Livro na sala
Eu no sofá
Arrumei minha mala
Não volto pra lá
Quem sabe o que sente
Leva na bagagem
O que acontece com a gente
Não é de passagem
Sorriso de comissária
Seja muito bem-vindo
A alma ordinária
clama pelo Destino
Eu e você vivos
em outra estação
Sigo pensativo
na poltrona do avião
Teu rosto
na memória
Teu gosto
velha história
Fito na janela
Luzes fortes da cidade
A vida é triste e bela
Viverei com saudades
Tudo vai como deve
Eu vou também
Ainda volto a ser leve
E sigo além
Diário de bordo
O fim é o começo
Esqueça logo de mim,
mas eu não te esqueço.
Tag: avião
O que tenho tentado dizer
Sabe, eu tenho tentado dizer essas coisas todas, você percebe? Sobre estes tantos ensaios dos quais tenho falado, recorda-se? Claro que sim, eu insisto em perguntar por teimosia, aprendi bem, cascas de cebola e coisa e tal, mas se descascarmos o bastante vamos amadurecer e chorar, certo? Claro, é óbvio, mas a cebola quase sempre faz uma diferença incrível no sabor dos pratos, não é?
Perceba, por favor, eu disse antes que todo mundo sangra igual, você ainda se lembra? Note que existe essa inevitabilidade das coisas inevitáveis, bem como há memória das coisas inesquecíveis, embora eu tenha lido uma pesquisa recente que afirma que somos capazes de adulterar quase trinta por cento de uma memória original. Bem, eu não sei quem são esses pesquisadores, mas torço para que estejam errados, se eu pudesse, você bem sabe, eu preservaria a integralidade de todas as minhas memórias mesmo depois da morte, sim, até o que mais me machucou eu guardaria, veja, o sofrimento já foi necessário como prova da minha existência, não, nada mais adiantava, eu beliscava minha própria pele para saber se ainda estava vivo e sentia uma quebra de expectativa da realidade quando eu mesmo tornava minha vida salgada através do choro. Bem, eu não sei se você vai acreditar nos pesquisadores, mas talvez valha a pena crer neles, afinal, é melhor acreditar em algo do que em nada e confesso que tenho verificado no cotidiano essa espécie de necessidade insistente em confiar nos números. A matemática e os cálculos e os gráficos revelam muitos dados, porém quase sempre ensinam pouco.
Não através de minha própria sensação, mas pela impressão que nutro pelo que é sensação alheia, eu sou Eu e simultaneamente sou outro. Choro pelas dores alheias como se elas não me fossem avulsas e me flagro atônico pela minha capacidade de desdobramento. Minhas lágrimas se unem com o choro de todos os outros seres vivos do mundo e os rios salgados escorrem em mim. Olha, eu talvez esteja me expressando mal, mas eu falo quase sempre tudo nas entrelinhas, eu sei, você é míope assim como eu e não deveríamos exigir tanto de nossos olhos, mas escute o que eu digo quando me calo e não procure oportunismo nas palavras que falo, não, não é um jogo, eu sou só ligeiramente invertido ou só e ligeiramente invertido.
Por sermos gigantescos e expansivos incorremos às contradições e é pela vastidão dessa imensidão de alma que tenho que ficar defronte ao Propósito. Espere, eu estou delirando, veja, antes isso era algo raro, mas começo discorrendo sobre uma coisa que subitamente se torna outra e quebro barreiras, sem me fingir e sem me fugir, cônscio de que sempre me alcanço, mas eu estava tentando falar sobre o que há de mais puro meu em mim e me peguei evitando um assalto óbvio, comemorando três gols no Atlético Mineiro e observando meu irmão fumar na sacada enquanto evitava uma vontade crescente de vomitar, eu sei que soou confuso, mas a vontade era minha e não do meu irmão e você precisa entender que isso nada tinha a ver com o cheiro da fumaça, mas sim com a minha alimentação irregular na última onzena.
Sabe, eu tenho tentado extravasar através dos textos a criatividade da minha alma e digo muito para falar algo que sinto em síntese. Nada em mim é minúsculo, mesmo assim não consigo me ver grande. Imagino-me diante do Propósito ou tagarelando em um bate papo sincero com o próprio Criador e me pergunto sobre essas coisas todas que nos colocam um sorriso no rosto e que nos dão uma satisfação ancestral. Conforto, carinho, prazer, segurança, amor. Que há na vida além do conforto, do carinho, do prazer, da segurança e do amor?
