Caso Perdido

Nasce a alegria em mim e não há lua no céu.

É estranho admitir que é possível ser feliz, apesar dos pesares. É engraçado sorrir e anuir que posso me manter afastados dos bares, ainda que o coração sempre nostálgico poetize o sofrimento gerado pela ausência. Ah! Quantas saudades!

Adotei um ritmo saudosista de vida. Aos domingos e às quintas olho fotos antigas e me lembro de outros tempos. Àquelas épocas me soam agora como memórias de outra encarnação e eu que não me importo com o que a maioria se importa, só gostaria que nem toda lembrança minha fosse esquecida.

Vivemos a tragédia inenarrável do esquecimento. Os mais jovens não fazem questão da recordação e os velhos percebem apenas em idade avançada que talvez seja um pouco tarde demais para assumirem decisões realmente sábias na vida.

O que eu chamo de decisão sábia?

Algo semelhante ao clichê universal de dedicar a vida para algum propósito que realmente legitime o sentido de sentir. É empenhar ânimo, alegria e coragem no que neste mundo te faz sorrir. É alcançar o estado sublime do que te faz bem, realmente bem. Eu escrevo livros e você?

Bom, isso não é sobre ignorar a parte necessária da vida, pelo contrário. O trabalho é absolutamente necessário tanto quanto o dinheiro que se ganha para sobrevivência. Valorizo o trabalho, mas quase nenhum trabalho nos força em nós mesmos, quase nenhum trabalho nos impulsa ao protagonismo.

O que eu chamo de protagonismo? É assumir decisões na vida, sejam elas sensatas ou não, cruéis ou não, mas que busquem, pelo menos na medida do possível, a honestidade. A verdade é mais importante que a coerência.

Há muitos Dorian Gray por aí e outras tantas Sybil Vane. Há tantos que abrem mão da própria vida numa ilusão enfraquecida de que só há vida na vida alheia. Sinto uma vontade de gargalhar, mas reconheço que empalideci. Gostaria de saber o que ia falar, mas suponho que esqueci.

Uma tristeza indefinível recai em meus ossos. Sinto o cansaço de milhares, talvez milhões e penso nos que passaram por isso antes que eu. Sim, os antecessores que me erguem nos dias bons agora me enxotam nos dias desgraçados.

O pescoço travado é o sinal de que há algo incerto? Bobagem! Vincular sinais físicos de fadiga ao emocional é pura suposição. Inventar-me em teoria não me explica e nem me define na prática. Quero uma pesquisa que me desmistifique, mas, por favor, que seja uma pesquisa fática.

Penso sobre os outros que não pensam sobre mim. Sobre insuficiências, sobre vida, objetivo, ambição, dinheiro, ganância. Penso sobre os que não pensam em mim. Já fiz inimigos sem saber que eles existiam e me pergunto se me derramei em algum excesso anuviado de vaidade ou se fui perseguido injustamente?

Sorrio e me sinto feliz. Penso sobre os outros e admito sentir certo conforto em minha solidão. Debruço-me na janela e aguardo pelos pássaros. Penso-os em inglês e em japonês. Pássaro, bird, tori, como você preferir chamá-lo, mas eles passaram em um enorme bando voando convictos buscando um abrigo para a noite.

Você já sentiu a convicção de um animal que sempre sabe o que faz?

Localizo-me no Universo e no meu quarto e na minha expansividade. Vejo-me só, solitário como quase sempre fui, sozinho como quase sempre serei, abandonado me senti, mas torci para não ser achado. Agora torço e realmente me pego com os olhos marejados quando confesso que procurei muitas coisas que sempre existiram dentro. Por quê compramos essa ilusão de que a felicidade só existe no mundo lá fora? O interno não aguenta tinta.

Busca vã que atravessa galáxias em busca de propósito. O meu, real ou sonhado, há anos soa bastante óbvio.

Luas, planetas, luares, galáxias, cometas, magia, reencontros, contos, febril, tonto, eu olhei o mundo com a maior sinceridade possível. Quase enlouqueci quando defronte às tragédias e quase achei que já havia visto o bastante quando vi a felicidade.

