Gentil

            Maria suspirou e repousou as mãos nos joelhos. Estava ofegante, faminta e exausta, afinal, há quantos dias estava andando? Não sabia dizer ao certo. Estava se sentindo entorpecida e tentava se lembrar melhor das coisas. Tinha convicção de que estava brincando com Gentil no quintal antes de estar aqui, embora não soubesse onde era aqui. Maria levou a mão destra até o pingente na corrente que carregava no pescoço e sentiu um conforto familiar ao apertar o pequeno objeto. Estava tudo bem. O colar era um lembrete para seguir em frente em face das dificuldades, um amuleto da sorte, pois só os tolos não reconheciam a importância da sorte. Ela pressentia que Gentil estava vivo e a clareza de sua objetividade era absolutamente ingênua e inexplicável. Só voltaria acompanhada de seu coelho branco e cinza. Maria sorriu. Gentil era gentil, como bem dizia o seu nome, mas era ainda delicado e afável. Tinha olhos amendoados e escuros, como aquele chocolate de uma marca específica da qual não recordava o nome. O seu coelho não era como os coelhos brancos de olhos vermelhos das canções infantis, aliás, a garota sentia que havia uma espécie de conspiração silenciosa entre os coelhos brancos, como se eles não suportassem a presença dos demais animais e até de seus coelhos semelhantes, mesmo que no final das contas todos defecassem bolinhas marrons com a estética de cereal matinal. Havia algo de suspeito nos olhos verdes que se tornavam vermelhos apenas para se tornarem azuis no instante seguinte.

            Maria dava longas e deliciosas gargalhadas quando via Gentil saindo dos buracos que ele cavava no quintal. O coelho, como se a entendesse, fitava-a, sério, mas voltava aos buracos, como quem buscasse novos motivos para se sujar e para fazer a doce Maria sorrir. A menina geralmente acompanhava as peripécias do roedor com uma alegria admirável e com aplausos contidos, como se fosse uma lady que vivera séculos antes. Subitamente a felicidade de Maria era interrompida por um acesso de tosses fortes e contrações pesadas no estômago. Arfava com dificuldades e esperava, sempre com um otimismo marcante, que a crise passasse. Os médicos falhavam em diagnosticar qual seria a doença de Maria, porém, ela não os odiava por isso. Sabia que suas duas irmãs sonhavam com a sua cura, mas havia perdoado o mundo todo por antecipação, mesmo quando o mundo falhava tão feio às vezes. Maria sabia que o mundo não acertava com todas as pessoas e que nem mesmo a religião, fuga óbvia dos ingênuos, continha respostas para tanta dor. Em regra todas as promessas mundanas visavam conter o dano. Maria não ficou brava com Gentil quando ele entrou por um buraco e apareceu fora do jardim de sua casa, perto da rua onde passavam os carros. Ela apenas sentiu uma pontada de medo. Os veículos eram perigosos, pois as pessoas estavam sempre apressadas. Maria então se esgueirou pela parte mais baixa do muro e agradeceu pela sorte de conseguir acompanhar o seu amigo. Era mais uma aventura dos dois. Queria abraçar o coelho e sentir, a partir dos pelos quentinhos em contato com o corpo, a renovação da paz com tudo. Queria que em seu coração aflorassem apenas bons sentimentos.

