Abstração

A representação da vida como coisa real geralmente nos escapa.

Localizo-me no meu quarto e sinto o suor escorrendo pelas minhas costas e pelo meu antebraço. Anoiteceu outra vez e me pergunto sobre o que seria da minha vida acaso não houvessem novas noites. Poderia eu seguir tranquilamente em um mundo que só comporta o lume ou necessito da escuridão e da densidade noturna para certificar de que sigo cônscio e no controle de minhas próprias ações?

Tragédia mundana qual me sinto destinado. Posso acertar minhas próprias ações ou estou fadado a dar errado?

Vejo-os, principalmente quando não me vejo. Vejo-me, apenas quando deixo de ver o restante do mundo. Observo-os e me sinto arrefecer. Não me observo e sinto a minha ausência. Escrevo para diminuir a distância entre quem sou e quem sinto que deveria ser? Que é que deveria fazer para me aproximar mais de quem está tão distante? Existe drama qual devo me render que faça minha vida simplória mais elegante?

O silêncio devastador é interrompido pelo ronco incessante do motor do ar-condicionado. A gata preta desfila atravessando o espaço curto da mesa. Segue o seu rumo com passos delicados, repletos de requinte e, sem se encostar em nada, deita no meu travesseiro e só mexe eventualmente suas atentas orelhas.

O sono dos felinos, as sinas e destinos, os instantes de descansos breves e seculares, a inevitabilidade, a boa utilização do tempo, a individualidade, os lugares, tudo me torna mais leve e tudo também me torna mais pesado. Não divido meus fardos e nem os meus hábitos. Sei que preciso da solidão para sobreviver.

Abstraio-me do Universo e de tudo o que compõe a Vida e me sinto integrar o ambiente. Dura apenas um vislumbre de segundo, um intervalo tão fugaz, que nem o sinto na pele, mas é essa capacidade de me ver longe do mundo que me faz nutrir amor verdadeiro pelo verdadeiro Mundo.

Indago-me sobre Vida e Morte e sobre as próximas vidas que hão de existir após nossas próximas mortes. Haverá espaço e tempo para que tudo seja vivido e aproveitado? Haverá tempo hábil para que possamos realizar os sonhos que sonhamos? Haverá outras versões das nossas mesmas personalidades? Poderei deitar meu julgamento completamente subjetivo sobre a minha maneira de enxergar a existência? Outra vez me perco de mim. Enxergo todas as pessoas, menos a minha. Enxergo todas as dores, exceto a minha. Enxergo a felicidade dos mais próximos e não a minha. Que é que deveria eu fazer para me livrar deste insistente estado soporífero? Estou destinado a sofrer por um mundo que me ignora?

Príncipe diurno e deslocado de melhores horas. Sonhei-me regente em um mundo qual tudo era visto de dentro para fora. Vomitei os segredos da existência. Mergulhei no gélido oceano e me transformei em uma lontra comedora de ouriços-do-mar.

Acordo-me no mundo real, se é que faz sentido distinguir o território dos sonhos do território cotidiano. Sou o Senhor do Lago e devo fazer o que bem entender. Visto meu protagonismo como um super-herói veste sua roupa especial. Trago em mim todo o tipo de esperança vã e estúpida que me faz acreditar que posso modificar severamente os amanhãs. Onde estará meu futuro se me falho em modificar o presente?

Falho de novo e de novo. Sinto uma raiva que dura pouco. Sinto uma tristeza que persiste. A alegria pode ser disfarçada, mas não o sofrimento. Penso sobre as coisas que não posso tolerar e quase me pego chorando. Agradeço ao Acaso Divino que me fez estar com tanto sono.

Lá de longe me vejo e aceno. Estou defronte para as janelas límpidas com vistas enfumaçadas de uma fábrica que expele nuvens de fumaça branca, mas me sinto sereno. Lá de longe me vejo e não há engano. Há qualquer lugar qual sou novo filho do mar e desta vez sei que me amo. Lá de longe me vejo no clima impossivelmente gelado e distante. Talvez uma parte minha congele, mas eu sei que não volto o mesmo de antes. Lá de longe me vejo falando em japonês com os japoneses. Talvez eu me embriague em Tóquio enquanto canto meus maiores reveses.

Lá de longe me vejo acompanhado.

Lá de longe me vejo sozinho.

Lá de longe me vejo.

Lá vou eu outra vez.

Lá vou eu agora.

Lá vou eu outro dia.

Lá vou em uma nova velha vida.

