Você vai sentir esse peso

– Você vai sentir esse peso.

O conselho soava despropositado, tosco, fora de hora, longe do nexo, ainda assim, os ombros agora carregavam uma bagagem que não havia anteriormente. Por quê? Não sabia dizer. A gente é tudo aquilo que pode? A gente é aquilo que nunca mente?

– Que é esse peso? – Pergunto e me deparo com o silêncio em resposta. O conselheiro se foi.

Contrariado, ergo-me e bebo um copo de água gelada. Até nas noites o clima quente atrapalha. Se pudesse escolher, eu hoje tomaria uma garrafa de vinho tinto. Se eu pudesse me entender, beberia tudo sozinho. A gente é aquilo que nunca mente e o que pesa internamente antes do novo dia ter amanhecido? A sinceridade é o melhor caminho para não sair ferido?

A noite ainda é longa, porém, reconheço-me distante da excitante luz solar. Reconheço-me com estranheza, mas sigo inconsciente sobre a minha beleza. O brilho fraco das estrelas é a única coisa que me impede de (me) apagar. Venço o estado soporífero. Escuto vozes, velozes, pessoas correndo, fazendo barulho, frenesi louco, ebriedade costumeira, cruzam a madrugada, todos atravessam, arriscando-se, morrendo porque desejam viver. Se eu pudesse recuperar tudo aquilo que havia perdido. Se eu ainda tivesse as chaves para voltar para a orgia de meu sofrido mundo proibido. Se as coisas simplesmente não doessem como doem.

– Você vai sentir esse peso e conhecer essa dor.

A dor não se evita. Acendo uma vela e fito a chama acesa. Este momento é meu, embora nada mais me pertença. A luz bruxuleante queima a cera e toda a minha esperança ingênua se projeta na sombra. Não sei explicar, mas falta algo lúcido e próximo, possível e real, algo esquecido e deixado de lado pela prece de horas sombrias. Não posso ser o foco, entretanto, desejo ser a fogueira que queima através do tempo-espaço, o fogo que nunca apaga e que ilumina caminhos. Jogam-me água. Os que se importam logo desistem e os que apenas não ligam o suficiente se utilizam das situações. Sinto o peso de me sentir solitário em uma existência compartilhada por bilhões.

– Você vai sentir esse peso. Vive no mesmo mundo que eles. Carrega o inevitável fardo de compartilhar seus êxitos e revezes.

Penso nos outros que ousaram ter coragem em épocas mais sombrias e continuaram lançando-se em horizontes densos e escuros, engolidos por violentas tempestades, resistindo, sobrevivendo, minuto a minuto, entre a vida e a morte. Ansiando pelo futuro e contando apenas com a sorte. Sobreviviam pelo ofício, pela recompensa ou pelos que os esperavam? Penso nos que pensaram além de si mesmos, nestes raríssimos que deixaram o egoísmo de lado e se preocuparam primeiramente com a missão do que com os louvores individuais. Penso ainda que nenhum pensamento é único e a repetição é a única tendência infinita na existência, pelo menos enquanto existirmos. Vai desistir da sua vida como se ela não se importasse? Fortaleça-se!

– Você vai sentir esse peso e vai decidir. Chegará o momento em que vai entender se vai se erguer ou se vai sucumbir.

As dúvidas serão incontáveis, o conselheiro avisou, mas se a missão deve ser cumprida é porque talvez exista algo maior do que o próprio amor? Quiçá para uns, certamente não para outros. Silêncio do conselheiro compartilhado por aquele que foi aconselhado. Se existe algo maior, ele sente que deve descobrir e resgatar. Conclui descuidadamente com uma frase de efeito: aquele que sacrifica a felicidade individual para que o mergulho nos aprendizados seja intenso e lúcido o bastante será recompensado e nas profundezas de nossos próprios lagos, enfim, poderá achar suas próprias respostas, acaso não seja assim tão raso. Risca um S.O.S na areia e pensa em quantos pedidos de socorro foram feitos nos areais, céus e mares. Quantos pediram ajuda e morreram antes dos heróis chegarem?

