Você vai sentir esse peso

– Você vai sentir esse peso.

O conselho soava despropositado, tosco, fora de hora, longe do nexo, ainda assim, os ombros agora carregavam uma bagagem que não havia anteriormente. Por quê? Não sabia dizer. A gente é tudo aquilo que pode? A gente é aquilo que nunca mente?

– Que é esse peso? – Pergunto e me deparo com o silêncio em resposta. O conselheiro se foi.

Contrariado, ergo-me e bebo um copo de água gelada. Até nas noites o clima quente atrapalha. Se pudesse escolher, eu hoje tomaria uma garrafa de vinho tinto. Se eu pudesse me entender, beberia tudo sozinho. A gente é aquilo que nunca mente e o que pesa internamente antes do novo dia ter amanhecido? A sinceridade é o melhor caminho para não sair ferido?

A noite ainda é longa, porém, reconheço-me distante da excitante luz solar. Reconheço-me com estranheza, mas sigo inconsciente sobre a minha beleza. O brilho fraco das estrelas é a única coisa que me impede de (me) apagar. Venço o estado soporífero. Escuto vozes, velozes, pessoas correndo, fazendo barulho, frenesi louco, ebriedade costumeira, cruzam a madrugada, todos atravessam, arriscando-se, morrendo porque desejam viver. Se eu pudesse recuperar tudo aquilo que havia perdido. Se eu ainda tivesse as chaves para voltar para a orgia de meu sofrido mundo proibido. Se as coisas simplesmente não doessem como doem.

– Você vai sentir esse peso e conhecer essa dor.

A dor não se evita. Acendo uma vela e fito a chama acesa. Este momento é meu, embora nada mais me pertença. A luz bruxuleante queima a cera e toda a minha esperança ingênua se projeta na sombra. Não sei explicar, mas falta algo lúcido e próximo, possível e real, algo esquecido e deixado de lado pela prece de horas sombrias. Não posso ser o foco, entretanto, desejo ser a fogueira que queima através do tempo-espaço, o fogo que nunca apaga e que ilumina caminhos. Jogam-me água. Os que se importam logo desistem e os que apenas não ligam o suficiente se utilizam das situações. Sinto o peso de me sentir solitário em uma existência compartilhada por bilhões.

– Você vai sentir esse peso. Vive no mesmo mundo que eles. Carrega o inevitável fardo de compartilhar seus êxitos e revezes.

Penso nos outros que ousaram ter coragem em épocas mais sombrias e continuaram lançando-se em horizontes densos e escuros, engolidos por violentas tempestades, resistindo, sobrevivendo, minuto a minuto, entre a vida e a morte. Ansiando pelo futuro e contando apenas com a sorte. Sobreviviam pelo ofício, pela recompensa ou pelos que os esperavam? Penso nos que pensaram além de si mesmos, nestes raríssimos que deixaram o egoísmo de lado e se preocuparam primeiramente com a missão do que com os louvores individuais. Penso ainda que nenhum pensamento é único e a repetição é a única tendência infinita na existência, pelo menos enquanto existirmos. Vai desistir da sua vida como se ela não se importasse? Fortaleça-se!

– Você vai sentir esse peso e vai decidir. Chegará o momento em que vai entender se vai se erguer ou se vai sucumbir.

As dúvidas serão incontáveis, o conselheiro avisou, mas se a missão deve ser cumprida é porque talvez exista algo maior do que o próprio amor? Quiçá para uns, certamente não para outros. Silêncio do conselheiro compartilhado por aquele que foi aconselhado. Se existe algo maior, ele sente que deve descobrir e resgatar. Conclui descuidadamente com uma frase de efeito: aquele que sacrifica a felicidade individual para que o mergulho nos aprendizados seja intenso e lúcido o bastante será recompensado e nas profundezas de nossos próprios lagos, enfim, poderá achar suas próprias respostas, acaso não seja assim tão raso. Risca um S.O.S na areia e pensa em quantos pedidos de socorro foram feitos nos areais, céus e mares. Quantos pediram ajuda e morreram antes dos heróis chegarem?

