Sensações.

            Acabo de percorrer o caminho de volta do Bairro da Liberdade. Todos alertam sobre os perigos de São Paulo e eu não relaxo, mas admito que a sensação é ambígua enquanto carrego minhas sacolas pelos metrôs e pelas ruas. Tenho a impressão de que é como trancar toda a casa antes de dormir e, ainda assim, ser surpreendido por um bandido que sai de dentro do meu guarda-roupas. Verifico os armários antes de me deitar, apenas para me sentir ainda mais seguro e durmo com a televisão ligada para evitar a escuridão. Essas sensações antigas retornam junto com os meus tantos pesadelos.

            Notei, ligeiramente abismado, que chamei a cidade de São Paulo de casa. Poderia uma cidade tão agitada servir para alguém tranquilo como eu? Deixo essas questões ridículas e precipitadas para outro momento. Tenho o péssimo costume de deixar toda sorte de coisas para depois e devo me encontrar com a cidade no meu próprio tempo.

Voltei do passeio e trouxe alguns bonecos dos animes que mais gosto, quatro camisetas, bem como três pôsteres que vão se transformar em lindos quadros. Minhas aquisições são positivas e me sinto renovado e feliz pelo passeio. Ninguém me incomoda na ida e nem na volta. Talvez seja por conta da minha altura ou pelo fato de que forço meus músculos e não abro mão de minha carranca irritadiça. É possível que comprem a ilusão de raiva quando olham para a expressão dura de meu rosto, porém desabrocho meus melhores sorrisos assim que me encontro com pessoas. Intuitivamente sei que é muito importante continuar a ser gentil.

A vida vai esquisita e encontro novas maneiras de ganhar dinheiro. Nenhuma delas até hoje me fez feliz. Chego no apartamento e meu irmão está dormindo às 19h00. Nenhum de nós sabe que em um ano e meio ele vai ter um emprego qual ama e menos ainda desconfiamos que ele será pai. Neste instante agradeço o privilégio de desfrutar das coisas presentes. O computador está livre e posso escrever um texto.

Honestamente não me lembro exatamente do que aconteceu depois. Nesta época, tudo detinha a minha atenção na cidade de São Paulo. De quando em quando me levantava animado e passava o dia todo caminhando por ruas extensas e entrando em lojas com cheiros peculiares e tamanhos improváveis. Noutros eu empenhava esforços homéricos para convencer meu irmão a sair comigo e, vez ou outra, era recompensado com sua companhia. Em algumas manhãs e tardes vaguei a esmo, sem medo do perigo, procurando um lugar pacífico para tomar um café e ler um livro. Numa dessas incursões até ganhei uma pedra do meu signo e uma profecia de uma velha esquisita que previu meu sucesso, o que não foi assustador, mas achei de bom tom da parte de uma excelente vendedora. Houve noites quais saí em primeiros encontros na Padaria Palmeiras e olhei pela primeira vez em olhos azuis como o oceano.

Quem diria que meus olhos castanhos se reconheceriam naquela imensidão azulada e profunda. É que carregar uma dor no peito transforma nosso jeito de se mover e até os nossos olhares e acontece que duas dores distintas podem se encontrar como semelhantes, ainda que sejam completamente diferentes na forma. Eu não apostei em nada mais do que a minha própria gentileza e descobriria muito depois só uma pessoa que me fizesse apostar tudo outra vez. De toda forma, estávamos sentados na mesa estreita, meus joelhos batiam em tudo e nos olhávamos. Trocamos nossas histórias, nossas primeiras impressões e onde dois opostos se encontraram como semelhantes surgiu uma fagulha que resultou em uma explosão. Ela havia sido largada pelo noivo semanas antes do casamento e partiria dentro de dois dias, sozinha, para a lua de mel na Austrália. Eu ainda meditava sobre o meu desamor e meu sofrimento no último semestre e me questionava a respeito da durabilidade das relações. Em outros cantos do país outras pessoas passavam por traumas maiores e descontavam em distrações diferentes ou se alegravam por coisas mais discretas e eram felizes por gestos mínimos. Eu não poderia antecipar o que interligaria o meu destino ao de outros.