– Você vai sentir esse peso, garoto.

Disse-me, entretanto, certamente sem notar que doze fios de cabelos grisalhos despontavam em minha cabeça. Sou contra comemorar novos aniversários para que eu nunca mais envelheça. A idade atual se esvai, assim como a chama da vela, sim, ela ainda queima e sobrevive diante de outra aurora, defronte a outra despedida. Regente da madrugada, príncipe de melhores horas, ele se levanta poderoso e aproveita o breve momento de reinar. Sabe que eventualmente vai padecer. Está cônscio da possibilidade de falhar. Dragão das manhãs, réprobo do crepúsculo, quase sempre me senti fora do lugar. Segui sentindo na pele todo o mundo que nunca me sentiu, notando e abraçando quem não faz questão de se importar. Sofro a angústia inevitável de ser quem eu fui e choro. Às vezes a comoção abarca o Universo e às vezes resumo a felicidade em um verso solitário que escrevo quando estou sozinho. Às vezes a vida o fustiga e o frustra. Às vezes é melhor continuar na busca. As fatalidades exteriores não existem? Qual é o verdadeiro sentido que nos guia?

Sinto o peso do que não vejo e ainda vive em mim. E sinto os desejos que tenho desde que nasci. E sinto o ensejo do caminho que escolhi. Eu vou carregar esse peso. Verei de perto situações degradantes, cafajestes, trastes, viciados e bajuladores. Superarei o medo e não vou me acovardar. Vou ver a maldição do mundo e me recordar dela em uma lembrança olfativa e adocicada que me causará ânsias de vômito. E vou observar o caótico cenário político e diversos documentários e crises e fins de mundo tão terríveis e chocantes quanto à continuidade da vida. A alma agora se embriaga, mas a essência antes perdida, parece-me, enfim, encontrada. Ninguém vive nesse mundo longe dos perigos. Podemos evitar e chamamos de inevitável. Desvios de rotas são imperdoáveis. Choro melhor quando choro sozinho.

Dirijo meu carro e os olhos marejados tornam as luzes de faróis parecidas com as estrelas. Ofereço um breve aceno tentando entretê-las. É uma metáfora literal, mas vejo a vida conforme atravesso uma nova porta. Alguém situado lá em cima me nota? Retorno-me ao ponto de não retorno, ignorando a placa da proibição. Cada olho enxerga uma realidade diferente. Há tantas realidades assim? O que você seria sem as pessoas que você conheceu? Eu perdi a minha pedra de signo e o meu dado de vinte faces. Nunca mais me encontrei. Nunca mais encontrei os objetos. Aguento o dia árido. Vou sobreviver hoje mesmo tendo sentido o peso. Vou entender que a minha felicidade depende do que faço de mim e, assim, farei algo. O protagonismo, a vela, o fogo, a vida, o jogo, o que sufoca e o que nos torna leves, as responsabilidades e quem decidimos ser, o gosto podre de fracasso, a inebriante sensação de vencer. Muss es sein? Es muß sein! Tomas não tinha certeza. Quanta certeza cada indivíduo pode ter? As mortes de todos os antecessores e parentes queridos, as vidas inúteis de tanta gente que se machuca sem nunca ter merecido, as traições, as angústias, eu quero carregar esse peso. O inferno, a luxúria, a oportunidade não é menos do que o que vejo. Perito em enfrentar os problemas, eu me ergui fora de lugar. Não existe moldura qual eu possa me encaixar?

E o cansaço de alma que me persegue avisa que espera por uma chance de me sobrepujar e me vencer. Sinto-me triste, exausto, cansado e indefeso. Ainda assim, eu vou me levantar e lutar. Eu decidi carregar esse peso.

