Maria suspirou e repousou as mãos nos joelhos. Estava ofegante, faminta e exausta, afinal, há quantos dias estava andando? Não sabia dizer ao certo. Estava se sentindo entorpecida e tentava se lembrar melhor das coisas. Tinha convicção de que estava brincando com Gentil no quintal antes de estar aqui, embora não soubesse onde era aqui. Maria levou a mão destra até o pingente na corrente que carregava no pescoço e sentiu um conforto familiar ao apertar o pequeno objeto. Estava tudo bem. O colar era um lembrete para seguir em frente em face das dificuldades, um amuleto da sorte, pois só os tolos não reconheciam a importância da sorte. Ela pressentia que Gentil estava vivo e a clareza de sua objetividade era absolutamente ingênua e inexplicável. Só voltaria acompanhada de seu coelho branco e cinza. Maria sorriu. Gentil era gentil, como bem dizia o seu nome, mas era ainda delicado e afável. Tinha olhos amendoados e escuros, como aquele chocolate de uma marca específica da qual não recordava o nome. O seu coelho não era como os coelhos brancos de olhos vermelhos das canções infantis, aliás, a garota sentia que havia uma espécie de conspiração silenciosa entre os coelhos brancos, como se eles não suportassem a presença dos demais animais e até de seus coelhos semelhantes, mesmo que no final das contas todos defecassem bolinhas marrons com a estética de cereal matinal. Havia algo de suspeito nos olhos verdes que se tornavam vermelhos apenas para se tornarem azuis no instante seguinte.
Maria dava longas e deliciosas gargalhadas quando via Gentil saindo dos buracos que ele cavava no quintal. O coelho, como se a entendesse, fitava-a, sério, mas voltava aos buracos, como quem buscasse novos motivos para se sujar e para fazer a doce Maria sorrir. A menina geralmente acompanhava as peripécias do roedor com uma alegria admirável e com aplausos contidos, como se fosse uma lady que vivera séculos antes. Subitamente a felicidade de Maria era interrompida por um acesso de tosses fortes e contrações pesadas no estômago. Arfava com dificuldades e esperava, sempre com um otimismo marcante, que a crise passasse. Os médicos falhavam em diagnosticar qual seria a doença de Maria, porém, ela não os odiava por isso. Sabia que suas duas irmãs sonhavam com a sua cura, mas havia perdoado o mundo todo por antecipação, mesmo quando o mundo falhava tão feio às vezes. Maria sabia que o mundo não acertava com todas as pessoas e que nem mesmo a religião, fuga óbvia dos ingênuos, continha respostas para tanta dor. Em regra todas as promessas mundanas visavam conter o dano. Maria não ficou brava com Gentil quando ele entrou por um buraco e apareceu fora do jardim de sua casa, perto da rua onde passavam os carros. Ela apenas sentiu uma pontada de medo. Os veículos eram perigosos, pois as pessoas estavam sempre apressadas. Maria então se esgueirou pela parte mais baixa do muro e agradeceu pela sorte de conseguir acompanhar o seu amigo. Era mais uma aventura dos dois. Queria abraçar o coelho e sentir, a partir dos pelos quentinhos em contato com o corpo, a renovação da paz com tudo. Queria que em seu coração aflorassem apenas bons sentimentos.
Maria não entendia para onde Gentil queria ir. Eles sempre haviam sido tão felizes naquele quintal e naquela casa; havia ali mais vida e amor do que em tantos outros lares ao redor do planeta. Como era a vida daqueles que não tinham um lar assim? Gentil, entretanto, desfrutava deste privilégio. A garota suspirou. Era verdade que Maria queria compreender seu coelho, mas se resignava em aceitar sua decisão, pois às vezes amar significava confiar absolutamente, mesmo sem ver. Gentil não tinha pena de Maria. Sempre a fitava fixamente, olhos com olhos, como dois iguais. Obviamente, por ter polegares e mãos, às vezes Maria limpava os vegetais e legumes na cozinha e levava até Gentil. Os dois comiam juntos, partilhavam a refeição e nunca pareciam satisfeitos. A hora da refeição era um momento de intimidade compartilhada entre aqueles dois amigos. Se havia alimentos, eles estavam ainda comendo, até que não restasse nada. Mastigavam pacientemente, prestando atenção em cada mordida, como se nunca tivessem um compromisso posterior. Maria riu com o comentário de alguém que uma vez lhe disse que ela seria o orgulho da nutricionista futuramente. Não sabia o que isso queria dizer, entretanto, o gesto muscular do sorriso, o conforto quente que provinha da ternura, aquele tanto de amor fazia com que Maria sorrisse por reflexo. Corresponder ao amor verdadeiro quando se ama de volta é apenas um reflexo do corpo, como um espirro. Amar e ser correspondido é uma ação involuntária e uma grande sorte. Maria se flagrava feliz diante dos elogios e repetia mentalmente a palavra “nutricionista”. Sorria exultante e cantarolava baixo, ainda que desconhecesse o significado daquelas lisonjas.