A vida vai como vai e é inevitavelmente estranha. Creio que na realidade perfeita desta mulher de olhos azuis, ela se casa com o homem com o qual passou anos juntos e vive uma lua de mel incrível e repleta de passeios. Ela certamente não esperava passar a véspera da viagem com um cara que conheceu na noite anterior. Eu certamente não esperava ser o cara da noite anterior e nem esperava estar sentado no sofá do apartamento em São Paulo assistindo Baki na metade do mês de abril. Ainda sem sair do sofá me peguei imaginando a mulher da noite passada descendo sozinha em solo australiano. Um sorriso espontâneo surgiu em meu rosto e naquela noite tomei a vida por inevitável, mas ri de minha própria tolice pela improbabilidade do avião ter chego tão rapidamente em um país tão distante.   

Ainda assim, eu reconheço que tenho falado muito de pessoas, principalmente das outras e, muito provavelmente, discorrido pouquíssimas vezes em retrospectiva pessoal, intransferível, individual. Estive tentando me evitar? Não tenho certeza, nunca fui de fugas, mas suponho que todos sejamos capazes de contradições.

Volto a falar de destinos que se entrelaçam e felicidades inéditas, como as que vivi no meio do agitado ano de dois mil e dezenove e do esquisito ano de dois mil e vinte. Coisas importantes se renovaram dentro de mim e me tornei alguém melhor. Amei e fui feliz como nunca imaginei. Oscilei mais do que pretendia, entretanto, vejo que fui forte como pude, pelo menos na maioria das vezes. Pilotos franceses subitamente me abriram os olhos e não pude deixar de ver o que por tanto tempo evitei.

O mistério do êxito não é tão misterioso assim. Para fazer o que poucos fizeram é preciso fazer o que poucos fizeram. Sorrio com a afirmação boba e estremeço. Os aviões decolam incessantemente e vejo suas luzes fracas iluminando discretamente o ambiente do céu noturno pelo qual passam. Jazo dentro de um deles, ainda que seja sempre incerto o momento, mas me vejo partindo no meio do breu, insistindo sempre em luzes, veja só, essas luzes que brecam a escuridão aterrorizante, essas luzes que nos salvam a todo instante, essas luzes que me seguem e que me preenchem, essas luzes quais me tornam luz também. Diversas sensações sambam alegremente dentro de mim. Sinto que preciso acender as luzes apagadas, trocar lâmpadas, mostrar o caminho. Aqui hoje assim não posso. Aqui hoje assim não consigo.

Tenho a sensação atemporal de que a minha solidão pode me matar, entretanto, simultaneamente vejo que apenas sozinho sou capaz de parar de me esconder das tantas responsabilidades que tenho para com minhas capacidades. Sei sobre o meu tamanho e tenho que ficar longe de casa, seja lá o que me faça sentir em casa, para atingir meus limites e cumprir com meus objetivos. Até onde sei, tenho esta vida para sentir orgulho de minhas capacidades e me derramar neste mundo tão vil, violento e frágil. Confesso que posso ser exatamente como o Universo se parece aos meus olhos e choro.

            Essas sensações antigas retornam junto com meus pesadelos e me defendo em um estado inconsciente. Quando me percebo em pé com os punhos cerrados, flagro-me em um medo descontrolado da morte e um apego feroz pela vida, assim, convenço-me de que continuar vivendo é uma questão de necessidade e que todo esse papo que faz voltas e mais voltas faz algum sentido. Essas sensações antigas retornam, mas quando o mar da escuridão tenta me engolir e me tornar melancólico ou sorumbático, eu sorrio com os olhos na direção qual seguirei. Tenho a sensação de que sou uma luz forte, dessas que cegam momentaneamente nossas visões, em um mundo escuro e esquecido. O meu jeito de existir é continuar convivendo com as sensações e tomando o cuidado para não queimar subitamente. Quem sabe um dia exista mais claridade que escuridão. Quem sabe um dia eu dormirei sem a televisão ligada. Quem é que sabe?

