Véspera

            Amanhã é meu aniversário e outra vez não haverá celebração. Consterno-me com isso? Se devo reconhecer algo é que o meu aniversário do ano passado foi excelente, apesar dos pesares. Dois mil e vinte foi um ano de altos e baixos, mesmo com a morte de milhares. Eu realmente gostaria que o cenário fosse mais auspicioso e que toda felicidade não me parecesse tão distante assim. Quando o caos do mundo faz um barulho ensurdecedor, você consegue se manter reto e discreto com a memória do amor? Quando tanta gente fala, você se cala e escolhe o que é melhor para você ou fecha os olhos numa jornada hedonista que visa só o prazer? Os outros sabem pouco e pensam saber tudo. Sei que estive perdido e solitário por tantas noites que, às vezes, eu sinto que definhei sozinho em uma madrugada de janeiro e fui esquecido para sempre. Sinto que minha mente de ficcionista, expansiva e dominante, criou novos mundos para que eu pudesse existir, pois mesmo derrotado eu nunca fui o tipo de pessoa que desistia de algo tão precioso como a vida. Por onde andei? Alguém realmente me procurava?

            No início do ano, eu estive presente no hospital no dia do nascimento do meu sobrinho e sempre me sentirei privilegiado por essa oportunidade. Tantas caminhadas na praia das dunas e como consequência apenas sol e alegria nenhuma. Minto. Estar próximo do meu irmão me trazia felicidade e poder abraçar ele e seu filho no dia 04/01/2021 vai ser sempre das maiores coisas frágeis que pude contemplar na vida. É estranho, mas tento me agarrar nestes pequenos milagres para seguir adiante com coragem e não pensar na gigantesca onda que quase me afogou. Fui empurrado até o fundo do oceano por essas coisas horrendas e tudo o que eu sentia na boca era o gosto de água salgada. Lembro-me da nossa primeira despedida, depois de dias, depois de tantos jogos compartilhados e risadas e açaís e sorrisos… ainda meses antes da chega do pequeno Rodrigo. Os rituais lentos de Matheus, os meus gestos rápidos, a cumplicidade de quem se importa em se lembrar ressaltando a importância de não se esquecer no meio do processo. Eu te amo como você é, mas você pode ser melhor, eu disse para ele e absorvi meu próprio conselho. Eu sei que me agrada, mas não sou viciado na imagem que se reflete quando olho no espelho. Fosse eu viciado na própria imagem, tentaria viciar os outros nela também e assim adquiriria coisas por atalhos. O hedonismo me diz que devo desfrutar de todos os prazeres, ignorando todo o resto, se o posso. Sou esta figura narcisa retratada por Wilde a mais de um século? Matheus então zomba de quem precisa tanto da própria imagem. “Não é você que me diz, Dani, que quem só olha para fora nunca enxerga o que existe dentro? Temos defeitos, irmão, mas podemos mais”. Sempre pudemos. Choro ao me lembrar de como alguém esquecido como ele foi capaz de gravar minhas palavras. A ilusão é o primeiro dos prazeres e muita gente se contenta com as mais baratas. Detesto essas ambições tão rasas. Volto na questão. Poderia eu ser retratado por Oscar Wilde?

            A resposta negativa me fez suspirar longamente. Não sou e nunca serei escravo da voz alheia, mesmo que reconheça o poder do privilégio. Todos fitam sua imagem e você tira vantagem destes tantos ébrios. O sorriso pernicioso percorre atalhos e você se pega em um ponto complexo, ainda que simplório. O que pensaria ao fitar seu corpo no próprio velório? Você encara a velha confusão entre quem se perde nas definições de liberdade. Até mesmo os mais livres se pegam, de quando em quando, contemplando seus dilemas morais. Vivi, chorei, acertei e até me emocionei. O que é que faço de mim quando me reconheço? O que eu me represento se nem eu mesmo me obedeço? Fiz de mim o que não soube? Amo-me o suficiente, mas por vezes desejei ser qualquer um que não fosse eu. Busco estradas para locais seguros, mas piso em armadilhas óbvias e me machuco. Os réprobos me salvam, mas querem compensação. Sinto que os compenso, mas será que realmente os compenso? A realidade dói quando sei que mereço coisas boas e elas se afastam. A vida inteira parece um teste de matemática e não tenho minhas professoras para me tranquilizarem sobre os números. Quando o mundo se apaga, vozes traiçoeiras nos empurram. Às vezes os mais próximos nos afundam. Parto para o ataque e me reteso. Não acredito em Deus, mas às vezes rezo. Posso mesmo carregar todo este peso? Admito que tropecei muito e até me perdi de mim. Será que tudo tinha mesmo que ser assim?

No meio desta cronologia maluca, eu me peguei desconhecendo as razões de fazer o que eu fazia. Vivi incontáveis madrugadas de silêncio violento. O tiquetaquear do relógio ribombante transforma meu coração em uma bomba relógio. Se eu explodir esta noite estarei completamente sozinho. Pelo menos meus destroços não machucarão nem mesmo meus vizinhos. Penso mesmo na saúde do vizinho de casa? Eu que sempre fui rei dos céus nunca mais pude abrir minhas asas. Estranho é deixar de pensar nos outros quando os outros sempre estiverem em primeiro lugar no meu coração. Sofri e quase me afundei. Nos meus instantes de força bruta e lucidez, eu nadava até a superfície e recuperava o ar. Algumas pessoas me puxavam de volta para me chutar para o fundo do mar. A solidão crescia no meu peito enternecido. Cada dia eu era mais cônscio da vileza do mundo e da quantidade de perigos. Endureci sem nem perceber. Senti a minha força expansiva de sonhar esmorecer. Talvez a vida não seja muito mais do que sofrer e fazer sofrer. Talvez devamos valorizar os que nos ensinam sobre Beleza e Dor.

Continuei a ver a vida, mas deixei de senti-la. Andava, mesmo que não sentisse minhas pernas. Comia mecanicamente, como alguém que se esquece de que nem todas as refeições carregam o mesmo aroma e sabor. Flutuava pelas noites e dias como uma sombra discreta de mim, eco distante da minha totalidade. Não sentia vergonha de coisa alguma. Não sentia orgulho de coisa alguma. Tornei-me fantasma. Deixei de escrever e senti que havia perdido tudo. Sabia, ainda que não trabalhasse para me evitar, que se me perdesse das palavras estaria desmaiado para com a verdadeira vida. Não tinha força para buscar tudo o que estava longe. O que me fazia continuar? Os milagres que eu já tinha visto ou os que eu esperava ver? O que me levava ao autoabandono?

Até hoje não sei identificar com precisão o momento em que eu me afastava dos caminhos que tanto amei, mas olho para minhas culpas e as enfrento, mesmo que elas ainda me assustem de quando em quando. Nunca clamei por atenção, mas há outras maneiras de gritar socorro. Só não sucumbi pela presença dos meus gatos e do meu cachorro. Só os medrosos podem agir com coragem. Só os valentes caminham para a escuridão quando o resto do mundo congela, mesmo com as pernas trêmulas.

Sou fogo que arde e minha luz iluminou, no mínimo, uma dezena de pessoas, mesmo quando me esqueci do meu valor. Oscilo, mas continuo em frente em nome do amor. A vida é difícil, mas ainda vou existir longe, brilharei no horizonte durante minha próxima cena. Serei sutil e profundo como um poema. Sei que muito errei e que de quase nada sei, mas viver sempre vale a pena.

