Água Salgada

Improvável filho
de uma força invisível
que não faz questão de ficar
Eterno andarilho
Incansável
Anda e anda e anda
Percorre os trilhos e sabe
Nunca vai voltar
Aprendeu
Catástrofes nos engolem
e temos sorte se esbarramos
em alguém que nos devolva
na boca o gosto da Vida
Lágrimas escorrem de meus olhos
sinto o sal na ponta da língua
Carregamos o oceano no âmago
O mundo se perdeu
Escuto e ouço centenas se repetirem
O mundo se perdeu, mas eu não
Sou acometido por náuseas e vertigens
Não vou vomitar
O fim é só um começo deturpado
Derrotamos o que supomos
fadado a dar errado?
Silêncio, ronco do cachorro,
estrelas urbanas nas calçadas,
carros em alta velocidade,
batida, semáforos, acidentes
Vale a pena sentir o que se sente?
O instinto da coragem te ergue
É preciso seguir em frente
Filho do mar se aproxima
sente a areia nos pés
Filho do mar, não existe sina
Ganhamos e perdemos
apostando na nossa fé
Fecho os olhos e
a areia me afunda
Estou enlouquecendo ou
tudo está acabando?
Sinto muito pelos erros que cometi
A minha vida passou voando
Por anos tive tantas certezas
Tento desfazer meus enganos
As nuvens anunciam a tempestade
Relâmpagos fazem brilhar o céu
É noite já e estou sozinho na praia
Fecho meus olhos e apago, mas
não sei dizer se estou dormindo
Na grande solidão do término do mundo
No ocaso mais tenebroso e escuro
Eu estava luzindo
Uma grande onda chega
Afogando tudo
Cada sentimento
Cada memória
com água salgada
Grito o seu nome e você não escuta
Será que grita o meu também?
Nossa prole também não nos ouve
Os corpos são lançados
em diversas direções
Na língua o forte gosto do sal
Nós nunca nos lembramos
Nós nunca existimos
Nós somos apenas
água salgada.

Antevisão e Cansaço de Fim de Mundo

Estava meio trôpego, instável, qualquer um poderia notar. Um instante era o bastante para se lembrar do que houve antes e simplesmente deitar e chorar. Se choro, pergunto-me, a razão das lágrimas. Se me demoro, é por entender tanto de lástimas. Se ainda estou parado há de ser por não ter virado a página.

Qual máquina metafórica reside dentro de mim? Que é que me traz ao paladar este gosto de fim? Deve existir um parafuso solto, uma engrenagem torta ou qualquer funcionalidade mecânica quebradiça. É que às vezes vou seguir e sinto que volto, algo me corta e os meus pelos se eriçam. Estático, prostro-me feito bicho selvagem. Enfático, aguento o peso da abordagem. Crescido como sou, eu nunca sou quem agride, mas a vida me tornou alguém pronto para o revide.

Batalha de egos travada no vale do fim do mundo. O sujeito está equivocado, porém, faz da falsa razão o seu escudo. Como se mede o alcance do orgulho? Provou seu ponto, mas perdeu a argumentação, como se não fosse o suficiente, foi em frente e promoveu a retaliação.

Copiosa marcha para o mistério da morte no vale das sombras. Afrontosa arrogância em baixa, vitupério proferido por esporte, é melhor que se cale nas caminhadas longas. Que tenho tão insistente que tanto me incomoda se não tomo boas ações? Que espécie de regente me vejo nos reinos dos sonhos translúcidos repletos de emoções?

Há pessoas no deserto. Não sou mais esperto que elas. Há pessoas congelando de frio sem cama, teto ou janelas. Não sou mais miserável que elas também. Há pessoas sendo assassinadas. Quanto é que me perseguem? Certamente jamais me atacaram por causa da minha cor de pele.

Shakespeare acreditava que o problema dos homens era a inconstância. A minha aposta é que o cerne das catástrofes seja a arrogância. Fosse eu mais feliz em sonhos, abandonaria o plano físico para dormir e hibernaria durante o inverno. Seguissem os dias enfadonhos e após a invernia transformaria meu descanso temporário em eterno.

Cansaço de fim de mundo. Sorri, embora meu coração chorasse, antevendo a minha despedida de tudo. Vejo-me de fora, revolvo para dentro. A vida é agora, embora, quase todos se percam do presente momento.

Crônica Pregressa #1

Amor fantasma, futuro, passado e fim

Eu não sinto meu coração até que doa, vamos, por favor, machuque-me.     