            Um dia…

A última noite

A última noite chegou e eu não te encontrei
Quando você apareceu você era menos você
A última quinzena de sofrimento não foi fácil
Suponho que tenhamos nos transformado
Ainda assim entrei em choque quando te procurei

Que fim teve a mulher que amei?
A última noite chegou e eu não te encontrei
Não havia carinho, amor ou atenção
Estava sozinho com a minha dor
Revisitando tudo o que conseguia
Espelhos, desejos, tudo custa caro,
Camas, terraços, beijos e o sexo no carro
A última noite chegou e eu não te encontrei
Ouvi sua voz falando alguma bobagem
e não admiti que você fosse ela
Não por se fazer coisa frágil
Sim por quase desistir de tudo
Independente da queda
Eu sempre te falei que há
muitas belezas neste mundo
A última noite chegou e eu não te encontrei
Pouca coisa mudou, mas eu mudei e sei
Sou o piloto que gargalha do desafio
minutos antes de chorar rios pela despedida
O segredo é não criar expectativas
A última noite chegou e eu não te encontrei
Refiz rotas mentalmente e abracei o meu sufoco
Não deixe esse tanto virar apenas um pouco
Respeite-se e erga sua voz aos que se fingem surdos
Mostre a beleza da sua forma e do seu conteúdo
Apenas viva extremamente bem
Incenso fosse música e você sabe
Querer ser quem é vai nos levar Além
A última noite chegou e eu não te encontrei
A última noite chegou e eu chorei
E escrevia enlouquecido por horas apenas
para ter a certeza de que não iria enlouquecer
Todo o resto parece me inventar
Espero que você não me deixe apodrecer
Daqui sigo agora completo e sozinho
Não é exatamente reto, mas é o meu caminho
A última noite chegou e eu não te encontrei
Espero que você possa apenas se recordar
das coisas boas que eu também me lembrei
A última noite chegou e a chuva parou,
mas o frio seguiu me congelando
Eu preciso me arriscar para sentir
que meu coração não está parando
A última noite chegou e eu não encontrei você
A última noite chegou e você não me encontrou
A última noite é qualquer coisa que antecede a manhã seguinte
Não viva por migalhas ou e nunca se faça pedinte
Divirta-se e coloque no rosto milhares de sorrisos
Temos amanhãs por alguns bons motivos.

Quem é você?

          Eu havia me classificado para a quarta etapa de um campeonato de videogame. Inadvertidamente um menino de uns 11 ou 12 anos de idade comia Doritos perto de mim e, observava ao meu desempenho no jogo com uma espécie de interesse preguiçoso. A nova geração poderia ser um pé no saco, eu pensei, mas mantive a acidez de meus pensamentos distante da radicalidade com a qual eles se insinuavam. Do lado oposto ao comedor de Doritos, outro menino jogava videogame também, creio que Super Metroid, para Super Nintendo. Costumava durante à infância admirar meus primos Rafael e André, principalmente este último, por ser quem mais se dispunha a zerar os jogos difíceis. Àquela época eu acreditava que crianças mais novas não eram capazes de vencer em determinados jogos, coisa qual descobri pouco tempo depois ser pura bobagem. Uma sirene soou e os jogos todos foram pausados imediatamente. Havia cerca de quinze crianças e eu. Cogitei ser uma criança sem ter me notado assim, confesso, mas não me recordo agora como, mas não sinto como se a minha idade pesasse no ambiente. Parecia, no entanto, somente um daqueles adultos tidos como estranhos, tão deslocados em uma festa que se dispunham a jogar videogame com as crianças. É preciso alimentar simpatia para com quem opta pela honestidade e pelos jogos. A sirene produzia um barulho escandaloso que impeliria pessoas comuns a taparem os ouvidos, mas não foi o que fizemos. Estendemos as palmas das mãos, como quem aguarda um pedaço de pão ou algum tipo de recompensa e, permanecemos calados. Sujeitos altos trajados com uma vestimenta que lembrava uma roupa de astronauta entraram e utilizaram aparelhos que faziam grandes bipes para medir nossas temperaturas. Quando chegou a minha vez, o aparelho reagiu e emitiu um bipado diferente, um bipado que soava como um alerta de perigo. Os astronautas todas entraram em desespero, mas não perderam a organização no Modus Operandi. Aos gritos de isolem as crianças, deixem só o contaminado, traga a outra máquina, eu observei estático o alarde que faziam sobre a minha vida. Não me mexi. Dois astronautas trouxeram uma máquina mais pesada e a posicionaram diante de mim. Ainda estava imóvel. Quando ligaram a máquina, um ruído insistente, chato, iniciou-se. O zumbido durou apenas alguns instantes. Um dos astronautas deu um passo para frente, repousou sua mão enluvada no meu ombro esquerdo e disse: era alarme falso. Você não está com o vírus.