            Maria não entendia para onde Gentil queria ir. Eles sempre haviam sido tão felizes naquele quintal e naquela casa; havia ali mais vida e amor do que em tantos outros lares ao redor do planeta. Como era a vida daqueles que não tinham um lar assim? Gentil, entretanto, desfrutava deste privilégio. A garota suspirou. Era verdade que Maria queria compreender seu coelho, mas se resignava em aceitar sua decisão, pois às vezes amar significava confiar absolutamente, mesmo sem ver. Gentil não tinha pena de Maria. Sempre a fitava fixamente, olhos com olhos, como dois iguais. Obviamente, por ter polegares e mãos, às vezes Maria limpava os vegetais e legumes na cozinha e levava até Gentil. Os dois comiam juntos, partilhavam a refeição e nunca pareciam satisfeitos. A hora da refeição era um momento de intimidade compartilhada entre aqueles dois amigos. Se havia alimentos, eles estavam ainda comendo, até que não restasse nada. Mastigavam pacientemente, prestando atenção em cada mordida, como se nunca tivessem um compromisso posterior. Maria riu com o comentário de alguém que uma vez lhe disse que ela seria o orgulho da nutricionista futuramente. Não sabia o que isso queria dizer, entretanto, o gesto muscular do sorriso, o conforto quente que provinha da ternura, aquele tanto de amor fazia com que Maria sorrisse por reflexo. Corresponder ao amor verdadeiro quando se ama de volta é apenas um reflexo do corpo, como um espirro. Amar e ser correspondido é uma ação involuntária e uma grande sorte. Maria se flagrava feliz diante dos elogios e repetia mentalmente a palavra “nutricionista”. Sorria exultante e cantarolava baixo, ainda que desconhecesse o significado daquelas lisonjas.

            Maria sentiu a areia entre os dedos e subitamente se assustou. Toda sensação nova potencialmente era aterrorizante, mas só nos primeiros minutos. Respirou fundo e sentiu a brisa em seus cabelos; o chão se desfazendo em grãos microscópicos sob os pés. Sentiu uma tranquilidade enorme e envolvente percorrendo sua corrente sanguínea. Estava satisfeita. Tudo era azul, pacífico e de repente seus ouvidos captaram algo a se quebrar, mas era diferente do vidro ou da porcelana. O reflexo de Maria não foi tapar as orelhas e sim buscar a origem dos sons. O que se quebrava continuamente eram as ondas e ela se lembrou que um dia alguém havia lhe dito que havia uma piscina imensa, quase infinita, feita apenas de água salgada. Sentiu uma vontade de beber a onda, de molhar os cabelos, de se entregar ao que era novo. Também haviam lhe dito que ao anoitecer, este oceano ou mar, refletia o céu e fazia uma imitação das estrelas. Maria estava com sede e a curiosidade fez com que ela avançasse mais um passo na direção do mar. Instintivamente olhou para o sol e perdeu a visão por um instante. Tudo se ofuscou. Piscou forte então para que as cores sumissem e. Gentil estava na areia branca também, mas distante o bastante para que ela sentisse um aperto no coração. Queria o seu coelhinho o quanto antes. Alguém outra vez disse que só o amor não bastava, porém, se nem o amor era uma garantia, o que seria? Sentiu um aperto no peito. Precisava de Gentil. Gritou-lhe e disparou o mais rápido que podia em sua direção. O roedor esperou pacientemente, mas quando Maria estava perto de o alcançar, ele saiu saltitando em alta velocidade para longe dela.