A virada de fevereiro para março me trouxe de volta velhas novas esperanças e o sabor esquecido de uma felicidade real. Vivi noites de natal em pleno carnaval. Sofri e aprendi. Errei e me aprimorei. Sou o mesmo, mas sou alguém melhor. Sinto que quando olho, encaro o cerne de tudo e me sustento em temperança. Se tenho a oportunidade para mudar tudo com as minhas próprias forças, eu sei que um dia por vez vou perseguir o que sempre quis. Nunca mais nessa vida subestimo a oportunidade de ser feliz.

Sinto falta de muita gente, mas ando destemido e contente, agindo como um adulto, mas mantendo meu coração de menino. Não sei o que haverá pela frente, mas sinto segurança no coração e na mente para correr atrás do meu destino.

Um escritor não se perde da escrita.

Um escritor não se perde da escrita. As palavras se deitam atrás de planuras e ficam temporariamente inacessíveis. A capacidade de contar histórias, a beleza narrada nas peculiaridades e mínimos detalhes, a poesia extraída como uma fruta espremida até o limite e a delícia do suco… isso tudo sempre persiste.

Há esta espécie de sono metamorfoseado em outra coisa assustadora, crescente, ensombrecida. O escritor não sente letargia e nem vontade de dormir, mas assim como quando em sono profundo, ele fecha os olhos e a alma divaga para longe e é preciso tomar muito cuidado. O Vazio representa a ruína de tudo.

Vivo a vida, às vezes, no limiar da realidade e desfruto o prazer supremo ao mesmo tempo em que me puno com a dor eterna. A sensação é livre de vícios, mas estar livre de vícios se parece tanto com um vício que a ambivalência da liberdade nos guia para caminhos tortos e estranhos. O que você faria se não tivesse a obrigação de fazer coisa alguma? No que você pensaria se não influenciassem no seu pensar? Tudo é lícito ou há proibições sensatas? Veja como descascamos nossas camadas e nos aproximamos da nossa essência. Veja quantas normalidades se tornaram estranhas e quantas estranhezas se tornaram normais e ainda assim, é preciso ter paciência.  

Um escritor não se perde da escrita. Ele é capaz de reviver memórias antigas e fixá-las com os dedos no tempo presente. Quando isso é feito e os olhos salgam enquanto os dedos sangram, é sinal de que essas memórias passadas ainda estão vivas e o que foi ainda é e há muito o que dizer sobre o que não foi dito e agora tudo escorre. É preciso correr atrás do que faz o coração acelerar. É preciso insistir no amor. Quando o mesmo processo é feito e os dedos apenas queimam, verifica-se a prova de que os incômodos já não são tão urgentes assim.

Todos têm sonhos, assim como eu, quase todos pretendem realizá-los, bem como também pretendo, mas nem todos chegarão até eles. Devo me entristecer pela hipótese de nunca me concluir em longas conjecturas hipotéticas? Sei que não devo. Tenho a oportunidade de celebrar alegrias inéditas que nunca planejei. Entristeci pelas coisas que não pude mudar e pelas coisas que mudaram enquanto eu mudava. O que realmente existe e fica perto do nosso controle? Para um escritor, você supõe, que são as palavras? O escritor nunca se perde da escrita, mas às vezes se perde de si mesmo e sumir de si mesmo é tropeçar no fundo do poço. A queda brusca, violenta, deixa-nos completamente machucados. Tentações, perigos e ecos de morte surgem como sussurros insistentes. Apavorados, convivemos com o medo de ceder. Quando a mente não pensa, a voz não sai, o escritor secretamente alimenta a esperança de que os dedos gritem o pedido desesperado de socorro e nem sempre é assim que acontece. Por vezes apenas sufocamos enquanto o resto do mundo nos esquece.

Um escritor não se perde da escrita. Está por conta do ofício obrigado sempre a se escrever, descrever, transcrever. Não é preciso caneta, papel, teclado ou computador. Os dedos seguem o ofício de criar textos e organizar palavras, mesmo de olhos fechados, mesmo na inconsciência ou na consistência do amor. Grandes inícios em parágrafos bem estruturados e finais trágicos em histórias surpreendentes. Não, um escritor não se perde da escrita, mas a escrita pode exercer sua função de ocupar distâncias e preencher lacunas. O escritor aprende e ensina através dos tantos textos. Percebe que, embora encontre neles sua própria voz, o desenvolvimento nem sempre é o mesmo. O escritor evolui conforme lê mais, entende mais e se atreve mais. É preciso mergulhar profundamente em mares selvagens e se defrontar com monstros lendários e esquecidos. O escritor é aquele que sabe que todo inimigo pode ser vencido, embora não compense acumular inimizades ao longo da vida.

Porque a vida deveria ser mais feliz, redonda, mas os problemas que nos cercam por muitas vezes não são solucionáveis e temos o hábito sombrio de complicar tudo o que é simples. As tragédias mundanas não se equiparam com tragédias individuais, pois dimensionamos as coisas com os nossos próprios sentimentos e não com o coração do mundo. Respiramos com nossos próprios pulmões e só nós perdemos e recuperamos o controle de situações pessoais. Somos pequenos e consequentemente nossas angústias não podem ser tão expansivas quanto nossos sonhos. Esquecemo-nos que temos a capacidade para existir ao longe, ecoar nossas vozes e risos ao som de fundo do planeta, como pequenas caixas de som, propagando uma mensagem auspiciosa, que reverbera. Temos o potencial para ser a beleza que renasce junto com a primavera. Merecemos muito mais do que uma vida de sacrifícios diários por salários baixos. Merecemos abraçar nosso protagonismo e viver esse heroísmo que já estava escrito nos astros.

O escritor é aquele que sabe que saber muito vale tanto quanto saber nada. É aquele que possui a consciência de que vidas se gastam, amigos se afastam e tudo muda em uma curva na próxima estrada. Há qualquer coisa californiana no meu coração, ainda que eu nunca tenha chegado perto da Califórnia. Há qualquer coisa noctívaga, ainda que eu tenha nascido perto do meio-dia. Transbordo a minha sensibilidade na demonstração absoluta da minha sinceridade e sou retaliado com a precisão certeira de um costureiro hábil. A agulha entra e sai em pequenas incisões e o trabalho, lento e bem feito, não deixa nenhuma ranhura na costura já pronta. Lançam o manto e me cobrem. Percebo-me na escuridão e sinto as pancadas. Observo, absorvo e aprendo, mas no escuro não me defendo. A cabeça de muita gente funciona de um jeito pequeno. Pudera eu ser mais sereno, mas sou como posso no momento em que posso e sinto nos meus ossos essa sensação como um dever. Faço o que for preciso, consciente de que algumas vezes vou perder. O escritor é aquele que sabe que nem sempre poderá se proteger, mas é também aquele que aprende que nem sempre vale a pena atacar. A lei da vida é que tudo muda sempre de lugar.

Respiração profunda em um interlúdio que faço em mim, assim como Tomas se perguntou, eu também me pergunto, tem que ser assim? Pego-me de cócoras afagando a gata e o cachorro. Nenhum ouvido escutou os meus pedidos de socorro. Aprendi e desaprendi, caí e me levantei, sofrendo com influencias sutis, próprias ou alheias, distraído com um ou outro perfume distante, devaneando com memórias distintas ou lastros falsos, seduzido por ritmos confusos em uma canção perfeita, induzido por algo que não vejo, mas que me empurra e me conduz, que me aproxima e me afasta, mesmo em uma simples caminhada, do meu próprio caminho. Aprendi que a gente só se aprende quando ousa existir sozinho, mas que a solidão demasiada é uma doença sem cura. Quem muito se afasta se desacostuma com a ternura. Quem muito se distrai se esquece das responsabilidades dessa vida tantas vezes dura. Nada pode ser tão leve. Nada pode ser tão pesado. Nos encontraremos em um lugar onde não há escuridão e podemos deixar o passado de lado, sem nunca o esquecer. O esquecimento é o primeiro passo para jamais nos aprendermos.