Meus olhos brilham quando falo de livros e você deveria ter sabido, bom, eu acho que na verdade você sempre soube, eu nunca escondi de ninguém, exceto de mim quando não conseguia confessar nem em sussurros o que berrava interiormente no meu âmago.
Olha, eu tenho tentado dizer essas coisas todas, percebe? E tenho sofrido em silêncio, pois acredito que a dor precisa ser entendida para ser compartilhada e, bom, eu não sinto como se os outros pudessem realmente me entender. Sabe, eu às vezes imagino o passado, anos antes, tudo o que houve através das décadas e localizado atemporal, percebo-me no presente momento e compro uma certeza de que existiram milhões de seres incompreendidos. Às vezes soa como um castigo que só piora quando é dito em voz alta, pois à luz da explicação tudo se torna ainda mais baço e confuso aos outros. A minha clareza parece ser antagônica ao meu destino. Esforço-me, mas de quando em quando me sinto só mais um menino.
E invejo o Peter Pan que pôde nunca crescer.
Na Terra do Nunca guardei teus melhores sorrisos, mas o Nunca crescia avassalador para tantas pessoas que tive a presunção de me imaginar capaz de fazer algo pelos tantos que se esquecem da própria individualidade e que refutam qualquer chance de correr atrás dos sonhos. Há resgate para quem não se resgata?
Convenço-me de que o rapaz Davi queria me assaltar. Eu estava “dando mole” ou “de bobeira” na praia às 6h18 da manhã escutando Lord Huron e me sentindo um fantasma personificado, quando ele surgiu subitamente. Não, na realidade não foi tão súbito assim, eu o vi quatro ou cinco segundos antes quando ele descia de uma duna de areia e deslizava rapidamente até o meu encontro, mas o esperei. Como evitá-lo em alguns segundos? Havia motivos para não aguardar por este encontro inédito?
– Oi, eu sou o Davi.
– Oi, Davi.
– Eu tenho 23 anos e você?
– 28.
– Você é daqui?
– Sim.
– Daqui da região?
– Sim. Daqui da região.
– Mora aqui perto?
– Sim. Davi, eu não tenho o costume de parar minhas caminhadas matinais para falar com estranhos. Vou indo pra lá. Pra casa. Tchau.
– Poxa! Vamos conversar mais um pouquinho. Ei! Vamos conversar!
Reli o diálogo sem destacar minhas impressões e nu de todas elas encontrei inocência no papo rápido com o jovem rapaz. Evitei relatar que ele me olhava com uma particularidade estranha e que exibia no cenho uma expressão vitoriosa, como o caçador que observa a caça e sabe que não há como perdê-la. Omiti que Davi estava demasiado perto e que falava como se me sondasse. Sondava? Não sei dizer, mas quando um velho de peito cabeludo passou em uma corrida matinal, eu aproveitei a chance de deixar o rapaz para trás e segui o atlético idoso. Que se passava na cabeça de Davi? Será que era realmente possível que ele estivesse tentando assaltar alguém não muito depois do sol nascer? Se não era este o caso, pergunto-me o que fazia o rapaz na praia? O que ele pretendia com o diálogo? Desconheço o sujeito e não posso supor opiniões por ele, ainda que eu tente.
Sabe, eu tenho tentado dizer essas coisas todas, você percebe? Sobre se colocar no lugar do outro e sobre nunca ser o outro e tenho tentando ainda mais, você nota? Discorrer sobre a importância dos contos de fadas que nos ensinam sobre como é fundamental conhecer um caminho e seguir por ele, ainda que o caminho mude e você mude também. Olha, se toda história contada não revela algo do contador em contraste com o leitor. Olha, se o que aprendemos de um jeito não aprendemos de outro. Olha e veja, se pequenas decisões não fazem grandes revoluções e se os menores já não mudaram o destino do mundo. Olha, eu fiquei acordado até mais tarde para tentar esvaziar meus pensamentos, mas acontece que toda vez que eu os escrevia, eu pensava ainda mais, não só nos pensamentos anteriores como em alguns outros tantos inéditos, assim, sem cessar de cogitar ideias, eu persistia insone e distante das distrações. Quero me distanciar? Certamente não.
Tenho pensado em coisas que são apenas o que são e que jamais se revestiram de outra coisa qualquer. O valor de uma amizade desinteressada, mas nunca desinteressante, destes amigos que se olham nos olhos como iguais e se escutam e se compreendem, sem vícios ou segundas intenções. A relação do satisfeito homem do campo com a terra, o balanço entre a vida e a morte, a idolatria das crianças pelos adultos e o constante desejo dos adultos pela infância. Cada coisa é o que é, ainda que em tudo se detecte uma vontade vadia de ser outra coisa ou de fazer querer parecer outra coisa. Como então solucionamos tantas divagações?