Então se lembre equivocadamente, mas se lembre. Deturpe algumas das memórias, mas não se esqueça dessas tantas histórias que criamos. Quanta coisa acontece em menos de um ano, vê?

Achados e perdidos, tesouros esquecidos, túneis secretos, barulhos discretos e silêncios milenares. Os eternos viajantes que vagam conhecem seus lugares?

Chamo a minha tristeza e ela não some. Abraço-a e a chamo pelo nome. Agora só eu posso lidar com essa Tristeza. A importância de personificar os sentimentos próprios ou apenas senti-los, o que fazemos, o que esquecemos, o que sempre está nos definindo.

Muita gente pensa sobre muitas coisas, mas você sabe sobre você. Muitas vezes sabe por antecipação até o que vão dizer. Foda-se a opinião alheia, você brada, mas sua força é na verdade fraca. O peso e a leveza; o lampião mais aceso é às vezes o primeiro que fraqueja.

Caminhada vespertina pela orla da praia. Não há nada aqui que distraia minha alma.

Creio, não sei com que intensidade, não crer em absolutamente coisa alguma. Creio, ainda que fira minha vaidade, ser um viajante perdido no reino dos sonhos e das densas brumas. Reconheço, não sei por qual razão, a minha incoerência e a minha incapacidade de ser sucinto. Vejo-me, oscilo, mas não minto.

A cachoeira dos desastres deságua em minha cabeça e me pego de joelhos. Sinto por vezes uma necessidade de estilhaçar todos os espelhos que existem neste mundo tão imenso. Choro ao me ver inútil, fútil e outra vez me perco em pensamentos.

A tristeza vai e vem.

A felicidade segue o mesmo ritmo também.

Discreto sofro a angústia sólida de ser quem eu sou. Guardo um recado secreto que desvenda tudo o que nesta vida é escravo do Amor.

Continuar, desistir, cantar, partir, ficar, esquecer, chorar, repetir, ver e escalar montanhas metafóricas como quem galga o trajeto correto até o segredo da existência.

Nesta madrugada me pego centrado e em seguida perdido, mas conservo minha paciência e peço para que os impacientes pacientes aguentem um pouco mais e insistam no caminho do bem.

Isso de querer ser quem se é ainda vai nos levar além.

Surge a lua no céu e a capto entre as folhas de uma árvore. Estou feliz. Sou feliz.

Discreto, enfim, sorrio e saio de cena. Meu coração vagante e vadio bate sem parar insistindo que a vida vale o preço da tinta e o peso da pena.

E choro, sorrio, esquento, esfrio. Torno-me Nada e Tudo. Desfaço-me da forma e do conteúdo. Sou Vazio e simultaneamente Preenchido.

Sou o que os céticos e sérios vão chamar sempre de…

Caso perdido.

Antecessores

Aos novos desafiantes se apresentam geralmente os velhos desafios. Quase todos se deparam com grandes problemáticas, dramas, questionamentos intelectuais, morais, emocionais e, creio que talvez se demorar em uma espécie de meditação nesta mutação de busca por um ponto de equilíbrio seja um grande desafio, entretanto, é provavelmente um daqueles passos gigantes que damos nas caminhas fundamentais.

Erro frases, erro palavras, perco-me do que torna meu texto nexual, sim, às vezes me perco e às vezes perco além da minha própria pessoa. Olho de fora como se fosse mesmo impossível me reconhecer por dentro. Há algo de errado? Não, não existe algo definido e por silogismos não me defino também. Acertei quando tive convicção dos meus equívocos e me peguei falhando quando estava presunçoso sobre o que não podia ser diferente do que eu imaginava. Sempre pode. Quantos antecessores quebraram a cara antes? Quantos tantos almejaram escrever livros e falharam? Quantos tantos almejaram escrever e sucederam? O resultado final importa?

É pelo que sintetiza a paixão e exulta o amor. É a coragem de viver e dar um novo passo, fazer algo realmente único e especial. Se nunca consegui, só nunca consegui até hoje e tenho uma vida como oportunidade.

Os outros realmente influenciam na extensão do meu sentimento?