O escritor é aquele que existe atemporal. Um dia eu vou, todos vão, mas talvez meus textos fiquem espalhados em portais da internet e a vida de alguém se valha outra vez em algo profundamente místico que eu disse sem a intenção de dizer e não me lembro. A grande obscuridade dos verdadeiros milagres é que eles acontecem o tempo todo, mas somos incapazes de notá-los. Talvez eu já tenha escrito algo suficientemente poderoso para mudar uma vida e isso baste absolutamente, mas talvez seja tão insubstancial na minha visão que eu enxergue meus textos como um acúmulo de palavras torpes para aliviar meu coração pesado com a responsabilidade crescente de melhorar as coisas.

Que coisas? Ora, todas as coisas! Desde pequeno devaneio com um planeta sem maldades, porém a pungência da maldade é tão expansiva quanto à da bondade. Meu melhor amigo está certo quando diz que a noção da nossa malícia e potencial para fazer vilezas define a nossa postura principal de vida. Isso não quer dizer que não possamos errar, que não sejamos “maus” de quando em quando, muito menos que os nossos erros nos definem, mas significa que temos que olhar para a nossa vida como se ela fosse simultaneamente séria e cômica. Pender muito para um lado só é se desprender da noção de realidade e absorver-se todos os dias em um cotidiano imaginário é uma armadilha perigosa. Mergulhar em um devaneio sem fim faz com que percamos o fio que nos liga ao que existe.

Os perigos são reais, ainda que não soem como promessas de periculosidade. Há quem prefira viver em cenários hipotéticos e falsos, há quem ignore os males do mundo, os presidentes estúpidos, os vírus letais. Sei que faço de mim o que preciso, às vezes para viver, às vezes para sobreviver, porém não arrisco quem eu amo no meio do processo. Nem o cuidado absoluto garante qualquer tipo de sucesso. Nem mesmo mortes garantem o nosso apreço para com a vida. Toda vida passa e em algum momento é esquecida. Sinto-me como uma pilha estourada, vazando, viscosa. Sinto que, às vezes, só a substituição pode me salvar, mas não me substituo e assim a vida continua. Ajoelho-me e rezo por tudo o que firo e por tudo o que me fere. Oro pelos mortos, mas principalmente pelos vivos, pois por eles não há muitos que velem. Respiro profundamente e olho a vida. Vejo detalhes mínimos e inspiro e solto os meus desconfortos. A minha sensibilidade é aguçada, entretanto, creio de maneira retilínea que poucos fariam por mim o que eu faria por eles. Há maneiras de se preservar ou o único tipo de autopreservação é pela exposição completa?

A alma exposta representa nossa liberdade cantada. Alegro-me por coisas que sinto e por coisas que não sei dizer. Passo o café antes do lusco-fusco, sento-me e, enfim, permito-me relaxar. O relógio marca 17:37h e tenho compromissos, porém ainda não consigo cessar de escrever. O escritor é aquele que nunca se perde da escrita e que detesta veementemente se interromper antes do derradeiro final. Não, a vida não exige finais espetaculares, apenas finais bem escritos, histórias bem vividas, amores verdadeiramente amados. Eu recuo e me disponho a viver outros sonhos e correr por tudo o que sempre quis. Certa feita fiz pouco caso sobre ser feliz. Bobagem! A felicidade é tão importante quanto continuar sobrevivendo e da glamourização dos sacrifícios não pode advir nenhuma espécie de bondade ou resultado positivo. A felicidade é o melhor combustível para se sentir vivo!

Um escritor não se perde da escrita, mas muitas vezes nela ele se acha. Encontra-se consigo mesmo e as peças repentinamente se encaixam. As lembranças, as aventuras, os sorrisos, os perfumes, os momentos, tudo isso fica e permanece, mesmo quando a gente parece se esquecer. Esta tarde, tão quente quanto o restante do dia, morre devagar na promessa de uma noite mais fresca. Somos fugazes como o conceito de dia e nos deixamos morrer a cada sono para renascermos ou somos constantes e empedernidos, montanhas resistentes contra as adversidades? Deveríamos apostar mais nas coisas mais importantes que temos em nossas vidas.

Um escritor não se perda da escrita. Palavras se acumulam em linhas e mais linhas de quem tem a necessidade de rasgar o peito para abrir toda a realidade dolorida. Dolorida e colorida, pois onde há dor, há promessas da verdadeira beleza e do amor. Nenhum prêmio chega sem merecimento e ensinamentos obtidos através da dor nos ensinam por muito mais tempo. Crescemos, envelhecemos, sem nunca nos abandonar. O capitão permanece no navio até o dia que ele afundar.

Não sei que efeito novo a vida velha produz em mim, mas sei que me sinto apto a sentir coisas novas. Sei que o verdadeiro amor suporta toda e qualquer tipo de prova. Sei que sei pouco, mas fiquei rouco de tanto gritar minhas verdades. Outro dia desses sorri ao ver minhas frases em outdoors pela minha cidade. Sou a camisa pesada no varal, resistindo contra o vento violento. Tenho o peso das milhões de partes pelas quais sou formado e olho no olho de cada uma delas. Evoluo devagar. Converso com pessoas para entender mais sobre pessoas e busco uma compreensão profunda do que se faz pela sensação única de que deve ser feito. Vejo a espontaneidade. Vejo a malícia. Aproximo-me. Afasto-me. Torno-me mais inteligente, arguto, capaz, mas uma sonolência de ações se apodera de mim. Não quero me tornar inconsciente através de um processo intelectual e consciente que me faça permitir tudo. Não quero aceitar adaptar todos os meus comportamentos e me tornar alguém completamente novo através de uma hipnose dos sentidos. Tanta gente especula e só eu sei o que acontece comigo.

Um escritor não se perde da escrita. Escrever resume tudo o que ele acredita. Dia após dia, os escritores seguem batendo nas teclas e expondo suas opiniões e sentimentos, suas verdades e seus momentos, ansiando para que tudo isso baste. Tornar-me-ei frio? É preciso seguir em frente com coragem e brio. Um escritor é o arco e também a flecha. Lançado ao ar, ele sobre, desce, acerta e se conecta. Ele pode traduzir sentimentos, sensações, como poucos podem fazer. Quer alcançar o que raramente se alcança. Os cantos que conto traduzem diariamente minhas diversas mensagens de esperança.

A respiração cessa. Escuto um som distante. São os passos que se aproximavam no passado e com toda a sutileza do mundo se aproximam novamente. Como senti falta desse jeito de andar. Os saudosistas felizes sempre estarão com o coração cheio, mesmo que vazios de presenças físicas. Lacunas são preenchidas ou não, há tentativas válidas e esforços em vão. A força deste milagre faz com que eu me sinta exposto. Celebro-me por existir completo, mesmo que não me considerem completamente são. Transbordo o tanto de coisas boas que carrego no coração.

Deito na relva e observo as estrelas na escuridão profusa do céu noturno. Recordo-me de quando uma estrela singular surgiu no portão de casa. Não acreditava na força do Universo até ser forçado a crer em magia das estrelas. Antecipei-me ao que viria, sem saber direito o que de algum jeito eu já sabia. A sensação de amor é inigualável e os que vislumbram dessa sorte, precisam saber aproveitá-la. Não se vive mais de uma vez, assim, não há como verificar acertos e erros, exceto pelo próprio limite consciente. Esticar a consciência infinitamente para comportar tudo e transformar sua narrativa própria em um grito de liberdade, parece-me oportuno e instável. Qualquer um pode se convencer de que não há erros e de que tudo é válido. Isso torna realmente tudo válido?