Tarde passada, eu resolvi, enfim, que fecharia os olhos para as direções quais eles sempre estiveram abertos. Estiveram assim, inevitavelmente, por escolha minha, mas escolher não deixa de ser também um fardo. Nunca me deram o benefício da dúvida, veja, eu sou sempre julgado com uma espécie de certeza férrea e fria, capaz de assustar até mesmo demônios. Ainda que seja algo desconfortável, eu acho que agora posso compreender porque o fazem. Sempre esperam a minha convicção, ainda que, usualmente só me ofereçam a dúvida. Não me ofendo. Abraço os monstros alheios e os que moram em mim também, mas acredito que posso, mais do que antes, realmente entender a amplitude da ação das pessoas. Quando ameaçados, em regra, todos nós recuamos e somos ligeiramente ariscos. Quem suporta se sentir acuado? Eis que então a simplicidade ganha nuances de complicações e o simples ganha contornos impossíveis. Por que deixar alguém se aproximar? Quais benefícios podem advir disso? Por que é que tão fácil para uns falarem sobre coisas que não entendem? Por que é tão difícil aceitar outras coisas que, mesmo em silêncio, cansamos de compreender? Escute sua própria voz e não seja o seu próprio algoz. Siga o próprio conselho. Você já sabe o seu caminho. Proferiu as palavras sozinho diante de um espelho. 

Amor como crença em fantasmas. Raríssimos viram, mas todos falam sobre.     

Não nos ensinam, creio, sobre a maneira correta de acreditar em determinadas coisas; aquelas verdadeiramente importantes como a vida, o tempo ou o amor. É mais fácil aprender a não ter fé do que se acostumar a tê-la, percebe? Fé em qualquer coisa que seja, mas esse sentimento abstrato de determinação, de compromisso individual, que forma e solidifica o dever moral de melhorar dentro do coração. Constroem a sua personalidade de uma maneira prática, comum, e se você der sorte, ao longo da jornada poderá contar com um ou dois tapinhas encorajadores nos ombros. Dirão que suas rimas são ridículas e que é melhor que seja advogado, médico ou que trabalhe na empresa da família, pois nessa vida, aprenda logo, não se vive sem dinheiro. Concordo com essas palavras. Quem é que vive sem dinheiro? É mais fácil também, assim como sugeri acima, acreditar no dinheiro do que em Deus, mas com o passar dos meses, com o constante correr das horas, você percebe que, há coisas, ainda que sejam detalhes, que não estão ofertadas em vitrines. Como alcançar algo nada prático sem cometer uma espécie de crime? Como voltar o relógio, evitar se transformar em um opróbrio, e buscar, sem “ganhar”, a única coisa que um dia te fez sentir sublime? Ora, eu vejo que você ainda não vê. Talvez seja por dar trela à opinião de quem não se interessa ou pelo barulho alto da TV. Quando as crianças de rua perguntaram, todos os seus impulsos se calaram, pois não sabia responder. Uma simples indagação te travou. Quem diabos é que eu sou?

Sirva-se filho. Sugiro que beba uma boa taça de vinho esta noite. 

Obrigado, senhor. Tenho que me virar, eu sei. Na minha barriga e no meu âmago não carrego nem mesmo um rei. A arrogância de nada vale pra alguém como eu. Do que vale a pena discorrer? Dinheiro? Ganhe, gaste, guarde, mas seja sábio. Gaste apenas o que sabe ter, nunca mais, não seja estúpido, é idiotice viver endividado. Amizades? Tenha poucas. Inconsequentes, mas corajosos e fiéis, como sugeria o poema de Victor Hugo. Os bons amigos apertarão suas feridas e depois ajudarão a curá-las. Amor? Ah! Amor! Amor é vislumbre para a maioria. Amor é rascunho de poesia. Amor em um dicionário atualizado é conceito de velharia. Quem é que, de verdade, se preocupa com o amor? Não os ensinaram, certo? Que já nascemos incríveis? Seus pais não falaram como não existem sonhos impossíveis? Ainda é traumatizado por que quando caiu da bicicleta haviam soltado sua mão? Notou que a cicatriz no joelho foi o jeito perfeito do conselho chegar ao coração?  

Não sejas precipitado, tome cuidado, mas não se torne arredio.
Fique esperto e nesta imensidão de gelo e deserto, lembre-se:
A confiança é um prato que se come frio. 