Não deve ser assim. Temos pessoas que nos empurram e que nos puxam, mas dependendo da sua perspectiva, você pode enxergá-las de maneira invertida. Entregaria tudo por algo? Desistiria de tudo por um sonho? Morreria, antes da hora, acaso precisasse para que os seus ideais alcançassem após a morte algo que nunca alcançariam em vida? Quantos fizeram o mais difícil? Quantos hesitaram e falharam? Quantos hesitaram e venceram a hesitação? Como agiram aqueles tantos que estiveram por aqui antes? Quem é capaz de enxergar suas tantas nuances? Quem um dia vai ser capaz de determinar o seu alcance? Vá e vá longe.

A tremedeira nas mãos e nas pernas não é um sinal de desistência.

Quando me pego trêmulo pela ansiedade dos novos desafios, eu geralmente sorrio. É o que me coloca de volta em mim. Quando o meu coração se acelera e eu fico ofegante, eu sussurro para mim, para que essas batidas, esse tumdum tumdum apenas continue, para que eu possa continuar vivo. Quero viver e ter a consciência de que não tenho apenas sobrevivido. Quero ver o que sonho nas noites pelos dias estar cumprido. E realizar minhas coisas e viver minhas histórias, pois os contos nascem dos nossos corações estrelas. A última ambição do sonhador é uma recompensa que nunca poderá obtê-la?

Ainda assim, eu sonho do meu quarto. Destes meus tantos devaneios que cruzam essas incontáveis madrugadas nunca estou farto. Imagino-me, refaço-me, torno-me mais forte para conquistar meus objetivos. Talvez o mundo todo ainda se demore em olhar para o meu sorriso.

Na contracapa de um livro, numa revista conceitual ou até mesmo na televisão. Se aquele tumdum tumdum continuar, quem sabe onde vou parar, quem sabe o que vai ser do meu coração? Só que ele é forte e pressinto que vou sobreviver. Olho e creio que vejo, pergunto-me, quantos tantos aguentaram antes de você?

Tumdum-tumdum-tumdum. O mundo aguarda minha próxima investida.

Tumdum-tumdum-tumdum. Ainda tarda para a minha despedida.

Tumdum-tumdum-tumdum. Coragem. Abandone tudo o que te prende. É tempo de se arriscar.

Tumdum-tumdum-tumdum.

É a tradução do coração.

Você ainda pode continuar.

Siga em frente até o dia em que falhar.

Crônica Pregressa #4

22 minutos

Não há comoção que me demova e nem desconforto que me mova. Sou o que costumo dizer, mas, evito falar para que possa viver sem ter a pressão das minhas próprias palavras em mim. Sou sério e cético, geralmente. Creio, porém, nas humanidades mais desumanas e nos sentimentos alheios e invariavelmente afetados, como o amor. É impressionante o que se faz em nome de uma emoção, principalmente quando você batiza o sentimento com um nome. Você pronuncia o nome, o rosto se vira em sua direção e ali há o universo. Você repete o nome numa despretensiosa e chuvosa manhã de sábado qual acorda antes e observa o amor dormindo tão pacificamente ao seu lado. Lá fora chove, mas dentro o silêncio é adequado. De repente você sorri, pois descobre que o amor também ronca. A memória de uma lembrança perfeita se vai, pois perfeição não há e nem existe continuidade que continue suficientemente. O relógio é inimigo. Tudo se desfaz lentamente.

A narrativa se quebra e as reviravoltas da vida te atingem. Você recomeça, mas nunca mais ousa a batizar alguém com o nome do sentimento. Há agora uma quantidade impressionante de cicatrizes antigas, todas as rugas de cansaço, todos os receios tão sutilmente invasivos flutuando pelo espaço. Você sabe que tudo está visível para quem enxerga bem. Há ali o resto do que ainda não se foi, mas discretamente também persiste a sombra do que um dia foi amor. Eu que olho e vejo, percebo-a como algo tão inútil, mas dou de ombros por saber que não há ali nada de errado. Todos somos insistentes no que já deveria estar ultrapassado. Sou especialista em gente, principalmente em pessoas amargas e gargalho sonoramente de quem cria personagens fictícios para se representar numa realidade que parece insuficiente. Confesso que rio deles, pois às vezes me pego nesta identificação recíproca. Ser um não basta. Queremos nos fragmentar para que exista uma chance mínima de que alguém compreenda nossas completudes. Somos seres vastos, raramente magnânimos, mas quando inundados por uma coragem súbita, buscamos imediatamente o que faz palpitar mais rápido o coração.  