           Andei com rapidez por uma galeria e quando me dei conta, eu estava já em um shopping. Enfurecido com o resultado falso positivo do teste e a acusação da minha irreal contaminação, eu abandonei as outras crianças com os videogames. Tomei uma pequena xícara de café expresso e resmunguei sobre pagar o que havia pago, assim, eu reconheci que, no mínimo, eu deveria ter me negado esta oportunidade. Distraí-me com o pensamento inútil sobre a verdadeira natureza da liberdade. Esta consistiria em ceder aos impulsos ou controlá-los? Deitei, logo na sequência, minhas preocupações todas para algo mais afastado da subjetividade, também me sentia sem paciência para discutir a metafísica, assim, quando a atendente me perguntou sobre a secura do tempo, ganhou de brinde o meu sorriso mais largo e sincero. Eu a chamei pelo nome, ela enrubesceu e, eu sorri mais uma vez antes de me despedir.

            Mal havia me virado para sair do Café do Ponto e, quase trompei com uma vendedora. Eu a conhecia, provavelmente, na realidade, confesso me perder aqui e agora na sinceridade deste tópico. Eu a conhecia? Não importa, mas ela agia como se me conhecesse. Quando alguém te chama pelo nome, sabe de todas as usas necessidades e te guia com um toque suave nas mãos, você aceita de bom grado o passeio, ainda que o item qual ela queira te vender seja a última coisa qual você realmente queira comprar. Foi assim que uma vez me vi na cidade de Brasília com óculos-escuros novos, ou seja, é preciso tomar cuidado com gente muito decidida. A vendedora da vez disse, nesta ocasião, que sabia exatamente o que eu precisava. Descemos para o primeiro piso do shopping e ela olhava para trás, de minutos em minutos, conferindo se eu ainda estava a segui-la.

            – Para falar de assuntos assim, somente em lugares sérios, Guilherme.

            – Como você sabe o meu nome?

            – Ora, nestes dias, que vendedora que se preze não conhece o cliente?

            – Está bem. Onde vamos?

            – Chegamos. Este é o lugar ideal para a nossa conversa. – Quando me dei conta, estávamos subindo a escada rolante que fora feita para pessoas descerem. A minha perplexidade deve ter ficado nítida no rosto, porém ela disfarçou com maestria o exagero da reação. Exagero? Perguntei-me e respondi, claro que não, afinal, eu estava andando e ela também, ambos os dois sem sair do lugar.

            – Uma escada rolante?

            – Não se prende nos detalhes não importantes, meu bom homem.

            – Certo, isso está estranho, mas suponho que não seja o fim do mundo. Posso me concentrar em andar e falar com você, mas teremos problemas se alguém resolver descer.

            – Ninguém vai descer, Guilherme. Vamos falar da minha razão de estar aqui?

            – Graças a Deus! Eu estou curioso a respeito disso faz alguns minutos.

           – Então sua curiosidade dura pouco já que está me seguindo faz algumas horas, Guilherme. – Ela sorriu um sorriso de boneca e senti um calafrio. – As maquiagens, Guilherme, separei as que melhor se encaixam como presente para aquela sua amiga.

            – É mesmo?

            – Ou era para sua namorada?

            – Não me lembro ao certo.

           – Você disse que uma tal de Francisca estava muito interessada em maquiagens para mulheres negras. Você quer ver os produtos?

            – Quero.

            – Diga lá, Guilherme. Sua namorada é negra? – Meditei sobre a minha resposta. Não, Francisca não era uma mulher negra, mas estava fazendo pesquisas para o trabalho de conclusão de curso que questionavam e explicavam a ausência destes produtos e o que deveria ser feito por algumas marcas para que essa lacuna fosse suprida. Em países como os Estados Unidos, mulheres negras não encontravam tantos problemas com isso, mas no Brasil, por exemplo, era quase impossível que uma mulher negra encontrasse uma maquiagem adequada à coloração da pele.

            – Não… Na verdade, não.

            – Então você não pretende comprar comigo, Guilherme?

            – Bem, eu…

            – Diga-me agora o seu propósito. Estou aqui para lhe ajudar, como sempre.

            – Eu só tenho uma curiosidade legítima a respeito do assunto.