Um escritor é aquele que se perde e se encontra nos próprios delírios. É por natureza um acumulador de martírios. Acumula-se também experiências e através delas nos moldamos. Temos a capacidade de nos transformar com o passar dos anos. Nota-se pelos textos e pelas experiências que é preciso continuar se expandindo. O mundo é quase sempre o mesmo, mas às vezes parece mais lindo. É quando os olhos, sempre distraídos, interrompem-se para cuidar das coisas frágeis. Nossos instintos geralmente fugazes nos tornam apressados, não ágeis.

Um escritor não se perde da escrita. Escreve para lembrar, escreve para esquecer, escreve para se manter afiado e levar ao longe a compreensão de que é possível seguir. O escritor é aquele que faz uma leitura aproximada do que ainda está por vir. Analisa-se o mundo e tudo o que acontece com a passagem dos anos. Como aceitar que o tempo perdido não foi um grande engano? Aprendemos exatamente o que deveríamos, ou seja, não há atrasos e nem antecipações. Como sobreviver sem carinhos e aglomerações? Há quem tenha perdido pessoas próximas sobrevivendo com frustrações e enormes lacunas. Sinto falta da presença do meu irmão, do cheiro do meu sobrinho e da praia das dunas. Ainda assim, celebro-me. Desta vez estou localizado em mim e isso é motivo de alegria. Não há segredos, mas calei meus medos ao me dedicar mais e começar a viver um dia de cada vez. O meu melhor me basta hoje e se não bastar aos outros, bem, eu posso lidar e conviver com isso.

Que me pungem essas ausências distantes? Tenho desenvolvido a minha ingenuidade corajosa. Tenho sentido que a Vida e a Morte vão me colocar à prova. Por vezes sou excessivamente severo, especialmente comigo. Funciono na base da lei do crime e castigo. Creio que tudo o que vai, volta, mas isso nunca me consternou. Antes acreditar de novo na vida, eu sei que vou ter que abrir minhas feridas e permitir entrar mais amor. O que devo fazer quando não sei bem o que fazer? Pedir conselhos aos mais estúpidos que eu? Entrar em uma reclusão prolixa de sentidos e ações? Será que os que se fingem cegos realmente protegerão nossos interesses?

Um escritor é aquele que não se perde da escrita. Os dedos procuram as teclas, mas há coisas mais especiais do que os textos. Quando minhas mãos se encontram com outras mãos, sinto que a vida não é mais um vagar a esmo. O coração acelera em novos ritos de ciúmes. Em um jantar à luz de velas estou a me render pela fragrância de um tipo específico de perfume. Tudo se cala quando o mundo deixa de existir ao redor. Pode ser só por algumas horas, mas a vida se torna muito melhor.

Um escritor não se perde da escrita. Escrevo por necessidade, por prazer, para não perder a doçura, para não perder o amargor. O ato da escrita é representado apenas pela escrita e tudo significa, mesmo quando não significa nada. Sinto que preciso de um tradutor de mim em mim. A minha língua-espada hoje se defende, mas pouco ataca. Há que se procurar estes meios termos ermos.

Confesso que por longos meses temi e me explicar sobre temores é demasiado prolixo. Lidei com tantos fantasmas, eu admito, ao ponto de recear me tornar um. O que garante que não somos o que não queremos ser?

A cautela nos auxilia nos direcionamentos. Por vezes sobrepujamos nossas próprias ações com atitudes desconexas de nós, completamente sem sentido. Há, porém, raros momentos de vislumbres magnânimos, celestiais e aqui existimos como seres sublimes. Somos punidos por nossos equívocos, mas comemoramos devidamente nossos acertos? Realizamo-nos com coerência? Sustentamos a convicção de que por muitas vezes já atingimos certos ideais que vislumbramos? Somos o que podemos ser e temos as características mais nobres que buscamos, entretanto, sem a validação externa, diminuímo-nos, ofuscamo-nos, apavorados com a nossa própria capacidade de brilhar. Tornei-me arisco quando verifiquei a quantidade de aproximações por interesse. Resolvi, porém, os outros não poderiam ser motivo para me desanimar. Aos outros o que é dos outros e a mim o que é meu. Respiro fundo e sorrio. Desejar a felicidade alheia é um dos instintos mais puros e nobres da alma e noto que não sinto ódio nem de quem me odeia.

A vida é um pasto verde que de repente se incendeia, como no quadro em chamas da fazenda na sala da casa dos meus avós, obra de arte que fez nascer a primeira poesia escrita em mim. Estranhos acasos da vida. Encontrei minhas salvações perto da última saída. Tudo acontece de um jeito surpreende e me inflo de coragem para tentar acertar. Aposto alto, mas sinto que estou completamente alinhado com tudo. Ando devagar, mas sei o que quero e o que preciso. Quando tudo me pune, não fujo, enfrento e se não estou pronto para enfrentar agora, sei que eu estarei em breve. Resisto, incertamente intrigado, certamente contente. Falhei como um mestre em falhar, mas reergui quando fiz um tratado de paz com meus problemas: resolverei um por vez. Não posso controlar o que esperam de mim, mas posso cumprir com o que eu mesmo espero.

Um escritor não se perde da escrita. Medos que não sinto me fazem insone. Sinto medo de um dia sentir medo da fome. Há um garoto em um porta-retratos ao lado do teclado qual agora digito. A confiança é um prato que se come frio, é uma frase que eu inventei e o menino gelado ouviu, mas será que nela acredito? Nenhuma conexão rápida me soa natural. Outra vez o que parecia uma brisa fez na minha vida um vendaval. Deixou-me em destroços e assim me tornei desconfiado. Há acertos que parecem feitos para dar errado.

Há outros lampejos de uma felicidade que chega em uma vida além. A vontade insistente de um beijo do qual não se pode mais viver sem. E subitamente vejo sonhos coloridos nos olhos vidrados dos peixes mortos. Fito os espaços brancos a serem preenchidos com a oração dos nossos corpos. Desejo preenchê-las. Quem disse que uma coruja não pode se apaixonar por uma raposa ou por uma estrela?

Sinto medo e amedrontado sigo na direção das coisas que me apavoram. Um escritor não se perde da escrita.

Há dias que brilho como o sol, mas em regra sou como uma esponja que absorve a sujeira dos outros. Um escritor não se perde da escrita.

Quando chove muito e o céu chora por mim, quando o sol queima minha pela apenas para me fazer arder, quando tropeço em um obstáculo que eu inventei, eu me lembro de que um escritor não se perde da escrita.

Assim, sigo firme e escrevo. Quando tudo me pune e sofro com milhares de ataques, eu fecho meus olhos brevemente e me recordo de que um escritor não se perde da escrita. Independente do sente, ele se adapta, é um mestre em seguir em frente e luta por tudo aquilo que acredita.

Chão gelado.