Quando eu era novo, eu apenas agia ou deixava de agir. Nunca havia tempo para o pensamento demasiado e qualquer distração se preenchia de maneira suficientemente confortável. Quando a dor ocasionada pela solidão era exagerada, isolava-me em outros mundos. Fechava portais quais nunca deveriam ter existido em reinos distantes, vertendo-me numa utopia na qual eu personificava a coragem infinita do próprio menino que carregava a chave do reino dos corações. Gostava da poesia de sentir que as coisas estavam próximas, mas incrivelmente distantes. Não me cumpri em ideais, mas idealisticamente me tornei incomparável. Fiquei mais velho e mais sério. O trabalho dignifica o homem, mas o desgasta. Envelhecer dói e há ressentimento para com o relógio, principalmente quando sentimos que a vida está mais rápida ou lenta do que deveria. Captamos a distância entre nossas oscilações e compreendemos nossos ritmos, mas não existem mais ações impensadas (não completamente). Sabemos e temos a segurança do conhecimento, entretanto, às vezes escolhemos o escuro e a ignorância. Quando novo eu, não raramente, derramava-me por hábito. Não havia caixas guardadas em um porão secreto com coisas não ditas àqueles que se revelaram menos amigos do que supus que seriam; dos amores que não amaram; das pessoas que compraram a ilusão de que seriam amadas por mim e se decepcionaram. Não havia preocupação com quem se transformasse em cinzas no meio de meus tantos fogos cruzados e manias inequivocamente equivocadas, mas ao mesmo tempo tão singularmente minhas. Evito hoje o rastro de destruição por onde passo, mas talvez o faça mais por conta de meu próprio cansaço. Conservo minhas excentricidades de outros tempos e as novas, mas não sou mais qualquer príncipe de melhores horas. Meço sucessos e fracassos sem ter a menor preocupação em diferenciá-los. O que se parece às vezes é igual. Tudo termina de modo semelhante para os que se cumprem e para os que falham.
Metáfora prolongada do brilho das estrelas. Outra vez calei minhas palavras com a impressão de que deveria dizê-las.

Pensei numa frase extremamente romântica, mas escolhi o silêncio, pois à época achei melhor não dizê-la. Quem sabe o receio tenha me afastado do brilho espetacular das estrelas. Como aprendi em quase um ano sobre mãos, sorrisos, bocas e gestos. Como entendi que quase ninguém me apreciaria por me derramar do meu jeito honesto. Bebi para perder o rumo, quando senti que o rumo era muito certo e quando não havia rumo, solidarizei-me com estranhos desconhecidos que sempre andam preguiçosamente em círculos sem saber para onde vão. Quando não havia ninguém, eu amei vultos que encontrei pelo caminho. Era preferível a ilusão do que crer em uma jornada feita por um homem sozinho. No Distrito Federal andava mais vagarosamente até o meu quarto de hotel e esperava que uma das tantas portas escancarasse de súbito um destino novo pra mim. Nada nunca acontece, exceto internamente. A imaginação inata é o nosso maior escudo contra a realidade, mas por vezes com certa crueldade deforma e piora o que já nos ataca. Um vacilo ao coração e repentinamente você se mata.

Mas olha… Tenho cinco minutos para terminar o texto e não sei o que devo escrever. Mas olha, eu queria te dar uma dica, mas nenhum conselho se fixa. Não sei o que vou fazer. Olha como a vida muda e as pessoas insubstituíveis somem e outras aparecem e você se acostuma. Olha como fica a saudade daquela memória embaçada na densa bruma. 

Tive 22 minutos para dizer algo precioso, mas falhei. Observei a minha família e fui feliz. Comi pizzas e fui feliz. Na minha boca, porém, gostaria de sentir outros sabores nos quais se reinventam vidas e renascem esperanças em amores… Queria acreditar que… Que entender a razão de… Queria querer menos do que quero ou queria querer diferente do que espero. Posso ser feliz de outros jeitos, eu sei, mas ainda não assimilei tanto assim como. Tenho um comichão que me faz estremecer. Queria ter um amigo para conversar, mas hoje é daqueles dias que todos desapareceram. Bebo água sozinho. Bebo vinho sozinho. Logo mais beberei cappuccino (também sozinho) e vou dormir com o meu cachorro. Eu morri hoje, mas amanhã eu não morro. 