            – Ainda bem que me disse! Eu pensei que fosse me enrolar durante a tarde inteira. Eu sei suas respostas, Guilherme, sei da sua paixão por solidão, sei dos seus segredos e sei, sei mesmo até os produtos que você quer comprar e eu poderia te vender, mas se hoje estamos aqui por causa de uma curiosidade legítima, siga-me.

            A vendedora indicou para que eu descesse a escada rolante e foi o que eu fiz. Ela passou por mim e deu uma piscadinha. Chamou-me para segui-la e lá me vi atrás da mulher outra vez. Passamos por várias mesas de ponta cabeça em várias praças de alimentação. O visual lúgubre era comum aos que saíam tardes das sessões de cinema. Guilherme, outrora, estimulava a tradição sagrada de ir aos cinemas em todas as segundas. Os olhos marejaram e ele nem teve tempo de pensar sobre. Continua seguindo a mulher, que andava ligeira e os dois passaram por dezenas de lojas fechadas. Enfim, a vendedora entrou em uma loja e seguimos rumo ao estoque que estranhamente levava até a rua. Na saída para a sociedade, porém, havia arcos altos que surgiam do asfalto e diminuí o ritmo quando fui, vagarosamente, atravessando-os.

           – O que está acontecendo aqui?! – Tudo havia ficado mais obscuro. Algo sinistro pairava nas sombras, aguardando. A voz da vendedora respondeu fracamente de longe.

            – Você está no local que me pediu, Guilherme. Bem-vindo.

            – Que porra é essa?! O que você quer comigo?!

            Abri os olhos e vi a televisão do quarto. O filme A Viagem de Chihiro entrava nos seus últimos trinta minutos e eu me peguei suado na minha cama. Fechei os olhos como que para aceitar que eu estava sonhando e fui transportado de volta aos arcos. A voz novamente surgiu.

            – Vamos, Guilherme. Faça o que tem que fazer. Não era isso?!

            – Quem é você, vendedora?!

         – Quem é você, Guilherme?! – A pergunta o revirou e ele sentiu subitamente uma vontade de vomitar. Desta vez não era a voz da vendedora e sim a sua própria voz.

            – Quem é você, Guilherme?!

            Guilherme se sentou ao banco e sentiu que um monstro se levantava do chão. Tudo era incerto, tudo era irregular. Abriu os olhos e estava sentado na cama. Olhou para a televisão e agora ela estava apagada. Acendeu as luzes porque estava assustado. Acendeu as luzes porque, nesta noite, talvez não existisse um pedaço de escuridão que fosse saudável. Acendeu as luzes porque a pergunta ainda revirava e ele relutava, mas falhava em ter uma resposta concreta. Quem é você, Guilherme? Acendeu as luzes porque não sabia responder a uma simples pergunta.

Discreto.

Inicio uma conversa franca
Defronte a uma imensidão branca
Sentindo uma enorme sede

A dor qual ela banca
Quando sozinha no quarto se tranca
E se atira contra a rede

Cogita desistir
Reluta em admitir
Não vê saída

Não sabe o que sentir
Esqueceu de como sorrir
Perdeu-se de sua vida

Escute-me hoje, por favor,
A face febril está em rubor
Tire o rosto da parede

A fase passa e também a dor
Recupera sua alegria e sua cor
A Tristeza têm olhos verdes

Aposto no que me aquece
Finjo crer nas minhas preces
Celebro minha existência

Príncipe que não se esquece
Demônio que se oferece
Anjo sem paciência

Abro um compartimento secreto
utilizando frases em outros dialetos
que encontrei em grimórios antigos

Concentro-me em pessoas e objetos
Sozinho sou e permaneço discreto
A infinitude de um caso perdido.

Refúgio

Ele se adianta e não consegue fugir.

Está
cansado
da
fuga.

Não sabe dizer quando parou de cair.

Será
mesmo
que
parou?

É que quando você passa muito tempo no chão corre o risco de se esquecer da diferença entre os patamares e os ângulos e todas essas perspectivas.

Ele
revolve
para
dentro
.

Há muito o que olhar. Às vezes sente como se a realidade alheia fosse irreal se comparada com a sua. De quando em quando, observa-se, contempla-se e se permite ficar em seu próprio quarto. O ambiente se torna o Universo e ele se torna o Deus daquele mundo tão particular.

Ele
pensa
melhor
sem camisa.

