Coisas Pequenas

O inferno é apenas a mais violenta das metáforas. Fecho os olhos e me vejo nos fiordes, ainda que nunca tenha estado lá. Sinto que a minha alma pertence aos locais inabitados e gelados, ainda que a minha presença seja sempre tão expansiva e quente.

O inferno é a mais agressiva das metáforas. Nossos temores, sejam infundados ou não, trazem terror ao cotidiano e preenchem a mente, ainda que não exista razão consciente e real para que permaneçam nela. Revivemos automatismos e procuramos o sofrimento. O inferno não existe nos outros e sim em nós mesmos.

Fiz de mim o que não soube. Há coisas que ainda não digo por não estar preparado para dizer ou por não ter a convicção de que aconteceram. Será que devaneei acordado com pesadelos quase táteis? Inventei o que me atormentou? O que era real parecia sonho e imaginei coisas que eram mais palpáveis que a realidade que eu tocava. Vi o rosto do amor em um mergulho na imaterialidade de mim e chorei, perdendo-me pela primeira vez em décadas. Sorumbático avancei, mesmo que minhas pernas estivessem trêmulas e que o medo fosse sufocante. As trevas se aproximam para todos e não há como evitar. É preciso sobreviver.

Sei que continuar é uma necessidade e estou cansado de ver meu suor pingar vermelho. Sei que, vez ou outra, não me reconheci quando defronte ao espelho. Devo lutar pelas recompensas, ainda que eu já as mereça. Vejo-me abandonado e com a barba bagunçada e espessa. Fito meu rosto cada vez mais magro. Quando todas as portas se fecham, eu outra vez me ergo e me abro. Mostro ao mundo um pouco mais. Tento com um pouco mais de força. Arrisco com um pouco mais de coragem, pois a vida é uma estrada que se pega e milhares que se deixam. Despenco no chão, mas me levanto e caio de novo para me perceber capaz de levantar outra vez. Se perdi tudo é sinal de que não tenho mais nada a perder.

Induzir-se propositadamente a uma letargia de sentidos é uma atitude perigosa. Fechar os olhos para os próprios anseios e desejos e encarar a vida somente pela perspectiva alheia é correr o risco de matar a própria personalidade. Podemos estar enganados sobre tudo e essa consciência é simultaneamente libertadora e assustadora. Nossos amigos podem nos trair. Nossa família pode nos machucar. Nós podemos estar terrivelmente enganados a respeito de nossas certezas mais profundas. Nós podemos nos tornar antagonistas. Não somos maus ou bons. Todo vidro se quebra. Não há exceção para a regra. Somos frágeis e podemos nos despedaçar no chão, pontiagudos. Podemos fazer sangrar pessoas inocentes. Machucamos e somos machucados. Independentemente do desfecho, não somos anjos ou demônios. Nós somos apenas o que somos.

Acumulamos, assim, diversos equívocos e queremos o que queremos no momento exato em que queremos. A realidade me choca. Sobrevivo aos novos dias com a recordação de que tudo se finda. Lembrar da morte reforça o sentido da existência e torna nossa jornada mais linda. Não é errado ter suas balanças, mas tente ser coerente sempre que usá-las. Não feche os olhos para quando as pessoas que você ama fizerem coisas pesadas. Todos somos capazes de tudo. Valorize quem por mais vezes desconsidera a forma e exalta o conteúdo.

Nem tudo é dito, mas tudo é demonstrado. Coisas menores devem imediatamente serem deixadas de lado. Não aceite tudo e não se faça mudo. Não adianta fingir que a vida não é cheia de problemas. Aquele que não sabe perdoar apenas conheceu coisas pequenas. Supere essa quantidade enorme de desconfortos. Você pode tudo desde que ainda não esteja morto.

O paraíso é apenas a mais confortável das metáforas. Fecho os olhos e me vejo nos fiordes, ainda que nunca tenha estado lá. Sinto que a minha alma transborda cada vez mais através de minhas atitudes, mas precisei errar muito para começar a acertar. Senti como se estivesse por um fio, mas através de epifanias me encontrei. O frio que senti nos climas mais quentes foi a maior prova de que me enganei.