Para mudar o mundo

Para mudar o mundo, primeiro, é preciso admitir a insatisfação com as coisas. Se este não é o cenário ideal, reconheça ansiar por mudanças, reconheça-se em seu papel de mudar seu destino e tome bastante cuidado, pois o sonho de mudar o mundo às vezes muda o sonhador (Humberto Gessinger).

Não se preocupe por estar no chão. Os melhores e os piores já caíram e estiveram exatamente no mesmo lugar qual você se encontra. Não é sobre permanecer a vida inteira em sobriedade, imaculado ou livre de constrangimentos e consternações. É sobre entender a leveza e o peso, a liberdade e a responsabilidade, a tristeza e a felicidade, o caos inevitável e a paz absoluta. Certas coisas vão se repetir até o nosso derradeiro amadurecimento. Quando aprendemos, é raro cometermos os mesmos erros.

Se os homens fossem constantes seriam perfeitos, afirmou Shakespeare, mas somos factivelmente falhos e frequentemente nos despedaçamos. Quase todos se escondem com o pretexto de não conseguirem enxergar, mas quando todas as máscaras caem, você realmente fixa os seus olhos naquilo que vê?

Recolher cacos é sempre um trabalho penoso e talvez você dê sorte em estar perto de alguém que saiba tomar cuidado com vidro, pois é difícil remontar, reerguer, reestruturar. Quando ainda no chão suas pontas afiadas estão prontas para ferir a mão de quem ousar tocar, de quem se sujeitar, de quem for suficientemente louco para cruzar os limites e assumir o risco de sangrar por você. Se você é o catador de cacos, eu recomendo apenas cuidado com as hemorragias. Há quem fira pelo prazer de ferir.

A névoa densa outra vez toma conta da cidade e você deixa de enxergar todo o resto. Sua angústia cresce quando repentinamente só enxerga seu próprio corpo, estranho, irregular, quase como se ele não lhe pertencesse. Você age, mas não se sente dentro de você. Uma espécie de monstro estranho tomou posse e suas memórias sobre certas fases são ébrias e entrecortadas. Descemos uma cortina diante das coisas que evitamos ver nos outros e em nós mesmos. Despreparados para a troca de pele, escolhemos nos igualar por baixo, fazemos incentivados por pessoas alheias, guardamos souvenires em recônditos secretos, sejam eles materiais ou não. Você pode se esconder bem, mas nada te afasta do seu reflexo. No fundo, você sabe bem quem é. Talvez secretamente acredite que mereça um prêmio ou uma punição pelas suas atitudes. Se eu não mudar o mundo talvez o mundo me mude. Alguns se regozijam pela autopercepção, outros cantam em voz alta suas lamúrias. Você se envergonha ou se orgulha de quem é?

Levantou já? É manhã outra vez. A escuridão que sugeria infinitude, enfim, morreu. Você estava apavorado, eu notei, mas me imaginou mais forte do que eu realmente sou, pois o negrume da madrugada jogou seu pesado cobertor em cima de mim também e eu senti uma sufocante vontade de chorar. Não chorei. Fiz-me forte, pois eu precisava ser o mais forte, orgulho bobo de quem se levanta quando o resto se deita, de quem se ergue para o sacrifício, de quem levanta correndo para ouvir o barulho estranho dentro de casa, de quem sabe que deve ser o primeiro na linha de combate, ainda que este geralmente seja o primeiro a morrer.

Você sente medo e eu sinto também. Não é diferente com qualquer outra pessoa. Muda-se a forma do medo, mas eventualmente todos se sentem aterrorizados. Já congelou em momentos decisivos? Fraquejou quando deveria ser mais agressivo? Acalme-se e respire fundo uma, duas ou dez vezes. Você é mais do que suas angústias e revezes. Está pronto para tentar de novo? Recomece amanhã. Por hoje, eu apenas recomendo que faça um café forte, beba muita água, coma sua comida favorita, saboreie chocolates amargos, veja a beleza de algo sutil e durma bem.