E o conselheiro sorriu com sinceridade em resposta. Sussurrou sua confissão:
– Essa sempre foi a minha aposta. Confia no teu coração.

E as luzes piscam para àqueles que sempre estão com os olhos acesos nas janelas amarelas das cidades. Não importa a carga, ele quer carregar o peso. Essa é a sua única verdade.

Antecessores

Aos novos desafiantes se apresentam geralmente os velhos desafios. Quase todos se deparam com grandes problemáticas, dramas, questionamentos intelectuais, morais, emocionais e, creio que talvez se demorar em uma espécie de meditação nesta mutação de busca por um ponto de equilíbrio seja um grande desafio, entretanto, é provavelmente um daqueles passos gigantes que damos nas caminhas fundamentais.

Erro frases, erro palavras, perco-me do que torna meu texto nexual, sim, às vezes me perco e às vezes perco além da minha própria pessoa. Olho de fora como se fosse mesmo impossível me reconhecer por dentro. Há algo de errado? Não, não existe algo definido e por silogismos não me defino também. Acertei quando tive convicção dos meus equívocos e me peguei falhando quando estava presunçoso sobre o que não podia ser diferente do que eu imaginava. Sempre pode. Quantos antecessores quebraram a cara antes? Quantos tantos almejaram escrever livros e falharam? Quantos tantos almejaram escrever e sucederam? O resultado final importa?

É pelo que sintetiza a paixão e exulta o amor. É a coragem de viver e dar um novo passo, fazer algo realmente único e especial. Se nunca consegui, só nunca consegui até hoje e tenho uma vida como oportunidade.

Os outros realmente influenciam na extensão do meu sentimento?

Não deve ser assim. Temos pessoas que nos empurram e que nos puxam, mas dependendo da sua perspectiva, você pode enxergá-las de maneira invertida. Entregaria tudo por algo? Desistiria de tudo por um sonho? Morreria, antes da hora, acaso precisasse para que os seus ideais alcançassem após a morte algo que nunca alcançariam em vida? Quantos fizeram o mais difícil? Quantos hesitaram e falharam? Quantos hesitaram e venceram a hesitação? Como agiram aqueles tantos que estiveram por aqui antes? Quem é capaz de enxergar suas tantas nuances? Quem um dia vai ser capaz de determinar o seu alcance? Vá e vá longe.

A tremedeira nas mãos e nas pernas não é um sinal de desistência.

Quando me pego trêmulo pela ansiedade dos novos desafios, eu geralmente sorrio. É o que me coloca de volta em mim. Quando o meu coração se acelera e eu fico ofegante, eu sussurro para mim, para que essas batidas, esse tumdum tumdum apenas continue, para que eu possa continuar vivo. Quero viver e ter a consciência de que não tenho apenas sobrevivido. Quero ver o que sonho nas noites pelos dias estar cumprido. E realizar minhas coisas e viver minhas histórias, pois os contos nascem dos nossos corações estrelas. A última ambição do sonhador é uma recompensa que nunca poderá obtê-la?

Ainda assim, eu sonho do meu quarto. Destes meus tantos devaneios que cruzam essas incontáveis madrugadas nunca estou farto. Imagino-me, refaço-me, torno-me mais forte para conquistar meus objetivos. Talvez o mundo todo ainda se demore em olhar para o meu sorriso.

Na contracapa de um livro, numa revista conceitual ou até mesmo na televisão. Se aquele tumdum tumdum continuar, quem sabe onde vou parar, quem sabe o que vai ser do meu coração? Só que ele é forte e pressinto que vou sobreviver. Olho e creio que vejo, pergunto-me, quantos tantos aguentaram antes de você?

Tumdum-tumdum-tumdum. O mundo aguarda minha próxima investida.

Tumdum-tumdum-tumdum. Ainda tarda para a minha despedida.

Tumdum-tumdum-tumdum. Coragem. Abandone tudo o que te prende. É tempo de se arriscar.