Talvez não sejamos capazes. Não fosse suficiente sentir náuseas por tantas horas consecutivas, percebi-me piorar com a notícia do escárnio dos poderosos que se ergueram acima do Bem e do Mal. Sentenças inéditas envergonham o país e o povo e não parece existir esperança para coisa alguma.
Olha, eu tenho tentado não pensar nos demais males do mundo, você bem sabe, eu tenho tentado não me assustar, mas sonho com guerras e sou acordado por diabos, atormentado por fantasmas e lidero a perseguição contra a minha paralisia. Quero abraçar responsabilidades e fazer algo pelos outros, mas sinto que só sei escrever e, para ser honesto, às vezes até em escrever me falho.
Olha, eu sei que você quer esquecer discretamente e se entregar ao sono e, bom, eu sei que você percebeu tudo o que quase todos ignoraram. Juntos retirávamos do mundo impressões mais positivas do essas todas que foram deixadas para trás. Ainda assim, eu espero que você não durma muito tarde e nem que acorde muito cedo e que se alimente bem e que nunca se esqueça que os animais precisam de atenção. Eu sei sobre algumas de suas impressões, sim, às vezes eu também quero segurar na mão de alguém que não seja falso e correr por um campo verdejante anunciando meu desespero incessante neste mundo sofrível. Paro e respiro. Eu preciso de ar para continuar a uma sequência profusa de pensamentos parecem despencar de uma egrégora invisível. Sinto como se mil espíritos sibilassem algo em meus ouvidos e os batimentos cardíacos das estrelas me convencem do impossível.
Tudo que é agora logo menos será outra coisa
Perco-me na tentativa de preservação
do que não se pode preservar
Temo perder tudo e afundar em solidão
Cesso o raciocínio e me entrego ao acaso
Imagino minhas entranhas se rasgando
E extraio de uma única alma a irrefutável verdade
Ouço sussurros milenares me preenchendo
E extraio de minha própria alma o segredo incognoscível
Fecho os olhos e se revela o mistério da existência
Pulsa em mim o desejo de não ter desejos
Ajoelho-me em uma poça de meu próprio sangue escuro
Compreendo idiomas quais nunca estudei
Transpiro a inutilidade do existencialismo
Sorrio com a gelidez corpórea da estreia de um ator no palco
Caminho pela praia com a serenidade de uma gaivota
O que sou nada representa ou significa
Sou só o que sou até o dia que não mais serei
Sabe, eu tenho tentado dizer essas coisas todas, você percebe? Que me lembro até quando me esqueço e de que o conhecimento que tenho é tão inútil quanto o conhecimento que ainda não tenho. De quando em quando acerto bons textos e eles se apresentam como inutensílios para pessoas que precisam se distrair. Sabe, eu capto gestos, detalhes, observo instantes e os guardo, pois a lembrança discreta pode ser mais valiosa do que a duradoura. Há gestos mínimos realizados em uma noite que deverão sobreviver na memória por anos. Seus olhos sempre olham e enxergam e este é o único orgulho que se pode ter dos olhos. Seus trajes protegem contra o frio perfurante e esta é a única serventia dos trajes. Divido-me entre o sono e a vida e, assusto-me ao pensar que o mundo todo continua acontecendo enquanto eu durmo. Talvez seja a razão por eu dormir cada dia menos.
Sabe, eu tenho tentado dizer essas coisas todas, você percebe? E quando eu saí pela porta da frente foi por necessidade e para que a vida não tire de mim o pouco que sei que preservei apesar dos pesares. Sofro como sofro, amo como amo e escolho como escolho. A coragem de perseguir cegamente uma missão é uma loucura sem precedentes. Ainda assim gargalhei destes dias, apesar dos tantos acidentes. Se um piloto morre nos céus, ele morre fazendo o que amava. Nada mais que o voo lhe importou nem mesmo a própria vida que lá deixava. E alguns o chamarão de herói ou anjo, mas ele era apenas um homem determinado. Algumas pessoas são diferentes, certo, Rivière? Essas noites, hã? Melhor tomar cuidado com elas.
