Outra vez a cortina fecha e o espetáculo acaba. Outra vez o mergulho profundo na madrugada.
Ando com a cabeça meio solta, meio no mundo da lua, meio em outro mundo qualquer. Se eu soubesse exatamente talvez lhes contasse, mas tenho me estranhado. A minha maior capacidade, eu acho que é essa de produzir quando não há sinais de esperança ou carros nas ruas. Os outros vislumbram passeios caros e eu fito solitariamente a lua. A noite passa e é quando a maioria se deita que eu me levanto. Desaparece a neblina e a fumaça, é quando tudo se ajeita que secretamente me entrego aos prantos.
Olha, essas lágrimas precisam cair do seu rosto, alguém me disse e a obviedade do conselho me deixou atônito. Cale essa sua maldita boca, idiota! Bradei em fúria, mas não havia interlocutor. Estaria eu pirando?
Não é de se estranhar. Estar desempregado é uma desgraça. Você perde a noção do tempo e o dia passa. Às vezes você faz malabarismo com as horas e se sente estranhamente produtivo. Às vezes tudo demora e você se pergunta suas razões em estar vivo. Um pingo de existencialismo no meio de uma tarde. Uma velha ferida repentinamente aberta novamente arde.
Ainda assim, eu tenho me preocupado com a minha memória. Lembro-me de coisas triviais e esqueço o que não deveria me esquecer. Recordo-me de países distantes, mas me perco do que deveria fazer. E a vida continua e eu aqui. Às vezes sinto que nunca mais serei capaz de sorrir.
É quando levanto ou me levantam que eu sinto o peso da sentença. Por tanto tempo fui tanto, mas eu já nem sei a diferença. E continuo como se me existisse uma obrigação em continuar. Desço até a esquina acompanhado por meu cachorro. Eu olho para os cantos. Ele mija nas moitas. Escutamos os uivos e os barulhos da noite silenciosa. Todos temem a madrugada, mas nós somos os donos dessas horas.
Em casa me vejo e tenho um sobressalto. Não sou um poema de Cecília, mas eu não tinha esse rosto assim tão magro. A barba falha, mas eu já nem ligo. Que é que me importa se alguém vai se sentir seduzido? Vou até a cozinha. O que faço para comer é suficiente para sobreviver, mas geralmente sinto fome. Que é que alimenta a alma do homem?
Os meus cabelos lembram o matagal de um terreno baldio. Meus olhos representam um vitral que me faz luz neste mundo sombrio. E eu sinto frio, mas não tanto assim, pois penso que outros estão congelando por aí. E daí? A sensibilidade própria possui mais representação fática do que qualquer notícia alheia. Se pensássemos sempre ao longe, não teríamos motivo para a felicidade e a vida seria sempre feia.
A madrugada entorpece meus sentidos e eu continuo com a cabeça tonta. Os objetos do quarto deitam seus olhos vítreos sobre mim, não se movem, julgam-me. Que é que há?
Cogito fazer uma reclamação formal, mas para quem endereçaria a carta? Para a ingrata que foi fria ou para o ex-amigo filho de uma puta. Eu fui correto até o fim, caí, mas vocês perderam a luta. Que é que há de errado comigo? Fui estender minhas roupas no varal e os cabides se enroscaram e me peguei xingando. Acontece é que é gostoso encher a boca para soltar um palavrão cabeludo, mas as cabides mães não são putas por seus pequenos filhos cabides.
Escrevo muito e digo pouco. Se meus dedos fossem minha língua, eles estariam roucos. Olha, talvez seja tempo de admitir que a noite infinita é uma ilusão. Olha, aproxima-se de mim e me mostra o que você diz ser horrível, sim, eu posso me chocar, mas não vou sair correndo, eu sei, você não está acostumada com esse tipo de homem aparecendo, mas, veja, eu só quero saber que sei o que sei, não, ilusões doem mais, não, sim, mas eu te falei a verdade, você precisa prestar atenção, sabe, eu não sei mais o que dizer, porém, eu sei que você devia me ouvir melhor. Olha, os olhos quase se esquecem de como olhar alguém tão brilhante depois de passar muito tempo no escuro. Do que é que eu não deveria estar falando?
Gasto palavras e impressões digitais para continuar com a escrita. A cabeça dói, mas a dor é bendita. Quanto mais meus sentidos dormem, mais se revela minha parte bonita. Não tenho medo do que me embriaga e nem do que me excita. Você foge ao perfil, mas, olha, eu decidi que você veio para ficar. Se quiser partir, tudo bem, mas eu nunca vou voltar. E madrugada adentro segui sentindo fome. Matando tempo, dentro, ao centro, eu fico enquanto o resto do mundo some.
Gasto o que resta de mim em mim, pois preciso continuar. Veja, você sabe que eu sei, mas, olha, talvez seja melhor se afastar. Não, você não entende ou pressupõe de maneira errada, seus silogismos são falhos, suas analogias são banais. Sou fácil de lidar e posso fazer qualquer pessoa feliz. Por outro lado sou vidro frágil, caco afiado e apontado, disposto a sangrar quem tentar a minha salvação. Se você descobriu como ficar, cuida bem do meu coração. Não posso me demorar onde não há dedicação.
A manhã surge desbotada no horizonte e eu continuei esperando em vão. A luz se desdobrou pela cidade e iluminou o meu coração. Nuvens cobriram o céu, tornaram tudo nublado e eu vi as pessoas como são. É triste entender a vaidade, notar-me como um dos de verdade, partir para a ação. Sinto vontade de chorar, mas me abafo. Quase fui aprisionado, mas fui salvo. E a vida seguiu e eu fui caminhando como quem entende pouco sobre algo e nada sobre muitas coisas. Espalhei, porém, uma palavra que ouvi diversas vezes e ensombrou meus revezes.
Tudo que é fácil quebra. Talvez eu seja a exceção da regra.