Tumdum-tumdum-tumdum.

É a tradução do coração.

Você ainda pode continuar.

Siga em frente até o dia em que falhar.

Neblina Espessa

Essa neblina espessa, veja, eu sinto que posso tocá-la. Ontem senti sua falta pelos quatro cantos da nova casa. Esta casa atual é muito maior do que a outra, mas às vezes sinto saudades de quem eu era. Estranho, eu sei, como quem quer forçar o inverno em plena primavera. Inadequado, eu sei também, tal qual vestir uma antiga roupa que já não cabe mais, mas a gente possui essa estranha mania de querer o que se quer, não é? E às vezes aposta muito nos outros e pouquíssimo na nossa própria fé. Roupas ultrapassadas, apertadas, antigas. Talvez seja melhor doá-las. Memórias desgastadas e coisas esquecidas, esculpidas relativamente, desejos de fantasmas que estão mortos, mas ainda sentem, o apelo desesperado para que a alma seja notada. Você consegue perceber a sutileza deste sentir? Você consegue sentir falta de quem se foi, respirar com calma, perceber que está tudo bem e sorrir?

Essa neblina espessa, eu sinto que posso tocá-la. A fumaça cansada lançou seu manto sobre a cidade e eu não vejo nada aqui desta sala.

Recordo-me das noites incomparavelmente melancólicas nas quais nunca houve outro ser humano que fosse mais triste do que eu. Recordo-me da voz de Lord Huron falando sobre fantasmas, prazos, fins e tudo aquilo que eu perdia, mas que hoje nem sei se me pertenceu.

A janela anunciava luzes e a cidade piscava convidativa. Esta noite qualquer apelo do corpo para lembrar a alma de que ela ainda está viva.

A janela de novo e minhas epifanias. Nestes vislumbres notei que a vista não era apenas feita de melancolia. Às vezes reparava em alguém que cruzava a rua durante a metade do dia. Mãe e filha de mãos dadas caminhando distraidamente até a igreja, o trabalhador em obras com a camisa suada e pensando em todas as suas despesas ou até mesmo eu de longe, distante da figura que tanto aprenderia a conhecer no futuro. Na janela de mim, observo-me passear com o cão Link pelas esquinas que serão esquecidas. Ele caga, eu recolho as fezes. O mundo seria melhor se todos nós fossem dispostos em recolher as fezes? Acumulo de revezes.

Acordo e vou até outra janela. Bom, eu confesso com uma infelicidade resignada que acordei 5h15 para esperar o nascer do sol. É o meu último dia neste prédio e ontem a noite havia decidido que não perderia essa chance. Quando temos a rara consciência do momento exato de nossas despedidas, podemos ser mais dedicados em torná-las especiais.

Os prédios não falam ou pelo menos eu nunca pude ouvi-los. Acordei cedo, mas ainda antes a neblina havia os engolido. Procurei uma caneta pela casa e não a encontrei. A angústia cresceu em meu coração subitamente. Precisava rabiscar sangue no papel. Esfreguei a ponta da caneta. Havia acabado o sangue. Usei a minha própria tinta para começar o texto até que percebi que não havia mais. Os dedos gelados agressivamente começaram a bater nos teclados e eu já não conseguia parar.

A janela continua perfeita, mas o céu se fez difícil na minha despedida. Talvez eu não mereça hoje essa melhor vista. A neblina e as nuvens esconderam completamente o céu, mas insisto nesta minha fé cega ou na pesquisa científica para acalmar meus nervos e repetir devagar em um intervalo de respiração. O sol aparece amanhã de manhã.

Sinto um calafrio que percorre toda minha pele. Sou quente e feito de emoção, batida rápida de coração e não há invernia que me gele.

Dominado pelo cansaço sinto um frio que ocupa todos os meus espaços e fecho meus olhos tendo a esperança de dormir. Abro os olhos e encaro meu erro crasso, é o dia final para a mudança, eu preciso correr e sair daqui.