Sabe, eu tenho tentado lembrar de algo que li, bom, que todo mundo é feito de carne e pensamentos e só pode alcançar a beira da extensão, mas nunca o todo. Muitas coisas desaparecem, mas perceba que elas permanecem vivas como marcas de traumas ou de felicidades inenarráveis, veja que muitas coisas desaparecem, mas persistem existindo como símbolos imortais e imutáveis de algo que nos faz lembrar de ser o que somos, ainda que sejamos capazes de mudar sempre. Olha, pois o Sempre é uma esquina repetida e ficaremos uns dias ou uns meses ou uns anos sem nos encontrarmos, mas talvez eu ainda te veja todos os dias, todos os meses, todos os anos, mesmo que você não saiba. Olha, não é sobre vínculos, é sobre a docilidade sutil de algo que se prova e de que não se enjoa, veja, é sobre conforto, carinho, segurança, prazer, amor e muito mais. Olha, é sobre essas coisas que fazem os humanos mais humanos e menos exatos e que nos lembram que somos poeira de estrelas e de que Deus existe e possui um estranho senso de humor e que somos feitos de carne e osso e que inevitavelmente morremos no final, pelo menos por enquanto. Em qual esquina foi que eu li o letreiro com o Nome da Vida? Nada vale a pena. Tudo vale a pena. O amanhã é um deus morto até se tornar presente e realidade. Eu me sinto só, mesmo com tanta gente e praia nessa cidade.
Sabe, eu tenho tentando dizer essas coisas todas.
Mas não tenho conseguido.
Você vai sentir esse peso
– Você vai sentir esse peso.
O conselho soava despropositado, tosco, fora de hora, longe do nexo, ainda assim, os ombros agora carregavam uma bagagem que não havia anteriormente. Por quê? Não sabia dizer. A gente é tudo aquilo que pode? A gente é aquilo que nunca mente?
– Que é esse peso? – Pergunto e me deparo com o silêncio em resposta. O conselheiro se foi.
Contrariado, ergo-me e bebo um copo de água gelada. Até nas noites o clima quente atrapalha. Se pudesse escolher, eu hoje tomaria uma garrafa de vinho tinto. Se eu pudesse me entender, beberia tudo sozinho. A gente é aquilo que nunca mente e o que pesa internamente antes do novo dia ter amanhecido? A sinceridade é o melhor caminho para não sair ferido?
A noite ainda é longa, porém, reconheço-me distante da excitante luz solar. Reconheço-me com estranheza, mas sigo inconsciente sobre a minha beleza. O brilho fraco das estrelas é a única coisa que me impede de (me) apagar. Venço o estado soporífero. Escuto vozes, velozes, pessoas correndo, fazendo barulho, frenesi louco, ebriedade costumeira, cruzam a madrugada, todos atravessam, arriscando-se, morrendo porque desejam viver. Se eu pudesse recuperar tudo aquilo que havia perdido. Se eu ainda tivesse as chaves para voltar para a orgia de meu sofrido mundo proibido. Se as coisas simplesmente não doessem como doem.
– Você vai sentir esse peso e conhecer essa dor.
A dor não se evita. Acendo uma vela e fito a chama acesa. Este momento é meu, embora nada mais me pertença. A luz bruxuleante queima a cera e toda a minha esperança ingênua se projeta na sombra. Não sei explicar, mas falta algo lúcido e próximo, possível e real, algo esquecido e deixado de lado pela prece de horas sombrias. Não posso ser o foco, entretanto, desejo ser a fogueira que queima através do tempo-espaço, o fogo que nunca apaga e que ilumina caminhos. Jogam-me água. Os que se importam logo desistem e os que apenas não ligam o suficiente se utilizam das situações. Sinto o peso de me sentir solitário em uma existência compartilhada por bilhões.
– Você vai sentir esse peso. Vive no mesmo mundo que eles. Carrega o inevitável fardo de compartilhar seus êxitos e revezes.
Penso nos outros que ousaram ter coragem em épocas mais sombrias e continuaram lançando-se em horizontes densos e escuros, engolidos por violentas tempestades, resistindo, sobrevivendo, minuto a minuto, entre a vida e a morte. Ansiando pelo futuro e contando apenas com a sorte. Sobreviviam pelo ofício, pela recompensa ou pelos que os esperavam? Penso nos que pensaram além de si mesmos, nestes raríssimos que deixaram o egoísmo de lado e se preocuparam primeiramente com a missão do que com os louvores individuais. Penso ainda que nenhum pensamento é único e a repetição é a única tendência infinita na existência, pelo menos enquanto existirmos. Vai desistir da sua vida como se ela não se importasse? Fortaleça-se!
– Você vai sentir esse peso e vai decidir. Chegará o momento em que vai entender se vai se erguer ou se vai sucumbir.
