sucedida de recuperar o controle de minha própria respiração. Ergo a cabeça e no céu noturno vejo o voo de um gigantesco avião, que antecipo ser gigante por já tê-lo visto de perto. A visão engana e de longe a miragem o faz menor que a minha mão destra. Os espelhos refletem nossa imagem e nos viciamos em nos observar. Cuida-se tanto a aparência que o que deveríamos ver somos incapazes de enxergar. A alma implora por alimentos, mas tudo o que posso oferecer é vulgar.

Encerrei a reflexão para tentar cessar os pensamentos, aconteço, porém, contra todas as perspectivas. Não há conclusão nesta vida. Todas as histórias continuam sem parar e o tempo nunca para de passar, assim, os relógios dos ponteiros fictícios que criamos e hoje chamamos de real existem apenas para que sejam congelados quando nos despedimos desta Vida para o que chamamos de Morte. Alguns desejam a eternidade. A Eternidade é real ou projeção de uma vontade de júbilo duradouro? Nada na vida é constante. Nada disso existe e menos ainda do que as coisas que vemos e sentimos é realmente real. Quando fecho os olhos, imagino o quarto que vi por último. Lembro-me de quando meus olhos estiveram abertos e há uma imagem quase nítida. O frio que eu sinto é real como uma sensação particular minha, mas não o sinto como se ele existisse, exceto se vejo os outros vestindo garbosos casacos e roupas elegantes e resfriados coletivos. Não fosse os outros como comprovação do frio, eu não sei nem se poderia afirmar a realidade deste mesmo frio, ainda que eu morresse por hipotermia.

Veja, a vida segue e os corpos envelhecem e os anos continuam passando e nossas peles lindas um dia serão secas e feias e nossos corpos um dia serão murchos e só nos restará a qualidade de enxergar, mesmo quando não vemos, com a profundidade que o enxergar existe. Futuramente, quando o amanhã for o presente, você vai perceber como a dor molda nossa personalidade e como o que fazemos com a dor reflete nas nossas mais drásticas atitudes. Não chore pelos caminhos não percorridos, por favor, alegre-se pelas estradas seguras e pelos momentos bons e lúcidos e reais que viveu no que agora já é passado. Chore e tire isso tudo do seu peito, eu sei, eu também estou cansado, mas ainda penso nos outros, revolto-me, minha empatia complica minhas ideias e sinto uma espécie inédita de nojo de mim. Como vou conquistar meus objetivos se persistir assim? Como conviver com este asco insistente?

Queria poder me simplificar, mas não posso. Queria poder entender o meu lugar, mas sinto um frio de inverno que me faz congelar todos os ossos. Que há de errado em mim? Que há de errado neste desejo prolixo e demorado por solidão? Sozinho posso sanar o que grita em meu coração?

Um pássaro caiu do céu e o percebi morto entre a rua e a calçada. Penso na ave como penso na vida e me pergunto se o pássaro costumava voar sozinho ou acompanhado, se havia morrido caçando comida ou se já havia se alimentado, se deixou filhotes no ninho e, a complexidade da minha mente me enche de pavor e sinto uma vontade inenarrável de chorar. Não, eu não estou de luto pela morte do pássaro, era apenas um pássaro como outros milhares, estou cônscio, entro em estado de luto por tudo o que isso me significa e não deveria significar. Meu desespero é crescente e medito sobre os desesperados. O infortúnio é pensar sobre o que existe na vida quando deveríamos apenas vivê-la. A miséria do homem é só lembrar do que deixa como dívida e se esquecer de olhar as estrelas. Planetas acenam suas cores distantes para os minúsculos e deselegantes seres da Terra. Os corpos dos mortos retornam ao solo e se transformam em adubo e ervas.