O paraíso é apenas a mais confortável das metáforas. Ele também não existe em um lugar mágico e etéreo ou nos outros e sim dentro de nós mesmos. É comum que cada pessoa almeje um lugar tranquilo no qual possa repousar. A vida costuma ser tão dura que, às vezes, a gente só pensa em se deitar. Desta forma, procure valorizar quem aparece na sua memória quando você percorre suas estradas para locais seguros. Pense mais em construir pontes e menos em erguer novos muros.

Respeite seus limites e cresça um pouco a cada novo dia. Os seus erros não te definem, assim, arrisque-se com novas tentativas. Mostre a sua fibra e o tamanho da sua coragem, principalmente quando o mundo provocar todos os seus medos e reproduzir essa imensidão de horror. Quando a maldade de derrubar, lembre-se de que você pode se levantar, sorria e revide com amor.

Véspera

            Amanhã é meu aniversário e outra vez não haverá celebração. Consterno-me com isso? Se devo reconhecer algo é que o meu aniversário do ano passado foi excelente, apesar dos pesares. Dois mil e vinte foi um ano de altos e baixos, mesmo com a morte de milhares. Eu realmente gostaria que o cenário fosse mais auspicioso e que toda felicidade não me parecesse tão distante assim. Quando o caos do mundo faz um barulho ensurdecedor, você consegue se manter reto e discreto com a memória do amor? Quando tanta gente fala, você se cala e escolhe o que é melhor para você ou fecha os olhos numa jornada hedonista que visa só o prazer? Os outros sabem pouco e pensam saber tudo. Sei que estive perdido e solitário por tantas noites que, às vezes, eu sinto que definhei sozinho em uma madrugada de janeiro e fui esquecido para sempre. Sinto que minha mente de ficcionista, expansiva e dominante, criou novos mundos para que eu pudesse existir, pois mesmo derrotado eu nunca fui o tipo de pessoa que desistia de algo tão precioso como a vida. Por onde andei? Alguém realmente me procurava?

            No início do ano, eu estive presente no hospital no dia do nascimento do meu sobrinho e sempre me sentirei privilegiado por essa oportunidade. Tantas caminhadas na praia das dunas e como consequência apenas sol e alegria nenhuma. Minto. Estar próximo do meu irmão me trazia felicidade e poder abraçar ele e seu filho no dia 04/01/2021 vai ser sempre das maiores coisas frágeis que pude contemplar na vida. É estranho, mas tento me agarrar nestes pequenos milagres para seguir adiante com coragem e não pensar na gigantesca onda que quase me afogou. Fui empurrado até o fundo do oceano por essas coisas horrendas e tudo o que eu sentia na boca era o gosto de água salgada. Lembro-me da nossa primeira despedida, depois de dias, depois de tantos jogos compartilhados e risadas e açaís e sorrisos… ainda meses antes da chega do pequeno Rodrigo. Os rituais lentos de Matheus, os meus gestos rápidos, a cumplicidade de quem se importa em se lembrar ressaltando a importância de não se esquecer no meio do processo. Eu te amo como você é, mas você pode ser melhor, eu disse para ele e absorvi meu próprio conselho. Eu sei que me agrada, mas não sou viciado na imagem que se reflete quando olho no espelho. Fosse eu viciado na própria imagem, tentaria viciar os outros nela também e assim adquiriria coisas por atalhos. O hedonismo me diz que devo desfrutar de todos os prazeres, ignorando todo o resto, se o posso. Sou esta figura narcisa retratada por Wilde a mais de um século? Matheus então zomba de quem precisa tanto da própria imagem. “Não é você que me diz, Dani, que quem só olha para fora nunca enxerga o que existe dentro? Temos defeitos, irmão, mas podemos mais”. Sempre pudemos. Choro ao me lembrar de como alguém esquecido como ele foi capaz de gravar minhas palavras. A ilusão é o primeiro dos prazeres e muita gente se contenta com as mais baratas. Detesto essas ambições tão rasas. Volto na questão. Poderia eu ser retratado por Oscar Wilde?