As dúvidas serão incontáveis, o conselheiro avisou, mas se a missão deve ser cumprida é porque talvez exista algo maior do que o próprio amor? Quiçá para uns, certamente não para outros. Silêncio do conselheiro compartilhado por aquele que foi aconselhado. Se existe algo maior, ele sente que deve descobrir e resgatar. Conclui descuidadamente com uma frase de efeito: aquele que sacrifica a felicidade individual para que o mergulho nos aprendizados seja intenso e lúcido o bastante será recompensado e nas profundezas de nossos próprios lagos, enfim, poderá achar suas próprias respostas, acaso não seja assim tão raso. Risca um S.O.S na areia e pensa em quantos pedidos de socorro foram feitos nos areais, céus e mares. Quantos pediram ajuda e morreram antes dos heróis chegarem?
– Você vai sentir esse peso, garoto.
Disse-me, entretanto, certamente sem notar que doze fios de cabelos grisalhos despontavam em minha cabeça. Sou contra comemorar novos aniversários para que eu nunca mais envelheça. A idade atual se esvai, assim como a chama da vela, sim, ela ainda queima e sobrevive diante de outra aurora, defronte a outra despedida. Regente da madrugada, príncipe de melhores horas, ele se levanta poderoso e aproveita o breve momento de reinar. Sabe que eventualmente vai padecer. Está cônscio da possibilidade de falhar. Dragão das manhãs, réprobo do crepúsculo, quase sempre me senti fora do lugar. Segui sentindo na pele todo o mundo que nunca me sentiu, notando e abraçando quem não faz questão de se importar. Sofro a angústia inevitável de ser quem eu fui e choro. Às vezes a comoção abarca o Universo e às vezes resumo a felicidade em um verso solitário que escrevo quando estou sozinho. Às vezes a vida o fustiga e o frustra. Às vezes é melhor continuar na busca. As fatalidades exteriores não existem? Qual é o verdadeiro sentido que nos guia?
Sinto o peso do que não vejo e ainda vive em mim. E sinto os desejos que tenho desde que nasci. E sinto o ensejo do caminho que escolhi. Eu vou carregar esse peso. Verei de perto situações degradantes, cafajestes, trastes, viciados e bajuladores. Superarei o medo e não vou me acovardar. Vou ver a maldição do mundo e me recordar dela em uma lembrança olfativa e adocicada que me causará ânsias de vômito. E vou observar o caótico cenário político e diversos documentários e crises e fins de mundo tão terríveis e chocantes quanto à continuidade da vida. A alma agora se embriaga, mas a essência antes perdida, parece-me, enfim, encontrada. Ninguém vive nesse mundo longe dos perigos. Podemos evitar e chamamos de inevitável. Desvios de rotas são imperdoáveis. Choro melhor quando choro sozinho.
Dirijo meu carro e os olhos marejados tornam as luzes de faróis parecidas com as estrelas. Ofereço um breve aceno tentando entretê-las. É uma metáfora literal, mas vejo a vida conforme atravesso uma nova porta. Alguém situado lá em cima me nota? Retorno-me ao ponto de não retorno, ignorando a placa da proibição. Cada olho enxerga uma realidade diferente. Há tantas realidades assim? O que você seria sem as pessoas que você conheceu? Eu perdi a minha pedra de signo e o meu dado de vinte faces. Nunca mais me encontrei. Nunca mais encontrei os objetos. Aguento o dia árido. Vou sobreviver hoje mesmo tendo sentido o peso. Vou entender que a minha felicidade depende do que faço de mim e, assim, farei algo. O protagonismo, a vela, o fogo, a vida, o jogo, o que sufoca e o que nos torna leves, as responsabilidades e quem decidimos ser, o gosto podre de fracasso, a inebriante sensação de vencer. Muss es sein? Es muß sein! Tomas não tinha certeza. Quanta certeza cada indivíduo pode ter? As mortes de todos os antecessores e parentes queridos, as vidas inúteis de tanta gente que se machuca sem nunca ter merecido, as traições, as angústias, eu quero carregar esse peso. O inferno, a luxúria, a oportunidade não é menos do que o que vejo. Perito em enfrentar os problemas, eu me ergui fora de lugar. Não existe moldura qual eu possa me encaixar?
E o cansaço de alma que me persegue avisa que espera por uma chance de me sobrepujar e me vencer. Sinto-me triste, exausto, cansado e indefeso. Ainda assim, eu vou me levantar e lutar. Eu decidi carregar esse peso.
E o conselheiro sorriu com sinceridade em resposta. Sussurrou sua confissão:
– Essa sempre foi a minha aposta. Confia no teu coração.
E as luzes piscam para àqueles que sempre estão com os olhos acesos nas janelas amarelas das cidades. Não importa a carga, ele quer carregar o peso. Essa é a sua única verdade.