Queremos pessoas prontas

Queremos pessoas prontas, eu me peguei dizendo, sozinho na cozinha de casa. A simplicidade da frase me causou espanto e notei que era como dirigir com o vidro do carro sujo por meses, até o dia em que se nota que sim, sempre existiu tempo para jogar água e limpar. Era tão fácil desde o princípio, porém, ainda assim, o vidro ficava sujo e eu corria mais riscos enquanto dirigia. Findo este paralelo metafórico entre vidros, sujeiras, pessoas, atando-me agora ao que prontamente me fez começar este texto às cinco e quarenta e cinco da manhã. Queremos pessoas prontas.

Por natureza, por essência, viciamo-nos na facilidade e criamos bloqueios para os outros, como se um muro erguido impedisse apenas o contato do outro lado. Fingimos, em regra, de maneira incompetente, que a maldade do mundo não nos fere e nem nos alcança. Tudo é tão ridículo quando você aprende, enxerga e finalmente vê. Os velhos quase sempre se recusam a se envolver com os novos, principalmente pelo medo de que toda a sua sabedoria e experiência possam sofram com o questionamento fervoroso da juventude liberal. Os jovens, vocês sabem, desconsideram o velho, pois ignoram o passado de seus avós, de seus pais, do mundo e até os próprios. É mais fácil tratá-los como coisas do que como pessoas, é mais fácil personificar a frieza do fingimento sobre coisas que aconteceram, mas é melhor fingir que não, do que sentir e encarar o endurecimento pela dor que traz a lição. Quantas mentiras foram contadas, quantas verdades escondidas, quantas vezes, apenas talvez, você poderia ter sido mais sincero e deixou outras pessoas preocupadas? Quantas vezes se entorpeceu para se sentir justiçado? Para que tantas mentiras? Porque queremos que todos nos vejam como pessoas prontas.

Temos o direito e o dever de cometer erros, eu disse e esperei pelo questionamento seco e cheio de incredulidade do meu melhor amigo, mas era óbvio que ele ainda estava dormindo. Anulamos nossos erros tentando normalizar todo tipo de situação. O bom senso alheio morreu e é mais fácil fingir que o nosso também. A maioria só luta quando a vitória é certa. Somos esses seres patéticos? O que é essa ânsia fervorosa por errar, por sair, por cair na cama de uma pessoa estranha, por se sentir bonito, por ser sentir querido? Errando das segundas aos sábados para pedir perdão aos domingos ou sequer se desculpar, pois temos o direito e o dever de cometer erros. O que é essa insuficiência de sentir que faz com que nós provoquemos nossos próprios sentidos? O que é essa carência que dita nossas vidas? Que falta de sentidos faz com que a gente passe a desejar sentir mais para que as coisas sejam sentidas como, em teoria, devessem ser sentidas? Secretamente alimento uma vontade de vingar ou ser vingado? Por favor, veja bem, olhe como são, às vezes, obscuras nossas motivações, por serem cruas e equivocadas na essência ou por serem simplesmente invisíveis aos nossos próprios olhos.