Deita-te no chão gelado de pedra
Recebe os raios solares do verão
Abra os braços para a memória doce

As coisas seguem acontecendo
exatamente como devem acontecer

Dedica teu amor aos que te cercam
Supera tua história de trauma, querida
Liberta-se na imaginação e depois na vida

Não se esquece de que o Tempo é o único algoz
Entretanto viva momento por momento
Essa vida que vivemos passa veloz
Passam até os grandes arrependimentos

Deita-te no chão gelado de pedra
Recebe os raios solares do verão
Desliza os dedos pela aspereza

As coisas seguem acontecendo
exatamente como devem acontecer

Não se esquece de quem te inflama
E por ti arde em desejos
Revira tua vida e tua cama
Clama sempre por teus beijos

Deita-te no chão gelado de pedra
Se esta vida é o teu lugar
A resposta é sempre uma sentença
Tudo bem se você então mudar

Deita-te no chão gelado de pedra
Observa as várias cores da torre de sempre
Acredita no infinito contando estrelas

Lembra-te que tudo um dia se encerra                    
Até a torre de sempre um dia some
bem como todas as certezas

E a Dor surge como um fio de escuridão
no meio de tantas lembranças felizes
Siga em frente com orgulho do coração
que sobrevive com tantas cicatrizes

Antes que tudo isso se acabe
Deita-te no chão gelado de pedra
E nunca se esqueça
As coisas seguem acontecendo
exatamente como devem acontecer.

Problemática

Toda noite antes de dormir sofro com a mesma problemática.

Uma criatura hedionda, sinistra, completamente vil, fita-me no escuro. Não sei dizer se ela é maligna, pois o tipo de tortura que me impõe é apenas verbal. Sussurra nomes antigos e evoca meus fracassos e traumas. O sorriso matreiro brinca em sua face e, às vezes, eu posso jurar que ela é uma espécie de contraparte minha, meu doppelgänger ou qualquer coisa que o valha. Quando estou muito ansioso a criatura parece adquirir mais poder, assim, devaneio com o meu reflexo no espelho do banheiro, penso que ele me lança olhadelas malignas e provocadoras, suponho que ele vá me puxar para dentro e sugar a minha vida e minha alma. Este vazio escuro me cerca e me consome, zomba das minhas decisões e chama o meu nome, eu reconheço a voz distinta e distante, é estranho, mas eu sei que essa noite alguém vai tentar me afogar.

Sobrevivo um pouco mais, eu aprendi a nadar há anos, quando ainda não passava de uma criança chorona. Recordo-me das aulas de natação nas quais eu era o único aluno que não trapaceava nas idas e voltas que a professora exigia. Todos tinham uma vontade urgente em anunciarem a tarefa como finalizada. A criatura alta ainda me fita e eu me torno soturno. Sinto o peso de milhões de dores que deveriam ser alheias e carrego o cansaço desta vida e de outras. Sou equiparado aos réprobos e ninguém me defende. Sou chamado de patético e ninguém me entende. Uma força medonha e invisível se insinua e eu recuo dois passos. A criatura continua prostrada perto da cama. Se há um Diabo, ele dança diante de meus olhos. Se este é o Deus único, certamente ele não é bondoso. Se abro os olhos não vejo nada na escuridão. Se fecho os olhos sinto meu corpo todo tiritar e os meus gritos são sufocados. Emudeço e sinto medo. Eu sei que essa noite alguém vai tentar me afundar.

Sob meus pés lama ou uma espécie de areia movediça, entretanto, passo ante passo, eu sigo firmemente e não me deixo ser sugado e nem provocado pelo que me atiça. Escrevo versos e conquisto minutos valiosos. Desejo viver. Perto dos finais cada segundo conta o dobro. Agora parece que minha vida significa algo, pelo menos por um instante. Escrevo para criar um interlúdio entre a realidade e o medo. Ouço perguntas milenares e impulsos solares me respondem que ainda é muito cedo. Eu sei que essa noite alguém vai tentar acabar comigo.

Brilho raro na escuridão. Memórias de pessoas que me inspiram e iluminam meu caminho ressurgem. Queimo como o sol e o relógio marca meia-noite, eu sei, ergo-me em improbabilidades tão certeiras que dificilmente me creem. Eu sei que essa noite alguém vai tentar me destruir e desconfio de quem seja.

Fito a criatura e me fito também, recito Incenso fosse Música, “isso de querer ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”. Pisco meus olhos e seco o choro. Outra crise de ansiedade e me concentro no que existe ao redor e escuto o ronco do cachorro. Não serei vencido tão facilmente por coisas assim. Como posso parar se ainda existem todos os sonhos do mundo em mim? A poetisa estava certa, o nosso maior medo não é o de sermos inadequados e sim o de sermos poderosos além da conta. Eu sei que essa noite a minha contraparte tentará me convencer de que eu não sou capaz de fazer coisas quais tenho certeza de que sou capaz. Intuo que o negrume da madrugada soará assustador, porém como um vaga-lume vou piscar e lumiar discretamente. Afastarei o breu para quem quer apenas seguir em frente.

Brilho raro na escuridão da existência para quem com paciência busca o seu lugar. A absoluta consciência de quem sabe que precisa se encontrar. Coragem e insistência para quem nasceu para iluminar.

Toda noite sofro com a mesma problemática, mas me descobri capaz de resolvê-la. Agora quando fecho meus olhos só me recordo do inigualável brilho das estrelas.

Eu sei que essa noite alguém vai tentar destruir a minha vida e sei também que vai falhar. Eu sei que muitos falarão sobre minhas ações, mas ninguém vai ser direto e me perguntar. Eu sei que já avisei quem me interessa que não sou feito de aço. Anunciei que ontem mesmo quase tive um colapso.

Eu sei que muita gente sabe de muita coisa e eu não sei de nada. Sei que parece fácil, mas será longa essa madrugada. A criatura vil voltará e sentirei a apoteose de meu abandono. A criatura violenta voltará buscando sangue e será difícil permanecer por uma hora em meu sono.

Toda noite sofro com a mesma problemática, porém aprendi a esperá-la com calma. Uma boa dose de meditação, instantes lúcidos de orgulho do próprio coração e a insistência no que alimenta minha alma.

Eu sei que essa noite alguém tentará me matar, mas eu não vou morrer. Sei que tudo se repetirá, mas eu só preciso aguentar um dia por vez.

Toda noite antes de dormir sofro com a mesma problemática. Um dia isso passa…

Diário de Bordo

Livro na sala
Eu no sofá
Arrumei minha mala
Não volto pra lá
Quem sabe o que sente
Leva na bagagem
O que acontece com a gente
Não é de passagem
Sorriso de comissária
Seja muito bem-vindo
A alma ordinária
clama pelo Destino
Eu e você vivos
em outra estação
Sigo pensativo
na poltrona do avião
Teu rosto
na memória
Teu gosto
velha história
Fito na janela
Luzes fortes da cidade
A vida é triste e bela
Viverei com saudades
Tudo vai como deve
Eu vou também
Ainda volto a ser leve
E sigo além
Diário de bordo
O fim é o começo
Esqueça logo de mim,
mas eu não te esqueço.

Um dia…

É necessário certo desprendimento intelectual para conjecturar hipóteses que sejam desconfortáveis. Olha, eu nasci neste lugar, mas não há nada que me prenda aqui, exceto os falsos aprisionamentos quais são obras ficcionais da minha tão criativa mente e aos quais me submeti. Olha, pois o mundo é grande e nele cabe quase toda ambição que tive, mas veja, há impossibilidades para o plano real das coisas, assim, conjecturo-me em cenários novos, diferentes, distante me vejo e reconheço o desejo, fora cresço, ainda distinto e decente, mas buscando outra vida e a realização de que posso encontrar o rosto que eu tinha antes da criação do Universo.