Vejo o que vejo como vejo, mas fico atento para não transformar o que existe como coisa real em apenas um reflexo falso baseado nas minhas impressões pessoais. Sigo os movimentos felinos da gata preta e me sinto longe da capacidade de prever suas ações. Sou brevemente feliz por não saber o que acontecerá em seguida. Nenhum dos movimentos dela depende dos meus e celebro essa distância que há entre nós como um segredo ancestral que carrego no peito e na vida. Ouço a música e os ritmos e sorrio por não saber criar músicas e por não conhecer todos os ritmos. O que me escapa é o que torna feliz, assim, alegro-me com coisas que eu nunca quis. Fiz de mim um sujeito uniforme, que é retilíneo e corajoso, ainda que machuque pessoas pelas estradas desta vida. Quem sai impune? Não ajo com falsidade, pois a sinceridade se tornou natural e extravasa na ponta da língua. Observo o lusco-fusco sem sol e as janelas solitárias ornam com ruas que conheço como a palma da mão, mas que não são minhas. Eu sou mais do que as coisas que tive e sei disso e me regozijo por enfrentar minhas lutas singulares, não, hoje percebo que não posso e nem preciso vencer todas as lutas, posso caminhar junto, ainda que nem sempre deva, mas canso de restringir minhas capacidades ao que me é alheio e me incendeio por um futuro qual eu dependa exclusivamente de mim.

Deito-me no colchão que foi fabricado e no piso do segundo andar que foi construído e, enfim, deito-me na terra que estava e sempre esteve ali. Escapa-me o mundo, porém, sinto-me mais conectado com a Verdade da minha alma e sei que apenas minhas palavras podem alimentá-la. Procuro o rosto que tinha antes da criação do Universo e sinto que a resposta se aproxima a cada novo trecho, conto e verso, assim, escrevo-me pela liberdade que desejo possuir, escrevo, pois escrever é mais importante do que sorrir e agora anseio pela solidão desacompanhada e nem meu amor, nem minha imaginação, nem minha gata, nem meu cão, ninguém mesmo pode me confortar. As palavras soltas talvez possam. Não, nem mesmo as palavras e os textos. Fecho os olhos e sinto tudo me deixar.

Abraço a Verdade do meu mundo como quem olha para um vislumbre da Beleza original pela primeira vez na vida. A luz é muito forte e me cega temporariamente e fecho meus olhos, sem precisar imaginar uma beleza inventada pela minha poderosa imaginação. Nunca envelhecerei, nunca morrerei, pois nunca nem soube se algum dia estive vivo. Será que estive?

Escuto a Voz do mundo me resgatando da Escuridão e do Vazio e ela se parece com a sua voz. Sinto saudades, mas não quero ser resgatado. Confesso que bem correria para os braços que quero que me abracem, mas qualquer conforto é oposto ao que tenho mirado. Pelos outros, eu vou correr no sentido contrário. A minha missão encontra sua conclusão do outro lado. Desejo fervorosamente superar meu medo do escuro e juro que ainda nesta vida este pavor some. Juro pela honra jamais esquecida e pelo valor de meu próprio nome. Pois nomes são importantes, devemos recordá-los e não podemos perder a identidade. Repito e ecoa o silêncio que me afasta ainda mais da vaidade.

Não me finjo, mas talvez eu exista exagerado, demasiado, expansivo, estranho, prolixo, muito. Não me finjo. O cumprimento da missão não teria sentido, acaso minha missão fosse centrada apenas na autorrealização e não evoco esta palavra como mantras culturais e sim como o desejo de se impor, de vencer sozinho. Os que só pensam em seus umbigos nunca sabem para onde vão e, ainda que muitos destes sejam ótimos oradores, fervorosos nos discursos contra os contos de fadas, no âmago deles repousa contraditoriamente uma vontade púrpura de voar. Preciso me tornar quem eu nasci para ser e encontrar o rosto que eu tinha no momento da Criação. Necessito vislumbrar a Verdade qual existe além da verdade que conheço. Posso encontrá-la antes do fim? Claro, principalmente tendo a consciência de que o fim pode não ser exatamente o fim. Não sinto nada e em seguida sinto tudo. Diante da violência assustadora, eu permaneço mudo e pego impulso para o maior dos saltos. Quero combater a vileza, apesar dos meus vestígios de cansaço.