Nietzsche tombou no chão do quarto estranhamente ao lado de Maquiavel e de frente para Machado. Empurrei-os para a pilha de descartáveis, doarei, é claro que doarei, esses homens quais não posso estudar ou conhecer, Brás Cubas, porém, fica. Prontos à minha esquerda, Leminski se levanta ao lado de Murakami, Sabino e Pessoa, mas só Caio Fernando Abreu entende um pouco do meu sentimentalismo exacerbado. Tolkien, Clive Staples e King zombam de mim, mas Neil e suas coisas frágeis parecem se compadecer de minha confusão. Será que eles também queriam pessoas prontas? Olho para a nona reunião vermelha, o RG, quatro e cinquenta no preço, seis e doze na hora, tomada, fotos, quarta estação, chaveiros, piscinas, mares, Paris, lugares, barbudos, loiras da odonto, seduções fáceis, sedutor irresistível, ego, eco, extrato bancário, salário, desemprego, revezes, não quero te machucar, nem sempre é força, cabeça erguida, fone, dores, poeira, outro dia a gente tenta, flores, cão, gata, bênçãos irlandesas, cartas, amuletos que dão sorte, mas que os ingênuos não creem, pois pensam que crença é uma questão de meta. Não veem subidas, descidas e curvas, como se o mundo fosse uma linha reta. Que é que te faz ser você? O que alimenta teu desejo por pessoas prontas se ainda está assim longe do que prometeu ser?

De minha parte, eu hoje vejo que não procuro pessoas prontas, embora tenham buscado isso em mim. Daniel, você é perfeito, mas você não comprou sua casa, eu sei, eu também não comprei a minha, mas é que você parou no caminho, não, eu não paguei o meu carro, sim, você pagou o seu, mas eu não quero entrar aí, a economia vai mal, olha, eu sei o quanto pode parecer ridículo, não sabe, você é idiota, você vai me xingar, eu acho que talvez eu também tenha parado na metade do caminho, não, isso não me faz idiota, eu não quis dizer idiota no sentido de burra, apenas idiota por se permitir ser utilizada por diversos titereiros e dançar a canção do mundo pela voz de outros e pelas mãos de outros, eu ouvi e toquei e posso dizer que sua voz é bonita e suas mãos também, mas se você não acredita talvez eu possa cantar com a minha voz feia e você aprenderá então que pode compartilhar a vida com quem realmente te olha e te vê, eu sei, depois disso, confiar nos outros fica mais difícil, alguém que quer nosso bem de verdade é uma sorte profunda ou sinal da existência divina, pois o egoísmo dita o mundo e o mundo dita a vida, e esta vida, creia-me, ela passa rapidamente e meus livros chegam no próximo mês, mas não era em maio ou mês anterior, é que eu fiquei fora de mim, recuperou-se, sim, e é isso, sim, é o que é, como deve ser, um brinde ao que nunca foi, foda-se o passado, um brinde ao que será, isso é algo qual posso brindar, nossas melhores histórias são sempre as mais escrotas, não sei dizer, você é incrível, parece estranho, você está bem hoje, não sei, mas acho que sim, eu tenho ainda todos os sonhos do mundo em mim, isso é legal, cara, siga firme e sem exageros, como salada sem tempero. Está liberado ter alguns devaneios, mas olhos fixos na estrada. Quem não entende a demora exagera no acelerador e no freio, mas você não se esquece de que o importante é a chegada. Eu sei, você está com a razão, obrigado, eu que agradeço, cuidado com crises de ansiedade. O que é agora, eu não sei, ela é inteligente, eu sei, você sabe que eu sei, que bom que nós dois vemos, e entende ela sobre cores, perguntou (perguntei-me), ela é um arco-íris, xará, eu sei que ela está no caminho, pote de ouro para vocês, é o meu palpite, minha aposta, ela não é uma pessoa pronta, tudo bem, eu não sou pronto também.

E continuo, embora com menor incômodo, com a frase flutuando na minha cabeça. Queremos pessoas prontas. O meio do caminho pode ser difícil e muitas pessoas e aqui, eu honestamente digo sem medo de parecer melodramático, muitas pessoas irão te deixar. Se você é alguém de sorte contará com muitas pessoas acenando em sua despedida na entrada da caverna escura e estreita do autoconhecimento. Uma vez dentro da caverna, você aprende ou morre, mas não há vivalma que agora o socorre. Se você se entender, compreender seu papel no mundo, vai se machucar, mudar um pouco, provavelmente vai cair de joelhos e cotovelos, mas se levantará, ainda que sangrando. Eu acredito em você. Uns poucos estão aqui comigo do outro lado te esperando, quanto tempo faz, você não faz ideia, mas não importa, onde estão os outros, olha, você bem sabe e dar a notícia não é algo que me cabe, mas eu e estes podemos lhe dizer que eles tinham outros compromissos.