Sou o que posso e talvez amanhã possa ser mais por sentir que hoje ainda não posso ser exatamente o suficiente. Esta suficiência da qual falo objetiva unicamente o meu próprio agrado e a minha singular satisfação, pois como escreveu outrora Machado em Dom Casmurro, “se só me faltassem os outros, vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo e, essa lacuna é tudo”.

O alcance deles é vasto e o meu pequeno. Quando as luzes se apagam, eu me pego tremendo. Sou obcecado com mudar o mundo para melhor e com a dieta diária do consumo de chocolates amargos e ovos mexidos. Mudo algo verdadeiramente? Faço ou poderei fazer coisas boas? Há os que me dizem de maneira objetiva que eu já faço a diferença e, eu me pergunto, eles geralmente gastam o tempo lendo os meus discursos ou elogiam mais por uma questão de decoro social? Quem sabe eles não pensem “você é péssimo, terrível, horroroso, mas eu sou legal e por isso vou te incentivar, vá, continue tentando, amigo”. Pergunto-me se a avaliação de uma estrela é sincera, pois é desacompanhada de explicações e, agora me pego estático e sério. Os corações das pessoas são cheios de revoltas e mistérios, assim, vejo-me com um desconforto. Nunca posso querer condenar o meu coração pelas inconstâncias e contradições. O que vale no fim do dia é ser honesto, certo?

Supostamente H. D. Thoreau disse certa vez: mais do que amor, do que dinheiro, do que fé, do que fama, do que justiça, dê-me a verdade.

O que significava essa obsessão com a Verdade? Nossa verdade equivale-se ao nosso propósito e tudo o que fica entre a Verdade e o Objetivo é frívolo? Penso, assim, sobre minhas próprias paranoias e principalmente sobre o que considero essencial ao que me condiciona como ser humano. Poderia dizer que viveria sem o ventilador, sem o ar-condicionado, sem comer quaisquer tipos de carne, mas qual é o sentido de abdicar de algo que torna a vida mais prática? Essas coisas todas, essas que tornam a existência facilitada e prática, elas de certa forma se transformam em vícios para que nós deixemos de ver o próprio protagonismo que deveríamos exercer na Vida? Disfarçamos nossas intenções reais inserindo distrações significativas antes delas? O que é que insistimos em não ver?

Vivo como se eu tivesse sempre mais um dia e isso me incomoda. Consciente deste mundo no qual sobrevivo, eu busco não me esquecer da fragilidade da vida. Ontem mesmo era começo do novo milênio e não muitos meses depois a minha avó falecia. Que me comove na morte de uma avó que se preocupava em me preparar tomates com sal e não me comove nas milhares de mortes cotidianas? Que me torna alheio quando, às vezes, sinto que deveria mergulhar no sofrimento mundano? As ideias, os pensamentos, o que me move, é tudo inversamente proporcional ao que me socorre. Tenho gastado minhas reflexões na esperança inútil de que meus pensamentos se esvaziem e de que eu possa encontrar paz após tanto meditar. Encontro-me com mais perguntas e mais contradições e mais percalços. O que é que há de admirável no quintal do vizinho para que ele seja tão exaltado se tenho o quintal tão bonito quanto? Não, não sou eu que faço essas comparações, admito que meu quintal me satisfaz, embora eu esteja notoriamente atrasado para arrancar a promessa de matagal que reside naquelas tantas ervas daninhas, mas suponho-me na existência alheia e busco entender o que por vezes considero incompreensível. A inveja, o vil, o torpe, o maligno, eu já tive vontade de incorporar essas características, porém olho o mundo e o vejo substancialmente negativo. Quão conveniente seria eu se agisse em lapsos de fúria e me tornasse uma espécie de hedonista, um sujeito egoísta, que só existe como indivíduo e individualmente? Há coisas mais importantes que os prazeres. Há funções mais importantes que sentimentos. Há só uma maneira de seguir de peito aberto e com a cabeça erguida, mas há um preço que se paga para ser assim. Eu pago.

Vejo-os, quando não me vejo. Desligo-me da existência para fazer parte de outra coisa e olhar melhor para a minha missão. Como tantos nascem e morrem sem sequer meditarem sobre a missão? A vida pode decorrer tediosa, vaga e sem propósito? Percebo pela minha capacidade de observação que muitos são extremamente dedicados ao trabalho, ainda que o trabalho lhes pague apenas dinheiro e humilhações. Devemos permitir que sejamos humilhados? Aceitam o trabalho, mesmo quando o trabalho é inerente ao declínio, mesmo que notoriamente a noção de cumprir o dever te sopre para a beira de um precipício. Os que caem demoram para se recuperar e os que não caem, creem puerilmente que nunca irão cair, assim, o melhor alimento da ilusão é a expectativa de poder e o melhor alimento da alma é a expectativa da realização de todos os nossos desejos, por mais que os desejos se extravasem na esfera singular da existência e necessitem de outras pessoas para que sejam realizados.

Sei pelo que determinadas pessoas me abandonariam, pois outras me abandonaram. Será que sou capaz de abandonar todos?

Nenhuma dor pelo dano (Leminski).

Há outros mundos além deste (S. King).

Tem que ser assim (M. Kundera).

Desde a infância respeito meus espaços particulares e preciso de doses pontuais de solidão para não amargar a vida. Se tenho o que necessito, eu transbordo a minha doçura e não é incomum que dissertem e narrem por aí sobre o quanto me sentem e me enxergam realmente doce. Sou uma espécie de sujeito comum com ímpetos de heroísmo e desafio improbabilidades fazendo das minhas cenas presentes minhas novas evoluções. Persegui o pôr do sol em janeiro, quando voltava com quase todos os meus melhores amigos para Campo Grande. Dirigi sozinho na ida e na volta, enfrentei a chuva e a neblina e desci e subi várias serras. Ao final do percurso da volta, eu decidi que chegaríamos em casa ainda de noite. Persegui o sol pelo que pareceram horas, mas os minutos nunca haviam passado tão lentamente. Um dos amigos estava exausto e dormia, outro seguia quieto e discreto no próprio canto e havia um que estava ansioso e tenso com a iminente chegada da noite. A escuridão engolia a estrada e o carro branco persistia vivo com os faróis acesos.

Se sei de algo, eu creio que agora possa confessar, é que não sei de coisa alguma. Sou capaz de lampejos de brilhantismo e atitudes heroicas, exagero-me quando me dedico e me sinto inflado por uma coragem tão poderosa e real que me aproxima da Coragem original. Sei também que em diversos momentos sou deprimente, fraco e inútil. Não admito vulgaridades e quando sou vulgar, excedo-me na raiva que sinto por mim, pois há certas características comportamentais quais não posso tolerar no meu próprio ser. Encontro-me com o meu reflexo várias vezes ao dia, seja nos retrovisores ou espelhos ou poças d’água. A autoimagem deve me agradar e se me vejo sujo, eu faço questão de nunca mais enveredar pelos caminhos quais me sujei.

Outra vez me consterno ao me encontrar no meu constante estado soporífero. Perto de sentir o sono, não me permito dormir. O sono é vão e a vida ocorre nos intervalos de meus piores pesadelos e de meus maiores sonhos. Sonhei-me majestade e fiz mais sentido podendo proteger o meu povo. Sonhei-me mendigo e me senti feliz ao dividir minha pouca comida com o meu cachorro. Sonhei-me gota de chuva em queda livre e fui feliz despencando do céu para o telhado de uma casa. Não muito depois evaporei e da minha presença nada restou. Sonhei-me como um gato entediado que dormia dezoito horas por dia. Todos os sonhos me apraziam mais do que a penosa realidade de ser apenas quem sou. Todos os sonhos me faziam ser algo mais, algo que nunca serei.