            A resposta negativa me fez suspirar longamente. Não sou e nunca serei escravo da voz alheia, mesmo que reconheça o poder do privilégio. Todos fitam sua imagem e você tira vantagem destes tantos ébrios. O sorriso pernicioso percorre atalhos e você se pega em um ponto complexo, ainda que simplório. O que pensaria ao fitar seu corpo no próprio velório? Você encara a velha confusão entre quem se perde nas definições de liberdade. Até mesmo os mais livres se pegam, de quando em quando, contemplando seus dilemas morais. Vivi, chorei, acertei e até me emocionei. O que é que faço de mim quando me reconheço? O que eu me represento se nem eu mesmo me obedeço? Fiz de mim o que não soube? Amo-me o suficiente, mas por vezes desejei ser qualquer um que não fosse eu. Busco estradas para locais seguros, mas piso em armadilhas óbvias e me machuco. Os réprobos me salvam, mas querem compensação. Sinto que os compenso, mas será que realmente os compenso? A realidade dói quando sei que mereço coisas boas e elas se afastam. A vida inteira parece um teste de matemática e não tenho minhas professoras para me tranquilizarem sobre os números. Quando o mundo se apaga, vozes traiçoeiras nos empurram. Às vezes os mais próximos nos afundam. Parto para o ataque e me reteso. Não acredito em Deus, mas às vezes rezo. Posso mesmo carregar todo este peso? Admito que tropecei muito e até me perdi de mim. Será que tudo tinha mesmo que ser assim?

No meio desta cronologia maluca, eu me peguei desconhecendo as razões de fazer o que eu fazia. Vivi incontáveis madrugadas de silêncio violento. O tiquetaquear do relógio ribombante transforma meu coração em uma bomba relógio. Se eu explodir esta noite estarei completamente sozinho. Pelo menos meus destroços não machucarão nem mesmo meus vizinhos. Penso mesmo na saúde do vizinho de casa? Eu que sempre fui rei dos céus nunca mais pude abrir minhas asas. Estranho é deixar de pensar nos outros quando os outros sempre estiverem em primeiro lugar no meu coração. Sofri e quase me afundei. Nos meus instantes de força bruta e lucidez, eu nadava até a superfície e recuperava o ar. Algumas pessoas me puxavam de volta para me chutar para o fundo do mar. A solidão crescia no meu peito enternecido. Cada dia eu era mais cônscio da vileza do mundo e da quantidade de perigos. Endureci sem nem perceber. Senti a minha força expansiva de sonhar esmorecer. Talvez a vida não seja muito mais do que sofrer e fazer sofrer. Talvez devamos valorizar os que nos ensinam sobre Beleza e Dor.

Continuei a ver a vida, mas deixei de senti-la. Andava, mesmo que não sentisse minhas pernas. Comia mecanicamente, como alguém que se esquece de que nem todas as refeições carregam o mesmo aroma e sabor. Flutuava pelas noites e dias como uma sombra discreta de mim, eco distante da minha totalidade. Não sentia vergonha de coisa alguma. Não sentia orgulho de coisa alguma. Tornei-me fantasma. Deixei de escrever e senti que havia perdido tudo. Sabia, ainda que não trabalhasse para me evitar, que se me perdesse das palavras estaria desmaiado para com a verdadeira vida. Não tinha força para buscar tudo o que estava longe. O que me fazia continuar? Os milagres que eu já tinha visto ou os que eu esperava ver? O que me levava ao autoabandono?

Até hoje não sei identificar com precisão o momento em que eu me afastava dos caminhos que tanto amei, mas olho para minhas culpas e as enfrento, mesmo que elas ainda me assustem de quando em quando. Nunca clamei por atenção, mas há outras maneiras de gritar socorro. Só não sucumbi pela presença dos meus gatos e do meu cachorro. Só os medrosos podem agir com coragem. Só os valentes caminham para a escuridão quando o resto do mundo congela, mesmo com as pernas trêmulas.