Nós somos o que fazemos de nós e não o que deixamos fazerem de nós. Não seja aquilo que tentam fazer de você e seja mais amplo nas suas angústias. Você não é o único atormentado por problemas e com a vida complicada. Não pode sofrer pelos outros, mas tampouco deve agir como se você fosse a única pessoa relevante no universo inteiro. Evite o pedantismo, precaução com os silogismos, cuidado com o que come, pois é preciso cuidar do corpo e da alma. Vá em frente, vá sempre, mas vá com calma. Acorde após sua curta noite de sono, consciente de que amanhã tudo começa de novo, até o dia em que, enfim, a vida termina. Para mudar o mundo é preciso estar bem disposto, então, acorde e lave o rosto, desafie o que lhe foi imposto como sina.

Para mudar o mundo precisamos aceitar quem somos, sem perder, entretanto, a consciência de que sempre é possível mudar para uma versão melhor. Seja você.

Queremos pessoas prontas

Queremos pessoas prontas, eu me peguei dizendo, sozinho na cozinha de casa. A simplicidade da frase me causou espanto e notei que era como dirigir com o vidro do carro sujo por meses, até o dia em que se nota que sim, sempre existiu tempo para jogar água e limpar. Era tão fácil desde o princípio, porém, ainda assim, o vidro ficava sujo e eu corria mais riscos enquanto dirigia. Findo este paralelo metafórico entre vidros, sujeiras, pessoas, atando-me agora ao que prontamente me fez começar este texto às cinco e quarenta e cinco da manhã. Queremos pessoas prontas.

Por natureza, por essência, viciamo-nos na facilidade e criamos bloqueios para os outros, como se um muro erguido impedisse apenas o contato do outro lado. Fingimos, em regra, de maneira incompetente, que a maldade do mundo não nos fere e nem nos alcança. Tudo é tão ridículo quando você aprende, enxerga e finalmente vê. Os velhos quase sempre se recusam a se envolver com os novos, principalmente pelo medo de que toda a sua sabedoria e experiência possam sofram com o questionamento fervoroso da juventude liberal. Os jovens, vocês sabem, desconsideram o velho, pois ignoram o passado de seus avós, de seus pais, do mundo e até os próprios. É mais fácil tratá-los como coisas do que como pessoas, é mais fácil personificar a frieza do fingimento sobre coisas que aconteceram, mas é melhor fingir que não, do que sentir e encarar o endurecimento pela dor que traz a lição. Quantas mentiras foram contadas, quantas verdades escondidas, quantas vezes, apenas talvez, você poderia ter sido mais sincero e deixou outras pessoas preocupadas? Quantas vezes se entorpeceu para se sentir justiçado? Para que tantas mentiras? Porque queremos que todos nos vejam como pessoas prontas.

Temos o direito e o dever de cometer erros, eu disse e esperei pelo questionamento seco e cheio de incredulidade do meu melhor amigo, mas era óbvio que ele ainda estava dormindo. Anulamos nossos erros tentando normalizar todo tipo de situação. O bom senso alheio morreu e é mais fácil fingir que o nosso também. A maioria só luta quando a vitória é certa. Somos esses seres patéticos? O que é essa ânsia fervorosa por errar, por sair, por cair na cama de uma pessoa estranha, por se sentir bonito, por ser sentir querido? Errando das segundas aos sábados para pedir perdão aos domingos ou sequer se desculpar, pois temos o direito e o dever de cometer erros. O que é essa insuficiência de sentir que faz com que nós provoquemos nossos próprios sentidos? O que é essa carência que dita nossas vidas? Que falta de sentidos faz com que a gente passe a desejar sentir mais para que as coisas sejam sentidas como, em teoria, devessem ser sentidas? Secretamente alimento uma vontade de vingar ou ser vingado? Por favor, veja bem, olhe como são, às vezes, obscuras nossas motivações, por serem cruas e equivocadas na essência ou por serem simplesmente invisíveis aos nossos próprios olhos.