Ditados invertidos, invertidos inventados, dias antes prometidos, por ferro e fogo feridos, eternidades fadadas a dar errado. Sinto falta de tudo o que um dia foi, mas não sinto saudade de quem fui. Tenho orgulho das mudanças e sei que hoje ninguém me possui. Seria tão ruim ter alguém para segurar a minha mão? Ah, meu amigo, chega dessa melancolia. Até quando vai se lamentar? Varra a monotonia e mude tudo de lugar. Chame as coisas pelo nome e espere que atendam seu chamado. Quem não responder, chame agora de passado. É preciso se preocupar com a saúde, a espessura do sangue e as veias do coração, mas não se esqueça de que a vida é agora e não há garantias em futuros planos. Por amor, por favor, não abandone tudo o que pode ocorrer de bom em um ano. Quem é que pode te atrapalhar a conquistar o que você sempre quis? Se pensar com cuidado, notará que seu único obstáculo, é o quanto você deseja mesmo ser feliz. Não procure respostas no que havia ontem e nem no que haverá amanhã. Faz sentido viver a vida além de hoje? Por meses que pareceram anos, eu não senti as batidas do meu próprio coração e quis culpar todo o resto, até a minha boa cidade. Quando entendi minha situação, coloquei SIM onde só havia NÃO, pois constatei que merecia a minha felicidade. 

Sinto minha vida pulsar e a vibração de tudo é tão serena.
Ainda não sei dizer qual é o meu lugar no mundo, mas
a partir de hoje assumo que sou parte de Tudo
Viver vale mesmo a pena

Não arrefeça se tirarem seu teto e sustento
Você já passou por fins de mundo piores e pôde sobreviver
Sei que vai virar o jogo no próximo movimento
O mundo acaba hoje para amanhã renascer.

Há amor depois do amor?

     Meu único amor, eu tenho te esperado por tanto tempo. Por onde é que você anda? Soube meias notícias sobre você, meias verdades apenas, mas custei a acreditar nos boatos. Por onde erra você? Jaz no sono eterno ou eternamente se perdeu no vento? O porta-retratos com a velha foto ficou exposto por algum tempo na sala vazia, mas muitos começaram a achar estranho que eu ainda a ostentasse, mesmo tendo a perdido. Depois veio outra mulher em um porta-retratos novo. Nunca a vi, mas ela se parece com uma menina de cabelo colorido, então, deixei ela na sala para colorir minha imaginação. Todos que antes se incomodavam com a foto antiga, perguntam agora quem é a nova. Sorrio. Uma modelo qualquer de algum lugar qualquer. E o que aconteceu com a antiga? Ora, eu sou descuidado. Em um equívoco legítimo, alguns dirão que eu a perdi mesmo, mas importa tanto assim o meio se o fim é igual? Que seja a perda então. E se eu dissesse que mesmo com a perda, eu ainda ganhei? Há uma parte que será, até o dia de nossas mortes ao menos, eternamente minha, eu sei. Entendo sua partida, pois “o amor não enche barriga” e apontar o dedo por deduções é algo mais comum do que se imagina, mas quem é que diria? Quando me tornei certo de que você não voltava, a insuportável invernia no meu coração piorou e eu só rezei para melhorar. Rezava para quê ou para quem? Não sei dizer, mas cada uma das raras lágrimas que derramei escancarou minhas fraquezas. Choro é fuga. Que razão há no mundo para um homem de sonhos profundos se lhe tiram o que mais ama? Que razão não há para tudo ignorar e viver isolado vestindo o mesmo pijama? Fuga no sono, queda dramática, cama. Infelizmente até em meus sonhos, onde sento em um vistoso trono, você me chama. Por que faz tanta questão de me possuir se nunca mais foi capaz de me desejar?


     O fim da vida é a morte e hoje pouco ou nada me interessa devanear sobre o que há depois. De que importa, afinal? Eu só gostaria de saber se há amor depois do amor, pois com a última batida pesada da porta, imediatamente soube que meus sorrisos não seriam os mesmos. Há ilusões de paraíso para meros vagabundos à esmo? Meus medos me consumiram. Hoje é sábado, 9h10, mas estou em um escritório. Nos meus sonhos mais antigos isto é como comparecer ao meu próprio velório. Lancei eu mesmo a flechada que perfurou a minha armadura. Fadado a viver em batalha, constatação de uma gama de falhas, uma voz que ecoa: A vida é dura. Já não penso mais sobre o amor, pois se há esperança de perseverar nele, esta esperança apenas é alimentada nos momentos em que é impossível raciocinar. A lógica é inimiga do sentimento. Se pensar com clareza pode concluir que nenhuma ou todas as suas atitudes foram capazes de influenciar alguém. Adianta disparar a arma quando a vida tomou reféns? Que há por de trás do ódio senão a candura? As faces de escárnio, todas secas, horripilantes, lançam olhares mortificados para os que ainda se preocupam. Quanto tempo nós temos? O que é que fazemos aqui?