Partícula irreal e incompreensível. Falhei na vida e no devaneio de minhas hipóteses. Falhei na imaginação e no sonho. Dormi acordado e vivi dormindo. Nunca encontrei o que me fosse agradável como qualquer tipo de resposta. Surgem mais perguntas e outra vez me vejo. Não há mais ninguém. Deixo de me ver e a vida inteira brilha e surgem mais uma vez as coisas todas que faltam.

O sono é o meu único Deus e rezo para que durma rápido. Divido-me entre a ânsia de sonhar e a vontade apressada de me lembrar detalhadamente dos sonhos. Pudesse eu me compreender nas partes quais não me compreendo e tudo poderia ser diferente. O que fiz de mim se calei quando deveria ter dito? O que ainda faço de mim se falhei em fazer deste um mundo mais bonito? O que fui falar quando não tinha mais o que dizer?

Amo como posso e sigo em frente. Sou como sou agora, mas talvez um dia escolha ser diferente. Que me julguem com ferocidade! Que me julguem com um caráter férreo e que eu seja alvejado! Que eu sofra com os dramas e dores do mundo! Um dia eu ainda melhoro! Um dia eu ainda mudo…

Andarilho cósmico,

Interplanetário,

Eu vi a escada de saída da Terra,
Eu também senti o cheiro de flores e ervas

Eu sei que há circunstâncias de melhorias e que eu não quero e nem posso morrer de um jeito estúpido ou banal. Não aqui. Talvez com essas pessoas. Talvez longe delas.

Quero falar outras línguas e admirar outros sotaques.

Quero que todos vejam na minha representação externa toda a capacidade estética e interna da minha alma. Quero a explosão do mundo em absoluta calma.

Hoje nenhum pedaço do planeta foi feito pra mim.

Um dia.

Ferro, vinho, romantismo, sono compartilhado e lucidez. Não sei quando, mas ainda chega minha vez. Até lá me valho dos inutensílios que encontro ao longo dos dias mais longos para continuar bem.

Isso de querer ser exatamente aquilo que se é ainda vai nos levar além.

Gastando palavras até que os dedos doam para confrontar qualquer resquício de vaidade. O sono me chama e em sonhos quero ficar face a face com a única Verdade.

Boa noite.

Crônica de Terça

Eu sempre parto para o ataque tentando frear quem lhe golpeia por suas vilezas, mas eu avisei antes e repito agora, você precisa ter mais clareza. Eles disseram que a culpa era sua, bom, eu insisti em te defender, mas não se vomita na sala de estar da casa dos outros, eu não lhe avisei? A culpa era realmente sua.

Não avisei? Eu sei que avisei e havia mais gente por perto. Agora você pode bater sua cabeça e pode também beber sua cachaça, seu gim, suas cervejas, eu juro que por mim pode até vomitar, entretanto, você não é um novato e conhece as regras, sem vômito na sala e sem trocar o canal da televisão. Tanto faz porra nenhuma! Etiqueta, seu idiota, você entende a minha fala. É preciso ter um pouquinho de bom senso. Eu sei, você é assim porque a vida é foda e tornou você assim, você sentiu falta de amigos e uma família mais dedicada e empenhada em te ver bem e feliz. Claro, eu sei, a culpa não é sua, eu posso pedir desculpas e você? Sei bem, eu me lembro bem, não foi criado assim, certo? Orgulho e boca grande em uma boca pequena. Cale a boca, por favor. Achegue-se mais perto para um conselho.

Ele se aproxima e quando está perto lhe acerto um safanão na testa. Agora desconfio que ele realmente tenha aprendido a lição. Há quem prefira do jeito mais difícil, certo? Não que ele fosse teimoso ou burro, bem longe disso, mas tinha uma mania de ser particularmente obstinado na produção dos próprios erros. Tudo era um espetáculo.

É uma tarde de terça-feira normal, mas ainda assim é diferente. Meus pés estão gelados, mas o dia está quente. Não temo ficar doente, pois tomo mel. Rio dessa piada que só eu sou capaz de compreender. Bom, terça-feira, o que existe de particular hoje? Sim, eu não me esqueci, hoje é aniversário do meu irmão, mas para a gata é só mais um dia e para o cão também, aliás, para eles não é dos melhores dias, pois eu não me sinto tão bem e eles se movimentam mais de acordo com a minha dinâmica. O amor que os dois nutrem por mim precisa de estímulos, sim, exatamente como qualquer amor. Alguma vez você já reparou como isso é curioso? Na falta da minha atenção, contentam-se ambos os bichos com a solidez da minha presença. A minha existência faz diferença para eles, ainda que para a hipótese do meu falecimento, eu me conforte em saber que eles seguirão acompanhando os outros membros da minha família. Respiro e observo os detalhes com atenção. A brisa passa por mim, mas eu também passo por ela. O cão escolhe o chão e fica bem próximo das rodas da cadeira giratória enquanto a gata dorme na janela.

