Maura observava a televisão e somente a televisão. Ouvia ecos de vozes que, ela juraria se ainda pudesse falar, soavam simultaneamente próximos e distantes.
Mãe.
Ela não entende mais.
Mãe.
Ela está aqui, mas não está.
Mãe.
O pai se foi há anos. É coisa de…
Família é assim mesmo.
Ela deu azar. O Alzheimer é genético.
Sim.
Mãe, a senhora quer alguma coisa?
Mãe, a senhora está com frio?
Mãe?
As palavras passavam pela memória de Maura como se estivessem passeando apressadas em um shopping com a urgência de evitar a cobrança do ticket do estacionamento. Elas seguiam trôpegas, como se estivessem embriagadas, para os recônditos da cada vez mais inconsciente consciência de Maura. Ela ainda se lembrava de coisa ou outra, sabia diferenciar os seis filhos pelos sons das vozes e pelos ritmos das falas. Não se esquecia de que havia dois que jamais a visitavam, um deles homem e a outra uma mulher, mas como é que ela poderia reclamar na atual conjectura? Não tinha voz. Maura suspirava, mas seus pulmões eram tão fracos que os filhos não distinguiam uma arfada de ar simples de uma respiração prolongada. A velha senhora estava totalmente entregue, ainda assim, era obrigada a escutar os resmungos de quem dividia o ambiente com ela.
Ele foi embora, Paula. Descobriu sobre os meus dois casos. É, eu sei que você é uma santa e nunca faz nada errado, mas eu fiz.
Engraçado. Eu achei que ele fosse um bundão incorrigível.
Eu não sei o que eu achei.
Você vai sentir a falta dele agora, irmã, mas ele não vai sentir a sua. Quer água, mãe?
Por que você defende ele? Eu sou a sua irmã!
Você é a pessoa que errou. Fosse você mesma a mamãe ou o papai, que Deus o tenha, eu ainda falaria sobre o seu erro.
Por que você é tão má comigo?
A minha honestidade te fere? Você foi ruim com as pessoas por anos. Parece que nunca aprende.
Maura nem se recordava de como a alimentavam, mas já não fazia tanta diferença. A vida era uma tragédia sem importância agora que ela era a extensão do cômodo, apenas uma nova parte envelhecida da mobília. Quando se lembrava de sentir e via, enxergava com atenção tudo ao redor, porém, mantinha-se imóvel. Os gestos que era capaz de fazer com a cabeça fugiam à compreensão dos filhos. Ninguém entendia o vagaroso menear de seu pescoço. Os olhares cheios de significados eram respondidos com frases confortáveis, repletas de pena na intenção e na réplica falada. Maura se sentia velha para isso e seus lábios formaram por um instante seu antigo e discreto sorriso juvenil, afinal, ela estava realmente velha para qualquer coisa. Suspirou outra vez. Maura se recordava de que uma ou outra vez os filhos haviam conversado sobre a infância compartilhada e as melhores refeições que mamãe preparava. Uma ou outra vez discorreram sobre memórias felizes. Uma ou outra vez o mundo real, qual ela já não tinha mais certeza da realidade, voltava a ser palatável para quem se acostumou a sentir o gosto de coisas ruins ou a não sentir qualquer gosto sequer.
Água.
Mãe?
Mamãe? A senhora aceita água?
Acho que ela já ficou surda.
Por que perguntamos se ela aceita água? Ela não responde mais.
Precisamos conversar com ela para estimulá-la.
Estimulá-la com qual finalidade?
Que horror! Você parece tão fria!
Seja racional. Ela parece ouvir algo?
Ela pode ser surda, mas definitivamente não é cega.
E como você sabe?
Olha o jeito que ela assiste a televisão.
É.
É o quê?
Parece que ela presta atenção.
Pobre, mamãe.
Se você diz que sente essa compaixão deveria aparecer mais vezes.
Pelo menos eu me importo de verdade em aparecer.
Eu sei bem como se importa…
Sua rata egoísta!
Sua porca interesseira!
Sobre uma coisa, porém, as filhas estavam certas: ela gostava de mergulhar profundamente na televisão.
Foi em uma terça-feira do mês de janeiro, não que Maura fosse se lembrar da data, mas havia assistido a televisão por volta de oito horas consecutivas. Os filhos não estavam presentes, mas ela também não deu pela ausência deles. A enfermeira que ficava na casa algumas vezes na semana falava em voz alta com seu namorado na sala ao lado. Suas conversas eróticas seriam facilmente escutadas se houvesse mais alguém por perto, mas ela acreditava piamente que a senhora Maura havia passado para a outra vida, deixando só o corpo, uma sombra vaga que fica e habita, mesmo quando todo o resto insiste, implora, para ser deixado para trás. A indiferença era a única característica que marcava a velha senhora. Sentia como se toda a indignação de evitar conflitos e situações dignas de asco fosse apenas um privilégio da juventude. Respirou profundamente, mas ainda que alguém estivesse por perto, não teria notado a diferença entre a leveza e o peso. A enfermeira seguia na chamada.
Cale a boca, seu idiota. Ela está vegetativa! Só a carcaça envelhecida fica ali o dia inteiro. Sim, eu sei o que estou falando. Você pode relaxar. Eu vou…
O que você vai fazer comigo?
Você não dá conta.
Cala a boca.
Eu já disse que a velha é surda.
Se eu ligar a televisão ela fica parecendo um bebê.
Você pode aparecer hoje?
Ela dorme no sofá. A gente usa a cama grande.
A enfermeira estava parcialmente equivocada sobre a morte precoce da senhora. Maura se sentia tão bem quanto uma mulher de noventa e quatro anos podia se sentir. No começo, quando perdeu os movimentos, irritava-se com a incapacidade de trocar o canal da televisão, mas aprendeu a gostar de tudo o que estava passando, inclusive dos esportes. Naquela noite especificamente, ela juraria se pudesse falar, sentia-se completamente confortável com a programação. Na televisão A Sociedade dos Poetas Mortos havia encerrado para, em seguida, começar a sessão da madrugada com O Exterminador do Futuro. Depois de envelhecer, quando se percebeu incapaz de se expressar, Maura se reconheceu como uma grande fã do famoso ator Arnold Schwarzenegger. Talvez lhe faltasse versatilidade na interpretação, admitia, porém, adorava um brutamontes com cara de maluco que era capaz de explodir tudo. Estreitou os olhos para prestar melhor atenção no filme e sentiu o cansaço lhe pesar. Não era tarefa fácil ser uma velha que vivia para assistir TV. Maura fechou os seus olhos, sem nunca saber se os abriria no dia seguinte. Havia inúmeros relatos de pessoas que morriam durante o sono, ela não estava livre da ameaça da morte nem durante o repouso. Os lábios se abriram discretamente em um sorriso fraco, que desapareceu em instantes. Ela honestamente já não se importava em viver ou morrer. Cada novo dia era quase igual ao anterior, só os filmes eram diferentes. Quando fechou os olhos naquela noite, Maura nem desconfiava do que a esperava quando despertasse. Tudo seria diferente na próxima vez em que abrisse seus olhos.
Já estou curiosa para ler a continuação!
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