            Maria oscilava entre a frustração e o entusiasmo. Acreditava que o coelho estava apenas brincando com ela, afinal, essa era a eterna dinâmica deles. Corriam e corriam, brincavam e brincavam, comiam lentamente os vegetais, legumes e frutas, os orgulhos da nutricionista, ela pensava na palavra e ria com graciosidade antes de apagar em um sono acolhedor e profundo. Nunca sabia o que Gentil fazia após ela dormir, entretanto, o júbilo que sentia era inenarrável ao despertar. Quando abria vagarosamente os olhos, ela via Gentil repousando ao seu lado. Será que os coelhos dormiam? Maria não tinha certeza. Sempre que abria os olhos, ela evita com maestria produzir qualquer barulho, entretanto, o coelho a observava, como se só estivesse esperando que a pequena acordasse. Maria se indagava sobre há quanto tempo Gentil fazia parte de sua vida e se perdeu em lapsos fugazes de memórias confusas. Tinha oito anos, mas tinha doze, vinte, trinta e quatro, cinquenta e um, sessenta e nove, oitenta e dois. Havia acabado de nascer, de se formar, de se casar, de se arrepender, de ser feliz. Queria conectar as pessoas, queria desaparecer, queria ter mais amigos, queria ser mais sozinha, queria saber o que fazer, queria não ter que fazer coisa alguma. Tudo era vago, confuso e sombrio. Esta sensação lhe apavorava e Maria concluiu que pensar nessas coisas não levavam a lugar nenhum. Concluiu que precisava se concentrar em Gentil. A situação era séria e a garota não podia continuar correndo para sempre, a barriga doía, a garganta doía, a tosse estava pronta a lhe atormentar, assim, ela resolveu gritar o nome completo de seu camarada. Senhor Garboso Gentil, ela berrou, ao que o coelho parou novamente, como quem a esperaria. Estava no topo de uma colina verdejante e não se moveu. Se Gentil disparasse colina abaixo, ele poderia despistar Maria para todo o sempre. O roedor não se mexeu e dessa vez esperou a menina, que, enfim, o alcançou. Ela se postou de cócoras e afagou o pequeno corpo do coelho, curando-se de todos os males e angústias. Quando ergueu a cabeça, a garota se deparou com um belíssimo campo florido. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto em toda sua vida. Voltou os olhos ao coelho e pensou que, na verdade, o coelho era a coisa mais bonita e as flores vinham depois. Há coisas que transcendem o tempo. Há amizades que transcendem os mundos e as cronologias. Havia, afinal, um fato improvável: Gentil e Maria eram amigos ontem, hoje e seriam amigos para sempre. Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas eram lágrimas da mais pura alegria. O coelho estava com os olhos marejados também, mas a menina não notou. Gentil deu dois saltos curtos para o lado, como uma espécie de sinal e a encarou solenemente. De alguma forma a garota entendeu que voltariam com a brincadeira. Agora ele desceria na direção das flores e ela o seguiria. Estava tudo bem. Correriam e correriam, brincariam e brincariam e, após isso, comeriam os vegetais, as frutas e os legumes e em algum lugar alguém diria que são os orgulhos da nutricionista.

            Gentil partiu em alta velocidade e Maria correu atrás dele. Não sabia explicar, mas respirava melhor e corria mais rápido. Gentil acelerava mais e mais e ela o seguia, acompanhava-o perfeitamente em corridas repletas de curvas acentuadas e saltos. Nunca mais tossiria. As flores exalavam um perfume doce e inebriante. Nunca mais sentiria dores. Seus músculos pareciam alegres com o esforço da corrida. Nunca mais haveria o desconforto chato de tantas ausências. Tudo o que perdemos é para a eternidade, até o dia do reencontro. Gentil continuava em uma corrida alucinada e Maria no seu encalço. Os dois corriam sem descanso, sem hesitação, sem remorsos. Correr era viver e viver era correr. Gentil Garboso era tão veloz que era quase inacreditável, mas a outra o seguia contente, em toda a glória de suas quatro patas. Dois coelhos corriam e brincavam incessantemente pelos campos de flores coloridos produzindo nuvens de poeira por onde passavam. Dois coelhos estavam destinados a correrem juntos para sempre, pois eram amigos pela eternidade e esperavam juntos para roerem rúculas e cenouras.

Os trapezistas.