Queremos pessoas prontas, eu digo mais uma vez, agora puramente por reflexo, mas emendo outras frases e recito: queremos pessoas prontas quando somos arrogantes, assim, mergulhados profundamente nesse ilusório senso de superioridade, pensamo-nos melhores do que os que estão no caminho, andando muitas vezes nas proximidades, lado a lado. Ignoramos o fato de que estamos em constante evolução e nos vemos maiores, não por sermos mais vastos ou largos, mais inteligentes ou rentáveis, apenas por um vislumbre tolo de grandiosidade quando se escapa a compreensão de que a genialidade não cabe em espaços apertados e de que não existe nobreza sem humildade. Na tentativa fútil de sermos diferentes daquilo que sentimos, muitas vezes nossa pose se torna a algoz da nossa personalidade e da nossa voz. Praticamos tanto a nossa pose que ela se torna alimento para os que não encontraram sua própria voz. O currículo conta: idiomas, países, inteligência artificial robótica, politização, diplomas, marca do cigarro, valor do carro, coleção de relógios. Viciados no ópio de experiências alheias, escravizamo-nos para quem quer que nos pareça admirável ou superior desconsiderando muitas vezes nossas próprias ilusões no processo de admiração. Se tivermos sorte, enxergaremos nós mesmos de fora e correremos para dentro, como uma criança muito nova que passa horas longe da família e se pega na urgência de estar em um lugar incontestavelmente seguro. Quando voltamos a nos enxergar somos qualquer coisa, exceto nós mesmos. Os perigos da incontrastabilidade. Adorna-se o externo para que possamos brincar de sermos quem não somos. Sabemos… o interno não aguenta tinta.

Respiro profundamente e sinto uma dor no peito, dane-se, não sou cardíaco. Todo mundo diz que na família eu deveria me preocupar apenas com a memória, pois nossas cabeças não são muito boas ou talvez sejam exageradamente boas, acho que alguns são até cabeçudos. De toda forma, cabeças desgastadas em criatividade, esforços e soluções talvez requeiram melhores cuidados. A maioria é, geralmente, estúpida, assim peço sussurrando, baixinho, para que você tome suas precauções e faça se aproximar da sua vida quem realmente goste de você pelo que você é. Esqueça a ideia de manter todos. Não é possível. Andar ao lado de uma “pessoa pronta” não te faz pronto, andar com alguém que ama não te faz amar e andar com alguém que se dedica a Deus não te faz teísta.

“Mera mudança não é crescimento. Crescimento é a síntese de mudança e continuidade, e onde não há continuidade não há crescimento”. C.S. Lewis.

Bocejo e medito sobre o quanto ainda não dormi. Preciso mudar e crescer. Leio uma oração irlandesa rimada em inglês, sinto fome e bebo a quarta xícara de café, sem açúcar, claro. Passa pela minha cabeça ocupada e esquisita que talvez eu devesse ler, mas não quero e estendo o relato além do que o leitor pede. Queria que alguém me ligasse e oferecesse carona para uma cafeteria, bem agora, às 8h04. Os olhos se fecham, inclusive o esquerdo e o inchaço diminuiu. A fome faz doer o estômago. A vermelhidão nas escleróticas é mau sinal. Devo dormir, não consigo, tento, falho de novo, mas decido sair do computador. Talvez eu nunca mesmo seja uma pessoa pronta, mas tenho aprendido tudo sobre eu mesmo, bons livros e amor. Em todos os momentos possíveis, cônscio, eu sei e sorrio, pois minha alma não se esconde. Um dia essas pessoas prontas vão acenar para mim.

Bem de longe.