Maria sentiu a areia entre os dedos e subitamente se assustou. Toda sensação nova potencialmente era aterrorizante, mas só nos primeiros minutos. Respirou fundo e sentiu a brisa em seus cabelos; o chão se desfazendo em grãos microscópicos sob os pés. Sentiu uma tranquilidade enorme e envolvente percorrendo sua corrente sanguínea. Estava satisfeita. Tudo era azul, pacífico e de repente seus ouvidos captaram algo a se quebrar, mas era diferente do vidro ou da porcelana. O reflexo de Maria não foi tapar as orelhas e sim buscar a origem dos sons. O que se quebrava continuamente eram as ondas e ela se lembrou que um dia alguém havia lhe dito que havia uma piscina imensa, quase infinita, feita apenas de água salgada. Sentiu uma vontade de beber a onda, de molhar os cabelos, de se entregar ao que era novo. Também haviam lhe dito que ao anoitecer, este oceano ou mar, refletia o céu e fazia uma imitação das estrelas. Maria estava com sede e a curiosidade fez com que ela avançasse mais um passo na direção do mar. Instintivamente olhou para o sol e perdeu a visão por um instante. Tudo se ofuscou. Piscou forte então para que as cores sumissem e. Gentil estava na areia branca também, mas distante o bastante para que ela sentisse um aperto no coração. Queria o seu coelhinho o quanto antes. Alguém outra vez disse que só o amor não bastava, porém, se nem o amor era uma garantia, o que seria? Sentiu um aperto no peito. Precisava de Gentil. Gritou-lhe e disparou o mais rápido que podia em sua direção. O roedor esperou pacientemente, mas quando Maria estava perto de o alcançar, ele saiu saltitando em alta velocidade para longe dela.
Maria oscilava entre a frustração e o entusiasmo. Acreditava que o coelho estava apenas brincando com ela, afinal, essa era a eterna dinâmica deles. Corriam e corriam, brincavam e brincavam, comiam lentamente os vegetais, legumes e frutas, os orgulhos da nutricionista, ela pensava na palavra e ria com graciosidade antes de apagar em um sono acolhedor e profundo. Nunca sabia o que Gentil fazia após ela dormir, entretanto, o júbilo que sentia era inenarrável ao despertar. Quando abria vagarosamente os olhos, ela via Gentil repousando ao seu lado. Será que os coelhos dormiam? Maria não tinha certeza. Sempre que abria os olhos, ela evita com maestria produzir qualquer barulho, entretanto, o coelho a observava, como se só estivesse esperando que a pequena acordasse. Maria se indagava sobre há quanto tempo Gentil fazia parte de sua vida e se perdeu em lapsos fugazes de memórias confusas. Tinha oito anos, mas tinha doze, vinte, trinta e quatro, cinquenta e um, sessenta e nove, oitenta e dois. Havia acabado de nascer, de se formar, de se casar, de se arrepender, de ser feliz. Queria conectar as pessoas, queria desaparecer, queria ter mais amigos, queria ser mais sozinha, queria saber o que fazer, queria não ter que fazer coisa alguma. Tudo era vago, confuso e sombrio. Esta sensação lhe apavorava e Maria concluiu que pensar nessas coisas não levavam a lugar nenhum. Concluiu que precisava se concentrar em Gentil. A situação era séria e a garota não podia continuar correndo para sempre, a barriga doía, a garganta doía, a tosse estava pronta a lhe atormentar, assim, ela resolveu gritar o nome completo de seu camarada. Senhor Garboso Gentil, ela berrou, ao que o coelho parou novamente, como quem a esperaria. Estava no topo de uma colina verdejante e não se moveu. Se Gentil disparasse colina abaixo, ele poderia despistar Maria para todo o sempre. O roedor não se mexeu e dessa vez esperou a menina, que, enfim, o alcançou. Ela se postou de cócoras e afagou o pequeno corpo do coelho, curando-se de todos os males e angústias. Quando ergueu a cabeça, a garota se deparou com um belíssimo campo florido. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto em toda sua vida. Voltou os olhos ao coelho e pensou que, na verdade, o coelho era a coisa mais bonita e as flores vinham depois. Há coisas que transcendem o tempo. Há amizades que transcendem os mundos e as cronologias. Havia, afinal, um fato improvável: Gentil e Maria eram amigos ontem, hoje e seriam amigos para sempre. Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas eram lágrimas da mais pura alegria. O coelho estava com os olhos marejados também, mas a menina não notou. Gentil deu dois saltos curtos para o lado, como uma espécie de sinal e a encarou solenemente. De alguma forma a garota entendeu que voltariam com a brincadeira. Agora ele desceria na direção das flores e ela o seguiria. Estava tudo bem. Correriam e correriam, brincariam e brincariam e, após isso, comeriam os vegetais, as frutas e os legumes e em algum lugar alguém diria que são os orgulhos da nutricionista.
Gentil partiu em alta velocidade e Maria correu atrás dele. Não sabia explicar, mas respirava melhor e corria mais rápido. Gentil acelerava mais e mais e ela o seguia, acompanhava-o perfeitamente em corridas repletas de curvas acentuadas e saltos. Nunca mais tossiria. As flores exalavam um perfume doce e inebriante. Nunca mais sentiria dores. Seus músculos pareciam alegres com o esforço da corrida. Nunca mais haveria o desconforto chato de tantas ausências. Tudo o que perdemos é para a eternidade, até o dia do reencontro. Gentil continuava em uma corrida alucinada e Maria no seu encalço. Os dois corriam sem descanso, sem hesitação, sem remorsos. Correr era viver e viver era correr. Gentil Garboso era tão veloz que era quase inacreditável, mas a outra o seguia contente, em toda a glória de suas quatro patas. Dois coelhos corriam e brincavam incessantemente pelos campos de flores coloridos produzindo nuvens de poeira por onde passavam. Dois coelhos estavam destinados a correrem juntos para sempre, pois eram amigos pela eternidade e esperavam juntos para roerem rúculas e cenouras.