Assim tira a camiseta primeiro e a joga no chão. Colocá-la no cesto de roupas sujas é algo que pode esperar. Agora bebe água, cerveja, chá, suco e faz do ato de ingerir qualquer líquido uma distração. Distração para quê? Distração do quê?

Ele
pensa
em voz alta
Às vezes se
enraive com
quem não quer
buscar seus caminhos
Tantos preferem atalhos

Como explicar?

Ele liga o videogame e joga. Recorda-se dos primeiros anos e dos primeiros jogos e sorri. A sua infância tem um gosto doce e ele desce alegremente e sem se preocupar com a conveniência de pegar suas estradas para locais seguros. Está defronte ao Super Nintendo, ao Gameboy de tela verde, ao Playstation I. Os videogames o fazem feliz. A solidão o faz feliz. Ele olha com a atenção necessária os jogos, as pessoas e os espaços vazios. Observa a vida e a alegria. Cresce no peito do garoto uma vontade de ser maravilhoso.

O que
quer dizer com
ser maravilhoso?

Quem realmente sabe? Um dia o garoto apostará em si mesmo. Acreditará em sonhos, pessoas e amor. Acreditará nos exercícios físicos e na cafeína, nos contos, romances e rimas. Quem poderá desvendá-lo? Ninguém? Nunca? Ele escolhe suas companhias e se frustra quando sente que não pode optar pela solidão.

Às vezes
ele deseja
a solidão.

Entretanto, é consciente, pontual, exceto no que concerne a chegar nos horários marcados. Desafie-se, inverte cenas, faz o que duvidaram que tinha a capacidade de fazer.

Ficava
apavorado
em conversar
com mulheres.

Hoje é natural.

Sentia-se
muito alheio
Também bastante
feio, ainda que soubesse
que a verdadeira feiura
nunca seria estética
neste mundo vil.

Tornou-se expansivo. Mais do que antes, ele sempre anda por aí com alguns amigos e é amado. Tornou-se bonito também, ainda que não tenha se esquecido que a beleza verdadeira nunca seria a estética neste mundo vil. Revolve para dentro e deixa que os outros percebam o que ele já sabe. É bonito nos lugares que mais importam.

Ele quase
nunca dorme.

É que sua cabeça está sempre no dia seguinte e na luta. Não é fácil, mas segue firme em sua conduta e crê que pode vencer o mundo com calma e sem malandragem.

Essa
aposta
é maluca,
mas

Coragem!

Fecha os
olhos, pois
sabe que ainda
que a vida seja foda
ninguém dorme
de olhos abertos.

Anda para lá e para cá pensando em soluções que resolvam conflitos. Fracassa em aparecer com novas soluções e sufoca um grito. Não chora, não é pessoa assim tão sensível, mas reconhece que chegou a hora de dormir. Espera que pelo menos em sonhos não exista alguém franco e que não tenha a intenção de o ferir.

Boa
noite.


  • V

Crônica de Terça

Eu sempre parto para o ataque tentando frear quem lhe golpeia por suas vilezas, mas eu avisei antes e repito agora, você precisa ter mais clareza. Eles disseram que a culpa era sua, bom, eu insisti em te defender, mas não se vomita na sala de estar da casa dos outros, eu não lhe avisei? A culpa era realmente sua.

Não avisei? Eu sei que avisei e havia mais gente por perto. Agora você pode bater sua cabeça e pode também beber sua cachaça, seu gim, suas cervejas, eu juro que por mim pode até vomitar, entretanto, você não é um novato e conhece as regras, sem vômito na sala e sem trocar o canal da televisão. Tanto faz porra nenhuma! Etiqueta, seu idiota, você entende a minha fala. É preciso ter um pouquinho de bom senso. Eu sei, você é assim porque a vida é foda e tornou você assim, você sentiu falta de amigos e uma família mais dedicada e empenhada em te ver bem e feliz. Claro, eu sei, a culpa não é sua, eu posso pedir desculpas e você? Sei bem, eu me lembro bem, não foi criado assim, certo? Orgulho e boca grande em uma boca pequena. Cale a boca, por favor. Achegue-se mais perto para um conselho.

Ele se aproxima e quando está perto lhe acerto um safanão na testa. Agora desconfio que ele realmente tenha aprendido a lição. Há quem prefira do jeito mais difícil, certo? Não que ele fosse teimoso ou burro, bem longe disso, mas tinha uma mania de ser particularmente obstinado na produção dos próprios erros. Tudo era um espetáculo.