Sou fogo que arde e minha luz iluminou, no mínimo, uma dezena de pessoas, mesmo quando me esqueci do meu valor. Oscilo, mas continuo em frente em nome do amor. A vida é difícil, mas ainda vou existir longe, brilharei no horizonte durante minha próxima cena. Serei sutil e profundo como um poema. Sei que muito errei e que de quase nada sei, mas viver sempre vale a pena.

A virada de fevereiro para março me trouxe de volta velhas novas esperanças e o sabor esquecido de uma felicidade real. Vivi noites de natal em pleno carnaval. Sofri e aprendi. Errei e me aprimorei. Sou o mesmo, mas sou alguém melhor. Sinto que quando olho, encaro o cerne de tudo e me sustento em temperança. Se tenho a oportunidade para mudar tudo com as minhas próprias forças, eu sei que um dia por vez vou perseguir o que sempre quis. Nunca mais nessa vida subestimo a oportunidade de ser feliz.

Sinto falta de muita gente, mas ando destemido e contente, agindo como um adulto, mas mantendo meu coração de menino. Não sei o que haverá pela frente, mas sinto segurança no coração e na mente para correr atrás do meu destino.

Blues

Escuto uma batida lá no fundo da minha alma. É uma canção antiga e essa espécie de ritmo ancestral percorre túneis secretos até o meu âmago.

Este blues já tocou antes, mas eu pensei que nunca mais fosse ouvir essa canção.

Olha, eu chorei a noite inteira e não consegui dormir. É que eu queria dizer um tanto de coisas, mas sinto que qualquer sombra de palavra vai piorar tudo. Eu sei que o meu jeito não convencional é um pouco complicado e eu deveria estar escrevendo sobre os venezuelanos, entretanto, aqui estou.

O que estou fazendo? Não sei exatamente, mas espero estar decidindo certo. A vida é meio estranha e a gente se desvia dos caminhos geralmente, sabe? Eu só quero não me desviar dos meus.

A cabeça se distrai facilmente com qualquer outra coisa que me leve longe de onde realmente sinto que devo estar. Você cresceu dentro de mim em uma velocidade estupenda e precisa se lembrar disso. O estômago anda mal, eu acho que bebi um litro e meio de café hoje e devo vomitar.

Sinto falta e me sinto fraco nessa ausência dolorida qual não posso controlar. Uma canção antiga reverbera em mim.

Creio que escolhi certo, mas que diferença faz? Na falsa balança não há qualquer vislumbre ou sensação de equilíbrio e, bem, eu sou equiparado com os réprobos e sofro uma retaliação silenciosa. Mereço? Que importa aos outros? Será que em segredo você me desgraça também?

Passo meus dias em casa e me sinto estático. Não me movo e nem sinto vontade de me mover. Sou resgatado por sorrisos breves em episódios de The Office, mas honestamente é a única alegria que sinto.

Escuto uma batida lá no fundo da minha alma. Este blues já tocou antes, mas eu pensei que nunca mais fosse ouvir essa canção.

A verdadeira tristeza é uma falta de ar constante. Eu sinto como se não pudesse aguentar até amanhã de manhã. Encontrarei o meu fim neste solilóquio, nesta noite relativamente gelada? Sinto a dor da ausência e a presença tão calorosa que se insinuava quase como o próprio sol está distante. Meu mundo quente sofre um baque com a queda da temperatura. A canção que toca no fundo é conhecida. Este velho blues rasga o meu coração.

Olha, eu chorei a noite inteira e não consegui dormir.

Escrevi uma carta e depois outra e, enfim, mais uma. O que tanto escrevo eu já não sei mais. Queria conseguir transparecer a convicção que existe por essa espécie de intuição certeira. Falho.

Por quanto tempo estarei assim?

Não me sinto preso e nem liberto. Tampouco sou burro, mas existo longe de me sentir esperto. Os que têm para quem se confessar forçam o erro sem hesitação. E o que faço eu que não conto com a anuência de mais ninguém para me sentir realmente bem ou realmente mal?

Não há quem me abençoe para os dias seguintes e nem quem me ofereça redenção pelos pecados que não cometi. A única coisa imperdoável é a incoerência quando ela é absolutamente hipócrita. Não está tudo bem.