– Você vai sentir esse peso, garoto.

Disse-me, entretanto, certamente sem notar que doze fios de cabelos grisalhos despontavam em minha cabeça. Sou contra comemorar novos aniversários para que eu nunca mais envelheça. A idade atual se esvai, assim como a chama da vela, sim, ela ainda queima e sobrevive diante de outra aurora, defronte a outra despedida. Regente da madrugada, príncipe de melhores horas, ele se levanta poderoso e aproveita o breve momento de reinar. Sabe que eventualmente vai padecer. Está cônscio da possibilidade de falhar. Dragão das manhãs, réprobo do crepúsculo, quase sempre me senti fora do lugar. Segui sentindo na pele todo o mundo que nunca me sentiu, notando e abraçando quem não faz questão de se importar. Sofro a angústia inevitável de ser quem eu fui e choro. Às vezes a comoção abarca o Universo e às vezes resumo a felicidade em um verso solitário que escrevo quando estou sozinho. Às vezes a vida o fustiga e o frustra. Às vezes é melhor continuar na busca. As fatalidades exteriores não existem? Qual é o verdadeiro sentido que nos guia?

Sinto o peso do que não vejo e ainda vive em mim. E sinto os desejos que tenho desde que nasci. E sinto o ensejo do caminho que escolhi. Eu vou carregar esse peso. Verei de perto situações degradantes, cafajestes, trastes, viciados e bajuladores. Superarei o medo e não vou me acovardar. Vou ver a maldição do mundo e me recordar dela em uma lembrança olfativa e adocicada que me causará ânsias de vômito. E vou observar o caótico cenário político e diversos documentários e crises e fins de mundo tão terríveis e chocantes quanto à continuidade da vida. A alma agora se embriaga, mas a essência antes perdida, parece-me, enfim, encontrada. Ninguém vive nesse mundo longe dos perigos. Podemos evitar e chamamos de inevitável. Desvios de rotas são imperdoáveis. Choro melhor quando choro sozinho.

Dirijo meu carro e os olhos marejados tornam as luzes de faróis parecidas com as estrelas. Ofereço um breve aceno tentando entretê-las. É uma metáfora literal, mas vejo a vida conforme atravesso uma nova porta. Alguém situado lá em cima me nota? Retorno-me ao ponto de não retorno, ignorando a placa da proibição. Cada olho enxerga uma realidade diferente. Há tantas realidades assim? O que você seria sem as pessoas que você conheceu? Eu perdi a minha pedra de signo e o meu dado de vinte faces. Nunca mais me encontrei. Nunca mais encontrei os objetos. Aguento o dia árido. Vou sobreviver hoje mesmo tendo sentido o peso. Vou entender que a minha felicidade depende do que faço de mim e, assim, farei algo. O protagonismo, a vela, o fogo, a vida, o jogo, o que sufoca e o que nos torna leves, as responsabilidades e quem decidimos ser, o gosto podre de fracasso, a inebriante sensação de vencer. Muss es sein? Es muß sein! Tomas não tinha certeza. Quanta certeza cada indivíduo pode ter? As mortes de todos os antecessores e parentes queridos, as vidas inúteis de tanta gente que se machuca sem nunca ter merecido, as traições, as angústias, eu quero carregar esse peso. O inferno, a luxúria, a oportunidade não é menos do que o que vejo. Perito em enfrentar os problemas, eu me ergui fora de lugar. Não existe moldura qual eu possa me encaixar?

E o cansaço de alma que me persegue avisa que espera por uma chance de me sobrepujar e me vencer. Sinto-me triste, exausto, cansado e indefeso. Ainda assim, eu vou me levantar e lutar. Eu decidi carregar esse peso.

E o conselheiro sorriu com sinceridade em resposta. Sussurrou sua confissão:
– Essa sempre foi a minha aposta. Confia no teu coração.

E as luzes piscam para àqueles que sempre estão com os olhos acesos nas janelas amarelas das cidades. Não importa a carga, ele quer carregar o peso. Essa é a sua única verdade.