E sofro o sofrimento vulgar de bilhões, pois meu coração está despedaçado, decidido e dividido. Sofro internamente os ventos incessantes de furacões que surgem e não posso salvar todos e nem oferecer abrigo. Resigno-me totalmente e me vejo diante de uma situação fatalista qual não posso fugir, correr, evitar ou disfarçar. Essa é a vida e este sofrimento me faz ter a certeza de que não sonho. O vento amaina, mas não para, assim como a minha respiração.

Os movimentos dos animais, o constante correr das horas, as coisas frágeis, tudo o que foge ao controle, tudo isso existe como a representação simbólica e discreta da fragmentação divina da vida. Deus não fala em voz alta, mas os teístas seguem suas palavras. Será que o melhor presente divino foi a oportunidade de apreciar o silêncio?

Sinto o cheiro da chuva e sei que ele pode ser uma impressão do que eu gostaria que acontecesse. Só quando as gotas despencarem do céu terei a certeza se a minha impressão foi baseada na realidade fática ou apenas na minha vontade. Penso os pensamentos proibidos e me destoo dos tantos vulgares que cogitam uma espécie de limitação intelectual pré-estabelecida. Não compartilho meus hábitos e procuro a minha solidão. Hoje preciso ser sozinho. Hoje preciso existir sozinho.

Escuto um barulho interno e é o meu próprio corpo, existindo como coisa real, que me alerta da fome. Eu não como nada há horas e é preciso obedecer a uma ordem que surge de dentro. Poderia dizer não a mim, como muitas vezes já o disse, mas mereço um jantar discreto. Sigo aqui enquanto meus dedos não se descansam e eu teclo. Se tivesse disposição e não sentisse dores de cabeça, eu dirigiria para longe do meu computador e dos meus problemas. Tenho coisa nenhuma e coisa nenhuma me tem. Perco-me, enfim, até das ilusões do Mal e do Bem. A ilusão pode ser o primeiro dos prazeres, mas só é prazer porque nos deleitamos também com o que é falso. O que é memória, verdadeira ou falsa, pode se manter em nosso encalço. Canso-me de minhas impressões e de minhas próprias histórias e de minhas próprias palavras.

Quero vagar por aí como um anjo sem asas.

Quero que o mundo para chamar de quintal de casa.

Quero tudo, mas não posso ser egoísta e devo escolher meus caminhos.

Um dia ainda mudo, mas hoje preciso existir sozinho. Ligo a televisão e apago a luz antes de sair do quarto. Desço as escadas e este é o fim.