Mas tudo vai ficar, eu sei, pois ainda não escrevi sobre a Venezuela e sigo noite adentro para finalizar trabalhos que deveria ter feito na última tarde. Não estou atrasado, apenas um pouco deslocado do horário normal de funcionamento das coisas.

Que é que há comigo que sempre funciono no meu próprio tempo?

Olha, eu chorei a noite inteira e não consegui dormir, pois queria saber como você está, mas não posso perguntar. Tenho recebido este tratamento gélido e distante de quem costumava fingir que se importava.

Ninguém se importa.

Sigo como posso e até onde posso. Não posso fazer menos por mim do que estou fazendo agora. Talvez eu não esteja fazendo o meu melhor, mas estou realmente tentando tentar.

Redundante?
Necessário.
Ridículo?
Possivelmente.
Prolixo?
Inevitavelmente.

Escuto a mesma batida lá no fundo de minha alma. Este blues já tocou antes, mas eu pensei que nunca mais fosse ouvir essa canção.

A dor dói

A dor dói
Repito e repito e repito
Apenas por mentir
ou por repetir?
O que se constrói
também se destrói
Repito e repito e repito
até que eu possa sorrir
Wilde disse que sempre
destruímos o que mais amamos
Sabia ele algo sobre amor?
Talvez sua especialidade
fosse apenas destruição
Quiçá um perito bem vivido
em longínquos tempos de dor
E solidão
Diria ele então que a dor dói
E se repetiria apenas por se repetir?
O que se destrói apenas se destrói
E zombaria da minha visão
ao sorrir
A dor certamente dói
A indecisão indubitavelmente fere
Não há neste mundo super-herói
Que aguente o sofrimento do mundo na pele
E que tentemos nos manter calmos
Em face do que nos traz a noite escura
Do chão estamos à sete palmos
Epitáfio lúgubre em eterna gravura
A memória recorda e guarda lembranças
A chuva me acorda e perco esperanças
Quando ficou tão difícil
de falarmos a mesma linguagem?
A compreensão de quem compreende
Rede nas janelas
Sono felino
Sequelas
e velas
Cachorro
dormindo
Dormido
distante
da dor que
tanto dói
Outro cão
mija na estante
Sinto a cabeça
que dói
Confusão
Dor que dói
Como a dor antiga
na outra madrugada de temor
Em minha lápide jaz esquecida
a mais bela história de amor
E os tristes seguem tristes
E a felicidade dos felizes passa
A minhoca se entorta e foge
do pássaro predador que a caça
A dor dói
A felicidade é feliz
E qualquer coisa
é qualquer coisa
Se eu sei de algo
É por saber que sei de nada
É preciso tomar cuidado
quando a voz cala
E a intenção segue
Insinuada
Nada
a ser dito
Nada
bonito
Madrugada
gelada
Desespero
E grito
Talvez
se a dor
não doesse
Meu sentimento
fosse mais pequeno
Talvez um dia entenda
o que hoje parece ameno
Que sinta e olhe e saiba
que não se força onde não caiba
E que falar é necessário
A cena descreve
um poema
A vergonha
envenena
a tinta e a pena
O rumo e
o destinatário
Assim se vai
a dor que dói
Após sentirmos
Ela ao extremo
De longe eu a vejo
Distante eu aceno
Os demônios do fogo dormem
todos de olhos abertos
Imito seus rituais
tentando me sentir esperto
Os sentidos todos se escapam
O sentido objetivo também
Estas reflexões me matam,
mas revivo e vou além
A dor dói e eu repito a frase
Que eu não morra cedo e com medo
de sempre ser QUASE
A dor dói, mas me situo
Reparo, enfim, que tremo
De longe eu a vejo
Distante eu aceno
De perto eu a beijo
Aberto e sereno
A solidão que sinto
poetiza todo o meu cansaço
Nunca mesmo eu minto
Busco o meu próprio espaço
De Vidas me tornei faminto
Afrouxo quando me aperta o laço
Entretanto, sigo firme e distinto
Na indecisão de cada novo passo
O sofrimento bate na porta fechada,
mas a melancolia
é a rainha desta nova madrugada
A dor realmente dói
e chega o sono
para quase todos
O resto do mundo dorme
Exceto os demônios do fogo
Entretanto, estes nunca estão aos prantos
Assim nunca se esquecem de lembrar
A dor realmente dói
Aqui ou em qualquer lugar.