Trabalhei e ganhei dinheiro, conquistei pessoas, fui amado e juro que até amei. Perdi dinheiro, perdi amores, trabalhei e fui demitido, trabalhei e me demiti, pediram para que eu reconsiderasse o meu pedido de demissão, eu reconsiderei, mas por um dia e me demiti, juntei dinheiro, juntei afeto, fui amado e desamado e, enfim, amei de novo. O relógio da vida conta os meus minutos e eu conto a probabilidade de me entregar aos meus impulsos. Sou insistentemente racional e não me permito ser tão vil. Nunca traí meus amigos e nunca os trairei, ainda que admita, humanamente posso carregar essa vontade que até hoje nunca carreguei comigo. Espero que nunca carregue, mas sei posso. Espero não fazer o mal, mas sei também que posso e que uma atitude muda tudo. Espero não me render, mas sei que a maioria se rende.

O poder é a moeda do nosso verdadeiro valor. O poder aquisitivo, o poder sedutor, o poder do carisma, o poder de mudar o coração das pessoas, o poder de receber tudo e dar tudo. Ter a consciência dos diversos poderes que obtemos durante a vida e não os utilizar para propósitos egoístas, viciosos ou viciados, talvez seja o verdadeiro teste. Qual é o seu maior poder e como você se utiliza dele? É estranho. Quando ajudamos geralmente esperamos a reciprocidade no momento de dificuldade. Se emprestamos, esperamos que quitem as dívidas conosco. Se não há barganha, o que resta? O que entregamos de graça? O que acontece quando somos cônscios de nossos poderes e de nossas capacidades plenas e, subsistimos e insistimos em uma vida na qual sobrevivemos com educação e humildade? O quanto a tranquilidade não é confundida com a passividade? O quanto não nos subestimam por termos a capacidade de escolhermos os nossos próprios caminhos? A maioria dos ciclos se repete, mas por que diabos eu deveria me permitir a viver uma vida cíclica se me falho em repetir nas minhas constâncias e inconstâncias? Mudo e me aceito, ainda que desconfortável. Minhas mudanças são discretas ou extravagantes, mas são minhas. Aqui grita o meu protagonismo. Sinto uma distância incalculável para com as pessoas que vivem a vida para servir outras pessoas. Vivo a dizer que devemos ter sonhos e ambições individuais, mas reconheço, na verdade, que não tenho o direito de opinar sobre existências, sonhos e objetivos que me são alheios.

Pisco os olhos e respiro com somente uma de minhas narinas, pois a outra não é funcional. Observo tudo com um interesse crescente que subitamente se transforma em desinteresse. Capto imperfeições na pele, detalhes nos sorrisos, gestos de ansiedade transparecendo pelas mãos, vejo a roupa marcada pelo suor e noto como me notam. Uns me subestimam, outros torcem o nariz, ainda há quem me ache bonito ou alto e, até mesmo bonito e alto. Sou chamativo e não me envergonho. Sou como sou e não seria diferente, mesmo se pudesse escolher. Quase todos pensam que eu não os vejo, mas eu vejo quase sempre quase tudo.

Só o hoje me interessa. Só o hoje existe. O passado foi o presente antes e o futuro só acontecerá também no presente. Acordo em novos dias e a minha vida é uma página em branco. Ainda tenho a juventude ao meu lado. Posso mudar tudo, posso fazer tudo, posso focar na missão. Posso devanear e aprender novos idiomas, morar em outros países, abarcar novas civilizações e abraçar novas lições. Nunca me busquei, mas talvez este seja o tempo. Nunca busquei viver a minha vida, mas sou inundado por instintos de coragem que me forçam ao protagonismo. Sou dono de mim e mereço escolher o meu caminho. Mereço ser feliz, eu sei, mereço o amor, eu sei, mereço boas pessoas e sou cercado por elas, eu sei também, mas cresce subitamente em mim a ânsia de realizar a missão.

E se o primeiro avião desaparecer no negrume da noite, eu viverei meu luto em silêncio.

E na manhã seguinte sorrirei sabendo que outro avião partirá.

A vida, eu hoje penso, é uma jornada pelos caminhos já percorridos, mas que ainda nos são inéditos. Só eu posso me livrar do próprio tédio e encontrar o meu propósito. Oh, vida! Escuta a minha voz nesta terça-feira? Dê-me uma saída para que eu seja sério até nas minhas brincadeiras e, assim, que eu nunca desista do que me faz ser exatamente quem sou.

Ainda busco o rosto que eu tinha antes da criação do Universo, mas de maneiras diferentes. Pego a chave do meu carro, que é meu porque eu o comprei, e saio de casa. Hoje não vou perseguir o pôr do sol, mas sinto que persigo o meu âmago.

Acelero o meu carro no final da tarde
Os sons do trânsito caótico me confortam
Alegro-me em conviver com a poluição sonora
Obedeço aos sinais e confio no amarelo
A vida é pelo risco, mas dentro desta máquina
Confesso-me muito mais arisco e cauteloso
A vida é o que fazemos dela e isso me inquieta
A vida é o que fazemos dela e sorrio

A vida é o que ainda farei dela
Sigo dirigindo e tendo paciência
Existo como muitos que dirigem
solitários dentro de seus próprios carros
O meu carro branco se parece com outros,
mas certamente é único no mundo
Dentro dele eu sou o motorista
E o carro confere a mim uma função
qual não posso exercer sem ele
Eu me pareço com muitos outros,
entretanto, sei que sou único
Ouvi sobre o Bem e o Mal
E certa feita não vi bem e mal

Não compreendi a praticidade
desta fútil e insensata divisão
Conheci pessoas reais mais mentirosas
que o próprio Pinóquio e jurei
reconhecer o Gepeto vendendo doces em um bar
Ouvi sobre o Bem e o Mal
Ouvi sobre os ensaios de vileza,
mas não vi mais coisa alguma
Vi apenas outros carros
E outros motoristas e outros passageiros
A maioria agora veste máscaras
e isso tudo não é uma metáfora cafona
Vejo uma réstia do pôr do sol
e me recordo de que em janeiro o persegui
Se eu fosse o mago Howl
talvez até pudesse o engolir
Sonho cadente e secreto que sonho
qual sigo sentado no banco do carro
O objetivo ao que me proponho
pode ser difícil, mas nunca caro
Resisto nas hipóteses e nos fracassos
Persisto como quase ninguém persiste
De cabeça erguida, apesar do cansaço
Sinto falta do trabalho e do dinheiro,
mas não tanta falta de mim
Existia àquela época outro jeito?
Sim, não, tanto faz, mas tinha que ser assim
E devaneio-me em jornadas novas
Sou um andarilho sem cura e sem causa
A salvação não é para todos?
Podemos encarar a vida como um jogo?
Encontros como este são cada vez mais raros
Veja bem do que vai abrir mão
Não espero retornos, assim, nada retorna
Complico o simples e simplifico o complicado
Preciso aprender a falar japonês o quanto antes
Sinto vontade de beber água e cerveja
Sinto vontade de compartilhar minha intimidade,
mas nunca desejo dividir meus hábitos

Afaste-se e me deixe em paz
Queria mais café com a chuva caindo
e a paisagem me soou como um quadro
O deserto do Atacama é o mais árido do mundo
E ainda assim nele há vida
Não importa o quão você tenha ido fundo
há sempre uma saída
Tudo pode ser,
desde que tenha paciência
Tudo pode acontecer,
desde que lide com as consequências
Isso é a vida ou é um novo sonho?
Espero comer chocolates amargos ao final do dia
Espero estar em Londres ou em Londrina ou em Lisboa
quando o meu cansaço me roubar a consciência e a subjetividade
Espero ficar aqui onde estou seguro
Espero ficar longe onde estou desprotegido
Espero tudo e admito que não espero nada
Confio a vida nos pneus do meu carro e no motor
Confio que há coisas tão importantes quanto a Felicidade e o Amor
Preciso continuar insistindo neste Amor
Preciso perpetuá-lo, não importa como,
Pois vive em mim o desejo de tornar o mundo mais bonito
Enquanto não encontro soluções medito dentro de meu carro
Dirigindo para um rumo certo ou para o deserto infinito
Quando tudo se perdeu e

me notei distante do que queria
Sussurrei toda minha esperança

defronte aos medos
Um dia.