     O não pensar nos faz livres e o pensar nos faz prisioneiros, por tal, digo que é mais feliz aquele que nunca aprendeu a raciocinar. Aquele que não sabe que o mundo é gigantesco, não sente falta de conhecer sua imensidão, pois o resumo em que vive o basta para se satisfazer e ser feliz. Quem é louco de querer ser apenas feliz? Aquele que pensa, age ou não, mas inevitavelmente se compunge pelas façanhas realizadas ou por aquelas que deixa de realizar. Aquele que não pensa, porém, age e a extensão de seus porquês se encerra na própria razão que o levou a agir. Furtei um pão, pois senti fome. Se não fui preso, fui feliz. Se fui preso, não fui ladrão bom o suficiente. Era preciso fazê-lo e aqui se encerra a existência da questão. Não há razão para questionar se é moralmente correto tomar o pão; foi necessário. Há amor para os tolos? Sim! Principalmente para os tolos, mas sigo em minha racionalidade banal ao me perguntar: há amor depois do amor?


     Alguns que me leem me acham inteligente. Outros me tomam por um tolo infantil. Estou amadurecendo ainda e sou qualquer coisa entre criança e adulto; entre o divino e o cético; entre o pueril e o razoável. Se me consideram imbecil, provavelmente estão certos. Se captaram em minhas palavras algum vislumbre genial, pode até ser que ele também exista. A felicidade é para quem sabe agir esquecendo-se de pensar ou para quem sabe olhar para o que possui, sabendo que possuir é mera ilusão. Talvez a palavra ilusão sintetize a ideia errada, pois possuir é ainda menos. Na realidade, nós não possuímos, em regra, nem a nós mesmos e somos condicionados a fazer coisas que muitas vezes não queremos exclusivamente por uma vontade que nos leva ao que desejaríamos que fosse. Possuir é expectativa longínqua de ilusão. Tudo que não existe em ação e solidez é mais real para quem raciocina. A imaginação é importante, pois é nela que se firmam todas as nossas teses e se continuamos a acordar no dia seguinte e no dia depois, é, apenas pelo fato de que em um lugar dentro de nós, existe uma fé cega em nossas próprias capacidades. Antes de Deus ou da ideia de Deus ou de qualquer ideia que não o envolva, a realidade nos guia para uma fé cega em nós mesmos e quanto mais arrogante somos em pensamento menos altruístas (verdadeiramente) tendemos a ser em nossas atitudes. Há humildade só no agir simples. A bondade na simplicidade é geralmente discreta. Desconfie dos que fazem barulho por qualquer coisa. Afaste-se dos que sentenciam à morte quem cometeu qualquer erro frugal. Se puder, seja humilde, peça desculpas, mas evite se humilhar. Não devemos baixar a cabeça, pois não somos servos de Rainhas ou Reis. Acaso não possa ser humilde, seja coisa nenhuma. Ainda que cada indivíduo seja a meditação contemplativa da memória do que um dia foi, o que ele é agora é apenas expectativa do que o que imagina ser.