A dor dói

A dor dói
Repito e repito e repito
Apenas por mentir
ou por repetir?
O que se constrói
também se destrói
Repito e repito e repito
até que eu possa sorrir
Wilde disse que sempre
destruímos o que mais amamos
Sabia ele algo sobre amor?
Talvez sua especialidade
fosse apenas destruição
Quiçá um perito bem vivido
em longínquos tempos de dor
E solidão
Diria ele então que a dor dói
E se repetiria apenas por se repetir?
O que se destrói apenas se destrói
E zombaria da minha visão
ao sorrir
A dor certamente dói
A indecisão indubitavelmente fere
Não há neste mundo super-herói
Que aguente o sofrimento do mundo na pele
E que tentemos nos manter calmos
Em face do que nos traz a noite escura
Do chão estamos à sete palmos
Epitáfio lúgubre em eterna gravura
A memória recorda e guarda lembranças
A chuva me acorda e perco esperanças
Quando ficou tão difícil
de falarmos a mesma linguagem?
A compreensão de quem compreende
Rede nas janelas
Sono felino
Sequelas
e velas
Cachorro
dormindo
Dormido
distante
da dor que
tanto dói
Outro cão
mija na estante
Sinto a cabeça
que dói
Confusão
Dor que dói
Como a dor antiga
na outra madrugada de temor
Em minha lápide jaz esquecida
a mais bela história de amor
E os tristes seguem tristes
E a felicidade dos felizes passa
A minhoca se entorta e foge
do pássaro predador que a caça
A dor dói
A felicidade é feliz
E qualquer coisa
é qualquer coisa
Se eu sei de algo
É por saber que sei de nada
É preciso tomar cuidado
quando a voz cala
E a intenção segue
Insinuada
Nada
a ser dito
Nada
bonito
Madrugada
gelada
Desespero
E grito
Talvez
se a dor
não doesse
Meu sentimento
fosse mais pequeno
Talvez um dia entenda
o que hoje parece ameno
Que sinta e olhe e saiba
que não se força onde não caiba
E que falar é necessário
A cena descreve
um poema
A vergonha
envenena
a tinta e a pena
O rumo e
o destinatário
Assim se vai
a dor que dói
Após sentirmos
Ela ao extremo
De longe eu a vejo
Distante eu aceno
Os demônios do fogo dormem
todos de olhos abertos
Imito seus rituais
tentando me sentir esperto
Os sentidos todos se escapam
O sentido objetivo também
Estas reflexões me matam,
mas revivo e vou além
A dor dói e eu repito a frase
Que eu não morra cedo e com medo
de sempre ser QUASE
A dor dói, mas me situo
Reparo, enfim, que tremo
De longe eu a vejo
Distante eu aceno
De perto eu a beijo
Aberto e sereno
A solidão que sinto
poetiza todo o meu cansaço
Nunca mesmo eu minto
Busco o meu próprio espaço
De Vidas me tornei faminto
Afrouxo quando me aperta o laço
Entretanto, sigo firme e distinto
Na indecisão de cada novo passo
O sofrimento bate na porta fechada,
mas a melancolia
é a rainha desta nova madrugada
A dor realmente dói
e chega o sono
para quase todos
O resto do mundo dorme
Exceto os demônios do fogo
Entretanto, estes nunca estão aos prantos
Assim nunca se esquecem de lembrar
A dor realmente dói
Aqui ou em qualquer lugar.

Antevisão e Cansaço de Fim de Mundo

Estava meio trôpego, instável, qualquer um poderia notar. Um instante era o bastante para se lembrar do que houve antes e simplesmente deitar e chorar. Se choro, pergunto-me, a razão das lágrimas. Se me demoro, é por entender tanto de lástimas. Se ainda estou parado há de ser por não ter virado a página.

Qual máquina metafórica reside dentro de mim? Que é que me traz ao paladar este gosto de fim? Deve existir um parafuso solto, uma engrenagem torta ou qualquer funcionalidade mecânica quebradiça. É que às vezes vou seguir e sinto que volto, algo me corta e os meus pelos se eriçam. Estático, prostro-me feito bicho selvagem. Enfático, aguento o peso da abordagem. Crescido como sou, eu nunca sou quem agride, mas a vida me tornou alguém pronto para o revide.

Batalha de egos travada no vale do fim do mundo. O sujeito está equivocado, porém, faz da falsa razão o seu escudo. Como se mede o alcance do orgulho? Provou seu ponto, mas perdeu a argumentação, como se não fosse o suficiente, foi em frente e promoveu a retaliação.

Copiosa marcha para o mistério da morte no vale das sombras. Afrontosa arrogância em baixa, vitupério proferido por esporte, é melhor que se cale nas caminhadas longas. Que tenho tão insistente que tanto me incomoda se não tomo boas ações? Que espécie de regente me vejo nos reinos dos sonhos translúcidos repletos de emoções?

Há pessoas no deserto. Não sou mais esperto que elas. Há pessoas congelando de frio sem cama, teto ou janelas. Não sou mais miserável que elas também. Há pessoas sendo assassinadas. Quanto é que me perseguem? Certamente jamais me atacaram por causa da minha cor de pele.

Shakespeare acreditava que o problema dos homens era a inconstância. A minha aposta é que o cerne das catástrofes seja a arrogância. Fosse eu mais feliz em sonhos, abandonaria o plano físico para dormir e hibernaria durante o inverno. Seguissem os dias enfadonhos e após a invernia transformaria meu descanso temporário em eterno.

Cansaço de fim de mundo. Sorri, embora meu coração chorasse, antevendo a minha despedida de tudo. Vejo-me de fora, revolvo para dentro. A vida é agora, embora, quase todos se percam do presente momento.