Caso Perdido

Nasce a alegria em mim e não há lua no céu.

É estranho admitir que é possível ser feliz, apesar dos pesares. É engraçado sorrir e anuir que posso me manter afastados dos bares, ainda que o coração sempre nostálgico poetize o sofrimento gerado pela ausência. Ah! Quantas saudades!

Adotei um ritmo saudosista de vida. Aos domingos e às quintas olho fotos antigas e me lembro de outros tempos. Àquelas épocas me soam agora como memórias de outra encarnação e eu que não me importo com o que a maioria se importa, só gostaria que nem toda lembrança minha fosse esquecida.

Vivemos a tragédia inenarrável do esquecimento. Os mais jovens não fazem questão da recordação e os velhos percebem apenas em idade avançada que talvez seja um pouco tarde demais para assumirem decisões realmente sábias na vida.

O que eu chamo de decisão sábia?

Algo semelhante ao clichê universal de dedicar a vida para algum propósito que realmente legitime o sentido de sentir. É empenhar ânimo, alegria e coragem no que neste mundo te faz sorrir. É alcançar o estado sublime do que te faz bem, realmente bem. Eu escrevo livros e você?

Bom, isso não é sobre ignorar a parte necessária da vida, pelo contrário. O trabalho é absolutamente necessário tanto quanto o dinheiro que se ganha para sobrevivência. Valorizo o trabalho, mas quase nenhum trabalho nos força em nós mesmos, quase nenhum trabalho nos impulsa ao protagonismo.

O que eu chamo de protagonismo? É assumir decisões na vida, sejam elas sensatas ou não, cruéis ou não, mas que busquem, pelo menos na medida do possível, a honestidade. A verdade é mais importante que a coerência.

Há muitos Dorian Gray por aí e outras tantas Sybil Vane. Há tantos que abrem mão da própria vida numa ilusão enfraquecida de que só há vida na vida alheia. Sinto uma vontade de gargalhar, mas reconheço que empalideci. Gostaria de saber o que ia falar, mas suponho que esqueci.

Uma tristeza indefinível recai em meus ossos. Sinto o cansaço de milhares, talvez milhões e penso nos que passaram por isso antes que eu. Sim, os antecessores que me erguem nos dias bons agora me enxotam nos dias desgraçados.

O pescoço travado é o sinal de que há algo incerto? Bobagem! Vincular sinais físicos de fadiga ao emocional é pura suposição. Inventar-me em teoria não me explica e nem me define na prática. Quero uma pesquisa que me desmistifique, mas, por favor, que seja uma pesquisa fática.

Penso sobre os outros que não pensam sobre mim. Sobre insuficiências, sobre vida, objetivo, ambição, dinheiro, ganância. Penso sobre os que não pensam em mim. Já fiz inimigos sem saber que eles existiam e me pergunto se me derramei em algum excesso anuviado de vaidade ou se fui perseguido injustamente?

Sorrio e me sinto feliz. Penso sobre os outros e admito sentir certo conforto em minha solidão. Debruço-me na janela e aguardo pelos pássaros. Penso-os em inglês e em japonês. Pássaro, bird, tori, como você preferir chamá-lo, mas eles passaram em um enorme bando voando convictos buscando um abrigo para a noite.

Você já sentiu a convicção de um animal que sempre sabe o que faz?

Localizo-me no Universo e no meu quarto e na minha expansividade. Vejo-me só, solitário como quase sempre fui, sozinho como quase sempre serei, abandonado me senti, mas torci para não ser achado. Agora torço e realmente me pego com os olhos marejados quando confesso que procurei muitas coisas que sempre existiram dentro. Por quê compramos essa ilusão de que a felicidade só existe no mundo lá fora? O interno não aguenta tinta.

Busca vã que atravessa galáxias em busca de propósito. O meu, real ou sonhado, há anos soa bastante óbvio.

Luas, planetas, luares, galáxias, cometas, magia, reencontros, contos, febril, tonto, eu olhei o mundo com a maior sinceridade possível. Quase enlouqueci quando defronte às tragédias e quase achei que já havia visto o bastante quando vi a felicidade.

Então se lembre equivocadamente, mas se lembre. Deturpe algumas das memórias, mas não se esqueça dessas tantas histórias que criamos. Quanta coisa acontece em menos de um ano, vê?

Achados e perdidos, tesouros esquecidos, túneis secretos, barulhos discretos e silêncios milenares. Os eternos viajantes que vagam conhecem seus lugares?

Chamo a minha tristeza e ela não some. Abraço-a e a chamo pelo nome. Agora só eu posso lidar com essa Tristeza. A importância de personificar os sentimentos próprios ou apenas senti-los, o que fazemos, o que esquecemos, o que sempre está nos definindo.

Muita gente pensa sobre muitas coisas, mas você sabe sobre você. Muitas vezes sabe por antecipação até o que vão dizer. Foda-se a opinião alheia, você brada, mas sua força é na verdade fraca. O peso e a leveza; o lampião mais aceso é às vezes o primeiro que fraqueja.

Caminhada vespertina pela orla da praia. Não há nada aqui que distraia minha alma.

Creio, não sei com que intensidade, não crer em absolutamente coisa alguma. Creio, ainda que fira minha vaidade, ser um viajante perdido no reino dos sonhos e das densas brumas. Reconheço, não sei por qual razão, a minha incoerência e a minha incapacidade de ser sucinto. Vejo-me, oscilo, mas não minto.

A cachoeira dos desastres deságua em minha cabeça e me pego de joelhos. Sinto por vezes uma necessidade de estilhaçar todos os espelhos que existem neste mundo tão imenso. Choro ao me ver inútil, fútil e outra vez me perco em pensamentos.

A tristeza vai e vem.

A felicidade segue o mesmo ritmo também.

Discreto sofro a angústia sólida de ser quem eu sou. Guardo um recado secreto que desvenda tudo o que nesta vida é escravo do Amor.

Continuar, desistir, cantar, partir, ficar, esquecer, chorar, repetir, ver e escalar montanhas metafóricas como quem galga o trajeto correto até o segredo da existência.

Nesta madrugada me pego centrado e em seguida perdido, mas conservo minha paciência e peço para que os impacientes pacientes aguentem um pouco mais e insistam no caminho do bem.

Isso de querer ser quem se é ainda vai nos levar além.

Surge a lua no céu e a capto entre as folhas de uma árvore. Estou feliz. Sou feliz.

Discreto, enfim, sorrio e saio de cena. Meu coração vagante e vadio bate sem parar insistindo que a vida vale o preço da tinta e o peso da pena.

E choro, sorrio, esquento, esfrio. Torno-me Nada e Tudo. Desfaço-me da forma e do conteúdo. Sou Vazio e simultaneamente Preenchido.

Sou o que os céticos e sérios vão chamar sempre de…

Caso perdido.