Ando pela casa sem camisa e penso. Carrego quatro livros na mão direita, porém me falho no meu propósito. Tinha o objetivo de fazer o que mesmo? Olho para os livros, é isso, eu provavelmente queria ler e não consegui. Falhei outra vez em cessar minhas atividades e me concentrar em alguma outra coisa que, bom, eu talvez devesse me distrair ou talvez devesse me embeber de filosofias ou talvez devesse andar sozinho pelo mundo conhecendo e contando histórias e…

E respiro para me concentrar no que restou da tarde. Bebo uma xícara de café. Checo o site, vejo que não vendi muitos livros ainda, porém um sorriso escapa de meu rosto empedernido e frio. Eles gostam das minhas histórias e eu me pergunto o motivo. Não sei bem, mas se estabelece com mais firmeza aquele mesmo sorriso.

Não faço exercícios. Está muito quente e o meu nariz sangrou pela manhã. Consumi mais de cinco mil calorias ontem e antes de ontem e só tenho gastado energia nas noites quando sento na minha cadeira e teclo no meu teclado. Quero crer no mundo, mas ele parece todo errado. Quero fugir daqui? Quero mudar? Quero me apegar ao que sei não funcionar para manter a melhor ilusão de funcionamento? Não planto ideias por malícia ou interesse. Gosto do cru das pessoas e descubro na hora e pelo brilho no olhar sobre o que finjo que esqueço. Por essa percepção sensitiva eu sempre agradeço. Tornei-me o tipo sábio de pessoa que entende como a confiança é um prato que se come frio, porém insisto em confiar antes da hora para mudar o que vejo como reflexo deste mundo vazio. Preciso ser diferente para ansiar pela diferença, porém sei que a minha ingenuidade reverbera pela cidade o peso da sentença. Aceito o preço, escolho viver e sento outra vez. Escrevo.

Escrevo porque preciso conhecer mais do que o tudo
que eu já sei
Escrevo porque escrever é a única maneira de me tornar
quem sempre sonhei
Escrevo, ainda que existam muitas coisas melhores
para se fazer
Escrevo porque sou escritor e preciso me dedicar
ao sonho que tenho
Escrevo e vou continuar escrevendo e quanto ao resto
eu me abstenho
Talvez eu encorpore minha única

semelhança com Christopher Green
E saia sozinho para longe

para descobrir o que falta em mim
Talvez não falte coisa alguma

E escrevo
para que a minha originalidade
nunca suma
para que não mudem
os meus desejos
Escrevo-me porque quero e
para registrar minhas andanças
Escrevo-me, pois às vezes temo a morte
Quem sabe com um pouco de sorte
Postumamente eu causa alguma mudança.

Sinto fome e é hora de consumir mais calorias. Sinto-me feliz, pois elas se deixam ser consumidas e utilizadas. Já que não faço isso com ninguém, eu encontrei nas calorias estranhas aliadas. Sorrio triste ou entristeço sorrindo? Digito qualquer bobeira sentado nessa cadeira e admito que o dia seria melhor se eu estivesse dormindo.

Crônica Pregressa #2

Gole de amor

Há uma frequente subvalorização em estar sozinho.

Antes de tudo, deixe-me ser bem claro sobre o que eu quero dizer. Torço para que você tenha pelo menos cinco bons amigos e que estes sejam tão preocupados com você que refutem o próprio ego.  Espero que respeitem suficientemente a sua solidão para entendê-la, mas que jamais se façam de cegos. Honestamente torço para que não se esqueçam de que você também precisa de companhia. Que esses cinco possam te alcançar, ainda nos momentos em que você pareça impossivelmente distante. Que estes cinco, ao menos eles, possam definitivamente arrancar o mais difícil dos sorrisos quando o mundo se apresentar estranhamente cruel, maldoso ou inexoravelmente injusto.  

Todos os clichês também surgem de experiências e não há senão conselhos baseados nas coisas que vivemos. Há quem ache que o generalista ou o amplo é sempre absurdamente vago, mas é como se desconsiderassem a repetição das experiências. Você acredita que uma experiência perde valor por acontecer de maneira repetitiva? Acha que algo extremamente parecido invalida o que acontece depois? Toda experiência é nova. Você gasta sua inteligência na tentativa de arranjar provas e desgosta de quem é capaz de refutar essa versão de qualquer coisa representada tão inteligentemente por você. 