É uma tarde de terça-feira normal, mas ainda assim é diferente. Meus pés estão gelados, mas o dia está quente. Não temo ficar doente, pois tomo mel. Rio dessa piada que só eu sou capaz de compreender. Bom, terça-feira, o que existe de particular hoje? Sim, eu não me esqueci, hoje é aniversário do meu irmão, mas para a gata é só mais um dia e para o cão também, aliás, para eles não é dos melhores dias, pois eu não me sinto tão bem e eles se movimentam mais de acordo com a minha dinâmica. O amor que os dois nutrem por mim precisa de estímulos, sim, exatamente como qualquer amor. Alguma vez você já reparou como isso é curioso? Na falta da minha atenção, contentam-se ambos os bichos com a solidez da minha presença. A minha existência faz diferença para eles, ainda que para a hipótese do meu falecimento, eu me conforte em saber que eles seguirão acompanhando os outros membros da minha família. Respiro e observo os detalhes com atenção. A brisa passa por mim, mas eu também passo por ela. O cão escolhe o chão e fica bem próximo das rodas da cadeira giratória enquanto a gata dorme na janela.

Ando pela casa sem camisa e penso. Carrego quatro livros na mão direita, porém me falho no meu propósito. Tinha o objetivo de fazer o que mesmo? Olho para os livros, é isso, eu provavelmente queria ler e não consegui. Falhei outra vez em cessar minhas atividades e me concentrar em alguma outra coisa que, bom, eu talvez devesse me distrair ou talvez devesse me embeber de filosofias ou talvez devesse andar sozinho pelo mundo conhecendo e contando histórias e…

E respiro para me concentrar no que restou da tarde. Bebo uma xícara de café. Checo o site, vejo que não vendi muitos livros ainda, porém um sorriso escapa de meu rosto empedernido e frio. Eles gostam das minhas histórias e eu me pergunto o motivo. Não sei bem, mas se estabelece com mais firmeza aquele mesmo sorriso.

Não faço exercícios. Está muito quente e o meu nariz sangrou pela manhã. Consumi mais de cinco mil calorias ontem e antes de ontem e só tenho gastado energia nas noites quando sento na minha cadeira e teclo no meu teclado. Quero crer no mundo, mas ele parece todo errado. Quero fugir daqui? Quero mudar? Quero me apegar ao que sei não funcionar para manter a melhor ilusão de funcionamento? Não planto ideias por malícia ou interesse. Gosto do cru das pessoas e descubro na hora e pelo brilho no olhar sobre o que finjo que esqueço. Por essa percepção sensitiva eu sempre agradeço. Tornei-me o tipo sábio de pessoa que entende como a confiança é um prato que se come frio, porém insisto em confiar antes da hora para mudar o que vejo como reflexo deste mundo vazio. Preciso ser diferente para ansiar pela diferença, porém sei que a minha ingenuidade reverbera pela cidade o peso da sentença. Aceito o preço, escolho viver e sento outra vez. Escrevo.

Escrevo porque preciso conhecer mais do que o tudo
que eu já sei
Escrevo porque escrever é a única maneira de me tornar
quem sempre sonhei
Escrevo, ainda que existam muitas coisas melhores
para se fazer
Escrevo porque sou escritor e preciso me dedicar
ao sonho que tenho
Escrevo e vou continuar escrevendo e quanto ao resto
eu me abstenho
Talvez eu encorpore minha única

semelhança com Christopher Green
E saia sozinho para longe

para descobrir o que falta em mim
Talvez não falte coisa alguma

E escrevo
para que a minha originalidade
nunca suma
para que não mudem
os meus desejos
Escrevo-me porque quero e
para registrar minhas andanças
Escrevo-me, pois às vezes temo a morte
Quem sabe com um pouco de sorte
Postumamente eu causa alguma mudança.

Sinto fome e é hora de consumir mais calorias. Sinto-me feliz, pois elas se deixam ser consumidas e utilizadas. Já que não faço isso com ninguém, eu encontrei nas calorias estranhas aliadas. Sorrio triste ou entristeço sorrindo? Digito qualquer bobeira sentado nessa cadeira e admito que o dia seria melhor se eu estivesse dormindo.