Nietzsche tombou no chão do quarto estranhamente ao lado de Maquiavel e de frente para Machado. Empurrei-os para a pilha de descartáveis, doarei, é claro que doarei, esses homens quais não posso estudar ou conhecer, Brás Cubas, porém, fica. Prontos à minha esquerda, Leminski se levanta ao lado de Murakami, Sabino e Pessoa, mas só Caio Fernando Abreu entende um pouco do meu sentimentalismo exacerbado. Tolkien, Clive Staples e King zombam de mim, mas Neil e suas coisas frágeis parecem se compadecer de minha confusão. Será que eles também queriam pessoas prontas? Olho para a nona reunião vermelha, o RG, quatro e cinquenta no preço, seis e doze na hora, tomada, fotos, quarta estação, chaveiros, piscinas, mares, Paris, lugares, barbudos, loiras da odonto, seduções fáceis, sedutor irresistível, ego, eco, extrato bancário, salário, desemprego, revezes, não quero te machucar, nem sempre é força, cabeça erguida, fone, dores, poeira, outro dia a gente tenta, flores, cão, gata, bênçãos irlandesas, cartas, amuletos que dão sorte, mas que os ingênuos não creem, pois pensam que crença é uma questão de meta. Não veem subidas, descidas e curvas, como se o mundo fosse uma linha reta. Que é que te faz ser você? O que alimenta teu desejo por pessoas prontas se ainda está assim longe do que prometeu ser?

De minha parte, eu hoje vejo que não procuro pessoas prontas, embora tenham buscado isso em mim. Daniel, você é perfeito, mas você não comprou sua casa, eu sei, eu também não comprei a minha, mas é que você parou no caminho, não, eu não paguei o meu carro, sim, você pagou o seu, mas eu não quero entrar aí, a economia vai mal, olha, eu sei o quanto pode parecer ridículo, não sabe, você é idiota, você vai me xingar, eu acho que talvez eu também tenha parado na metade do caminho, não, isso não me faz idiota, eu não quis dizer idiota no sentido de burra, apenas idiota por se permitir ser utilizada por diversos titereiros e dançar a canção do mundo pela voz de outros e pelas mãos de outros, eu ouvi e toquei e posso dizer que sua voz é bonita e suas mãos também, mas se você não acredita talvez eu possa cantar com a minha voz feia e você aprenderá então que pode compartilhar a vida com quem realmente te olha e te vê, eu sei, depois disso, confiar nos outros fica mais difícil, alguém que quer nosso bem de verdade é uma sorte profunda ou sinal da existência divina, pois o egoísmo dita o mundo e o mundo dita a vida, e esta vida, creia-me, ela passa rapidamente e meus livros chegam no próximo mês, mas não era em maio ou mês anterior, é que eu fiquei fora de mim, recuperou-se, sim, e é isso, sim, é o que é, como deve ser, um brinde ao que nunca foi, foda-se o passado, um brinde ao que será, isso é algo qual posso brindar, nossas melhores histórias são sempre as mais escrotas, não sei dizer, você é incrível, parece estranho, você está bem hoje, não sei, mas acho que sim, eu tenho ainda todos os sonhos do mundo em mim, isso é legal, cara, siga firme e sem exageros, como salada sem tempero. Está liberado ter alguns devaneios, mas olhos fixos na estrada. Quem não entende a demora exagera no acelerador e no freio, mas você não se esquece de que o importante é a chegada. Eu sei, você está com a razão, obrigado, eu que agradeço, cuidado com crises de ansiedade. O que é agora, eu não sei, ela é inteligente, eu sei, você sabe que eu sei, que bom que nós dois vemos, e entende ela sobre cores, perguntou (perguntei-me), ela é um arco-íris, xará, eu sei que ela está no caminho, pote de ouro para vocês, é o meu palpite, minha aposta, ela não é uma pessoa pronta, tudo bem, eu não sou pronto também.