Neblina Espessa

Essa neblina espessa, veja, eu sinto que posso tocá-la. Ontem senti sua falta pelos quatro cantos da nova casa. Esta casa atual é muito maior do que a outra, mas às vezes sinto saudades de quem eu era. Estranho, eu sei, como quem quer forçar o inverno em plena primavera. Inadequado, eu sei também, tal qual vestir uma antiga roupa que já não cabe mais, mas a gente possui essa estranha mania de querer o que se quer, não é? E às vezes aposta muito nos outros e pouquíssimo na nossa própria fé. Roupas ultrapassadas, apertadas, antigas. Talvez seja melhor doá-las. Memórias desgastadas e coisas esquecidas, esculpidas relativamente, desejos de fantasmas que estão mortos, mas ainda sentem, o apelo desesperado para que a alma seja notada. Você consegue perceber a sutileza deste sentir? Você consegue sentir falta de quem se foi, respirar com calma, perceber que está tudo bem e sorrir?

Essa neblina espessa, eu sinto que posso tocá-la. A fumaça cansada lançou seu manto sobre a cidade e eu não vejo nada aqui desta sala.

Recordo-me das noites incomparavelmente melancólicas nas quais nunca houve outro ser humano que fosse mais triste do que eu. Recordo-me da voz de Lord Huron falando sobre fantasmas, prazos, fins e tudo aquilo que eu perdia, mas que hoje nem sei se me pertenceu.

A janela anunciava luzes e a cidade piscava convidativa. Esta noite qualquer apelo do corpo para lembrar a alma de que ela ainda está viva.

A janela de novo e minhas epifanias. Nestes vislumbres notei que a vista não era apenas feita de melancolia. Às vezes reparava em alguém que cruzava a rua durante a metade do dia. Mãe e filha de mãos dadas caminhando distraidamente até a igreja, o trabalhador em obras com a camisa suada e pensando em todas as suas despesas ou até mesmo eu de longe, distante da figura que tanto aprenderia a conhecer no futuro. Na janela de mim, observo-me passear com o cão Link pelas esquinas que serão esquecidas. Ele caga, eu recolho as fezes. O mundo seria melhor se todos nós fossem dispostos em recolher as fezes? Acumulo de revezes.

Acordo e vou até outra janela. Bom, eu confesso com uma infelicidade resignada que acordei 5h15 para esperar o nascer do sol. É o meu último dia neste prédio e ontem a noite havia decidido que não perderia essa chance. Quando temos a rara consciência do momento exato de nossas despedidas, podemos ser mais dedicados em torná-las especiais.

Os prédios não falam ou pelo menos eu nunca pude ouvi-los. Acordei cedo, mas ainda antes a neblina havia os engolido. Procurei uma caneta pela casa e não a encontrei. A angústia cresceu em meu coração subitamente. Precisava rabiscar sangue no papel. Esfreguei a ponta da caneta. Havia acabado o sangue. Usei a minha própria tinta para começar o texto até que percebi que não havia mais. Os dedos gelados agressivamente começaram a bater nos teclados e eu já não conseguia parar.

A janela continua perfeita, mas o céu se fez difícil na minha despedida. Talvez eu não mereça hoje essa melhor vista. A neblina e as nuvens esconderam completamente o céu, mas insisto nesta minha fé cega ou na pesquisa científica para acalmar meus nervos e repetir devagar em um intervalo de respiração. O sol aparece amanhã de manhã.

Sinto um calafrio que percorre toda minha pele. Sou quente e feito de emoção, batida rápida de coração e não há invernia que me gele.

Dominado pelo cansaço sinto um frio que ocupa todos os meus espaços e fecho meus olhos tendo a esperança de dormir. Abro os olhos e encaro meu erro crasso, é o dia final para a mudança, eu preciso correr e sair daqui.