     Assim, por ora, encerro em mim todas as questões existenciais essenciais tanto como as francamente patéticas. A chance de que os cruéis, os pernósticos, os ascetas e os desmedidos sejam felizes é absurdamente maior do que a chance de felicidade dos ingênuos e dos coerentes. A ausência de culpabilidade, o não remorso, faz com que a arrogância predominante da alma se eleve. Elevado, supostamente há leveza no ser, mas não o há, porém, para os que se martirizam por erros que nunca cometeram. A própria expectativa de liberdade geralmente é uma artimanha ilusória para com a verdadeira liberdade. Somos prisioneiros da suposição do que poderíamos ou deveríamos ser.  Associamo-nos à pessoas degradantes para nos impedirmos do privilégio de pensar. Juntamo-nos aos réprobos, pois queremos evitar a solidão. Que sentido há em viver? Há sentido em qualquer coisa? Tornar o sonho real faz com que se perca a possibilidade do sonhar, mas, creio, embora sem forçar expectativas demasiadas, que realizar o sonho nos torna complacentes. Se é importante ser bom ninguém jamais soube dizer. Do mesmo modo ainda não tenho a resposta para a pergunta que me fez escrever e pensar inutilmente em tudo isso. Há amor depois do amor? Há lealdade em um mundo de oportunistas? Para o que se vive é o mesmo para o que se morre? A palavra futuro é ridícula. Tudo que é, obviamente, é agora. Erro-me por medo de não ter errado o bastante, pois deveria ter dito algumas coisas que não disse. Ainda assim, quando tive a oportunidade de dizer, falei muito em silêncio, mas quando tentei me expressar com a voz, disse tanto e ainda assim nada transmiti. Como são curiosos os caminhos, vê? Forçaram-me a estar aqui neste sábado. Lancei um débito errado e esqueci de dar o desconto de um centavo. Na segunda-feira cedo, eu vou perder mais trinta minutos da minha vida por isso, mas o que serão trinta minutos quando já estou fadado a perder nove horas? Desejo o tempo livre que tinha. Desejo ser um pouco mais do que fui e um pouco menos do que sou. Não penso para depois. Não passo para depois. Sou o que sou e sou agora. Apenas isso importa, mas que há de acontecer?


     Não há justiça no mundo. A ordem é uma palavra inventada para frear o eterno caos que passa por cima de tudo. Por dentro, quase todos, vi com meus próprios olhos e senti com minha própria carne, são selvagens. Parte de mim também compartilha dessa animalesca selvageria, mas sou um desses coitados infelizes que se presta a pensar além do próprio umbigo. Constatei sem derramar lágrimas que só há felicidade destinada a mim em sonhos. O mais belo deles se resume em um homem recostado em uma árvore lendo um livro; uma mulher cochila está deitada nas coxas dele. Uma menina, um menino e um cachorro correm ali perto, exultantes, ninguém saberia dizer o porquê. Respiro longamente e sou toda aquela cena. Se sou o homem, sou feliz. Se sou a mulher, a filha, o filho ou até mesmo o cachorro, sou igualmente feliz. Se sou a árvore que observa aquele instante, viverei mais por conta disso. Se sou o sol que faz suar as crianças, sorrio, mas cedo espaço à chuva, pois creio que ainda aqui cabe um arco-íris nesta utopia. Sonha-se acordado, vive-se dormindo. Não há rumo novo. Não há alegria nova. Felicidade é ser e ser é existir sem expectativa e sem pensar. Os outros decidem muito sobre nós; eles não importam. Decido-me hoje sobre alguns velhos desejos matreiros que ainda matutam em meu coração. Quero fazer uma viagem para fora do país, pois não quero entender completamente as línguas que falarão comigo. Que seja uma aventura. Quero descobrir o que há depois do mar, para onde os dragões verdes partem e onde dormem os corações partidos. Quero descobrir se há morte após a vida ou se até isso é ilusão. Quero desenrolar meu próprio ser, eu mesmo me saber, entender meu coração. Quero descobrir se há como viver desperto, além dos sonhos e se há amor depois do amor. Talvez nada disso te faça sentido, raramente sinto o sentido, mas ainda assim, é uma jornada longa e dura para que eu a faça sozinho. Quem sabe alguns se juntem a mim antes, durante ou ao final do caminho? Tanto faz. O pouco que sei é insignificante, sigo inconstante, chutando para longe os mais belos diamantes. Quero sonhar acordado, não pensar nos dilemas morais, fazer algo pela existência, mas me aflijo ao pensar, há como acreditar neste mundo que vive por aparências? Não sei. Partirei em breve. Se quiser ir comigo, será bem-vindo. Prometo que será leve, mas não sei se será lindo. Desconheço o destino ainda, mas chegaremos aos lugares que pretendemos. Saiba que está convidado a ser parte da minha tripulação. Tudo bem se ainda tiver medo, nós vamos nos superar. Coragem não é ausência de medo e por de trás um mundo de segredos quem sabe eu ainda possa amar.

Uma espécie de limbo tenta me engolir por mais uma semana,
mas ele se engana se acha que esse espaço vazio me fará desacreditar…
Se há amor depois do amor? Eu me pergunto e me respondo: claro que há.