E continuo, embora com menor incômodo, com a frase flutuando na minha cabeça. Queremos pessoas prontas. O meio do caminho pode ser difícil e muitas pessoas e aqui, eu honestamente digo sem medo de parecer melodramático, muitas pessoas irão te deixar. Se você é alguém de sorte contará com muitas pessoas acenando em sua despedida na entrada da caverna escura e estreita do autoconhecimento. Uma vez dentro da caverna, você aprende ou morre, mas não há vivalma que agora o socorre. Se você se entender, compreender seu papel no mundo, vai se machucar, mudar um pouco, provavelmente vai cair de joelhos e cotovelos, mas se levantará, ainda que sangrando. Eu acredito em você. Uns poucos estão aqui comigo do outro lado te esperando, quanto tempo faz, você não faz ideia, mas não importa, onde estão os outros, olha, você bem sabe e dar a notícia não é algo que me cabe, mas eu e estes podemos lhe dizer que eles tinham outros compromissos.

Queremos pessoas prontas, eu digo mais uma vez, agora puramente por reflexo, mas emendo outras frases e recito: queremos pessoas prontas quando somos arrogantes, assim, mergulhados profundamente nesse ilusório senso de superioridade, pensamo-nos melhores do que os que estão no caminho, andando muitas vezes nas proximidades, lado a lado. Ignoramos o fato de que estamos em constante evolução e nos vemos maiores, não por sermos mais vastos ou largos, mais inteligentes ou rentáveis, apenas por um vislumbre tolo de grandiosidade quando se escapa a compreensão de que a genialidade não cabe em espaços apertados e de que não existe nobreza sem humildade. Na tentativa fútil de sermos diferentes daquilo que sentimos, muitas vezes nossa pose se torna a algoz da nossa personalidade e da nossa voz. Praticamos tanto a nossa pose que ela se torna alimento para os que não encontraram sua própria voz. O currículo conta: idiomas, países, inteligência artificial robótica, politização, diplomas, marca do cigarro, valor do carro, coleção de relógios. Viciados no ópio de experiências alheias, escravizamo-nos para quem quer que nos pareça admirável ou superior desconsiderando muitas vezes nossas próprias ilusões no processo de admiração. Se tivermos sorte, enxergaremos nós mesmos de fora e correremos para dentro, como uma criança muito nova que passa horas longe da família e se pega na urgência de estar em um lugar incontestavelmente seguro. Quando voltamos a nos enxergar somos qualquer coisa, exceto nós mesmos. Os perigos da incontrastabilidade. Adorna-se o externo para que possamos brincar de sermos quem não somos. Sabemos… o interno não aguenta tinta.

Respiro profundamente e sinto uma dor no peito, dane-se, não sou cardíaco. Todo mundo diz que na família eu deveria me preocupar apenas com a memória, pois nossas cabeças não são muito boas ou talvez sejam exageradamente boas, acho que alguns são até cabeçudos. De toda forma, cabeças desgastadas em criatividade, esforços e soluções talvez requeiram melhores cuidados. A maioria é, geralmente, estúpida, assim peço sussurrando, baixinho, para que você tome suas precauções e faça se aproximar da sua vida quem realmente goste de você pelo que você é. Esqueça a ideia de manter todos. Não é possível. Andar ao lado de uma “pessoa pronta” não te faz pronto, andar com alguém que ama não te faz amar e andar com alguém que se dedica a Deus não te faz teísta.

“Mera mudança não é crescimento. Crescimento é a síntese de mudança e continuidade, e onde não há continuidade não há crescimento”. C.S. Lewis.

Bocejo e medito sobre o quanto ainda não dormi. Preciso mudar e crescer. Leio uma oração irlandesa rimada em inglês, sinto fome e bebo a quarta xícara de café, sem açúcar, claro. Passa pela minha cabeça ocupada e esquisita que talvez eu devesse ler, mas não quero e estendo o relato além do que o leitor pede. Queria que alguém me ligasse e oferecesse carona para uma cafeteria, bem agora, às 8h04. Os olhos se fecham, inclusive o esquerdo e o inchaço diminuiu. A fome faz doer o estômago. A vermelhidão nas escleróticas é mau sinal. Devo dormir, não consigo, tento, falho de novo, mas decido sair do computador. Talvez eu nunca mesmo seja uma pessoa pronta, mas tenho aprendido tudo sobre eu mesmo, bons livros e amor. Em todos os momentos possíveis, cônscio, eu sei e sorrio, pois minha alma não se esconde. Um dia essas pessoas prontas vão acenar para mim.

Bem de longe.