Veja, é preciso saber ser e estar sozinho. Ontem mesmo lá por volta das 18h15 fui dar uma volta e mais tarde peguei um cinema sozinho. Cheguei poucos minutos antes da sessão. Aguardei, vi o filme e saí. Eu estava vestindo uma bonita camiseta com uma dupla referência: O Pequeno Príncipe e o Senhor dos Anéis – Le Petit Hobbit. Sinto, porém, que dificilmente alguém me notaria. Dei de ombros como quem não liga tanto, mas ainda assim sei que preferia ser notado pela roupa. Há nisso algo de errado? Não encontrei rostos conhecidos no passeio e é bastante improvável que mesmo quem saiba meu nome pudesse entender minha camiseta. Existi ali por aproximadamente meia hora. Olhei com ternura e carinho para o mundo que acontecia. 

Andei pelo shopping sozinho. Resolvi que merecia comprar um café, um livro e um chocolate. A ordem que fiz a aquisição das coisas pouco importa, mas eu senti que me aproveitei. Olhei algumas pessoas nos olhos, contemplei a correria nos pés apressados de quem parece estar sempre atrasado e notei ainda a estranha e sem explicação calmaria que os apaixonados de mãos dadas sentem quando observam as vitrines das lojas. Há quem possa pagar pelas coisas caras e há quem sempre as vislumbrará, mas vejo que se unem silenciosamente na concordância que R$ 430,00 é muito dinheiro para uma blusa de seda com o desenho de um tigre. Bebês se divertiram e se irritaram sem qualquer motivo aparente, mas nos risos deles o universo se renovou. O que me leva a crer que eu também preciso de renovação? O que os bebês nos ensinam?

Meus sonhos são tão inflexíveis que às vezes duvido que a utilização da palavra sonho seja o termo correto qual deveria empregar. O que me faz crer que eu posso levar amor ao coração das pessoas? Que espécie de instinto absurdo me faz crer que sou capaz de tão grandioso feito se na maioria das vezes eu consigo falhar mesmo nas missões próprias e solitárias que possuo? Não sou um rio, mas rio, sinto-me mais leve e fluo. 

Quando não sonhamos, creio, alimentamo-nos de sonhos alheios para preencher a lacuna própria da existência que exige que se sonhe. Quem aceita existir sem ter para onde ir? Quem é que insiste em viver feliz em uma realidade tão pungente? Quem é que crê em um mundo no qual o Tempo parece tratar tudo como um jogo e que tudo o que te cerca está doente?

Honorável revelação do destino: o meu futuro são meus sonhos de menino. O gato disse que qualquer rumo serve para quem desconhece o caminho. Basta que continue andando e logo chega a hora da colheita. Nem tudo acaba como esperamos, mas certamente tudo se ajeita. 

Haverá um tempo em que os corações não poderão quebrar mais do que já estão quebrados. As lágrimas secarão e haverá pessoas esperando por você. Provavelmente serão poucas, mas elas estarão ali apenas por você. As tempestades vêm e vão. Você fica. Lembra da minha metáfora sobre tinta e coração? Você diz que não, mas eu sei que no fundo acredita. Os homens são tão pequenos e sabemos que haverá um tempo melhor a seguir. Quando a tempestade passa e as nuvens se vão, enfim, encontra-se uma o sol à luzir.      

Veja, eu sou um sujeito um tanto quanto criativo. Meus desejos práticos são coisas das quais eu sei que nem mesmo preciso. Mataram o amor, mas eu voltei a acreditar. Ainda que não sinta o mesmo, ele parece me cercar. Com uma espécie de preguiça ancestral que me obriga a ser hoje melhor do que ontem. O que é que sei dessa vida que nada sei? Ouro, prata e madeira significam a mesma coisa? Quais os metais mais valiosos? Quais os corações mais valorosos? Do que sou feito?      

Alguns estão desistindo. Diga para mim que você segue firme. Eu só preciso saber que você vai continuar.      

Outros de nós, pertencentes aos melhores, renderam-se antes da quinta noite de sofrimento e estão entregues ou partidos. Você é como eu. Somos diferentes. Nossos corações são feitos de material mais forte que o vidro.      

Ainda há quem fracassará e dará meia volta para causar tormenta infinita. Não os odeie. Se puder, entenda-os e seja sutil. O interno não aguenta tinta. O inverno torna a alma mais sucinta. Ninguém é tão grosseiro assim. O valor é relativo, mas pode acreditar em mim. Todos têm valor.      

Até a alma mais cansada, suplica perto do fim da estrada, por um mero gole de amor.