– O ato do trapezista é o mais lindo por ser o mais arriscado.
– Você acha que a beleza está condicionada ao risco?
– A vida está condicionada ao risco. Quem não se arrisca passa uma vida inteira destinado a inércia ou ao silêncio dos covardes.
– Você está afiado.
– Estou eu.
– Afiado. O que é isso de silêncio e covardia? Bom, eu achei que ao menos os trapezistas dispensassem a filosofia e os pensamentos.
– Quem sabe dispensem? Quem sabe não seja eu a única razão meditativa por de trás de um ato puramente instintivo?
– Instintivo nada! Eu não quis dizer que algo que não receba pensamentos precise ser necessariamente instintivo. Bom, os trapezistas também treinam, ensaiam para valer e só então se revelam no palco principal.
– Todo ensaio é o ato principal quando um erro leva à morte.
– Você perde a magia do espetáculo com tantas conjecturas! Bom, para mim o ato do trapézio não é somente sobre o risco e sim sobre confiança. Isso quer dizer que, se quem deveria te segurar, porventura, não te segura, você perde tudo.
– O risco! O trapézio é como uma história de amor. Você se arrisca e espera que alguém do outro lado segure a sua mão. A vida inteira pendendo em um salto. Tudo está em jogo.
– O trapézio como uma analogia aos amores. Você anda bastante criativo, mas nota que este número do show não foi feito para durar?
– Desde quando a finitude é motivo para a descrença?
– Logo chegam os palhaços que você tanto detesta. Por mais lindo que seja este ato, logo as cortinas se fecham, a iluminação muda e tudo se altera.
– Você parece subestimar o ato dos trapezistas. Se todo ensaio é ato principal para um trapezista, ama-se não somente quando os holofotes estão mirados nele.
– A vida inteira dependendo de um salto… Eu não sei se gosto da ideia. Se é como você disse, como conseguirei acreditar nas histórias, poesias e romances com esse tipo de exemplo? O que dignificará o amor sendo que ele possui vida tão curta? E se eu quiser uma vida diferente dessa?
– Qual seria a sua motivação em fugir do amor?
– Sobrevivência?
– Amar é um salto no escuro. É simultaneamente temer a queda e desejar cair, entretanto, por mais que seja difícil fazer com que esse tipo de discernimento caiba na razão, amar é alcançar o inalcançável.
– Posso viver sem isso, obrigada.
– Só uma pessoa que nunca amou diria isso, mas se você pode compreender como é sutil e perfeito o ato do trapezista, você pode compreender o amor.
– Não foi feito para durar, olha lá ao longe, os palhaços estão chegando e logo esse seu papo todo vai para o beleléu.
– Esqueça os palhaços. É o que eu tento fazer. Você provavelmente está certa. O trapézio é um momento mágico no circo, mas é fugaz. O que você não pode entender é que aos amantes verdadeiros o tempo nunca é curto, mesmo quando as histórias são contadas em poucos capítulos e se encerram de repente. Há quem tenha passado uma vida inteira esperando amar e tenha amado apenas um mês, mas que trocaria estes trinta dias por todo o resto.
– Você trocaria?
– Sim.
– Uau! Nenhuma hesitação.
– E você?
– Não sei…. Eu acho que ainda não vivi isso. Como você quer me convencer a crer no amor se me dá razão no argumento? Como você espera que eu deposite tudo em algo que não vejo? Sou desprovida de dons circenses. Não sou trapezista.
– Eu não quero te convencer de nada, mas você nunca voará se não tirar os pés do chão. Faz-se necessário deixar o ninho. Já ouviu dizer que viver é perigoso? Há um mundo inteiro oculto depois da zona de segurança.
– Então não posso optar por uma vida segura e estável?
– Qualquer ilusão é segura e estável. O voo é imprevisível, bem como a magia. Para explorar novos horizontes é preciso pular.
– É diferente saltar para tocar o teto e saltar sem ter a menor noção de qual é a altura da queda.
– Pois lhe digo que o impacto da queda pode ser terrível, insuperável. Existem os que nunca se recuperam…
– Você está me fazendo odiar os trapezistas da maneira como você odeia os palhaços.
– A única maneira de amar é pular na escuridão e esperar esperançosamente que alguém segure a sua mão.
– Eu ainda tenho medo do escuro.
– Um dia isso tudo passa. É lindo, emocionante, requer esforço e prática, mas por que temer a vida e o amor se o ato dos trapezistas é curto e acaba? Mais vale apostar tudo do que viver eternamente condenado ao nada.
– Você está afiado!
– Estou eu…

Otário

            Engana-se quem pensa que é impossível assaltar um otário logo pela manhã. A aurora favorecia os êxitos.

            João Miguel subiu na duna mais alta para observar atentamente os transeuntes, porém não parecia interessado neles, afinal, nem eram tantos assim. Seu ar era despreocupado e sua face não demonstrava a mínima intenção do que pretendia fazer. Seus olhos grandes e agudos encaravam o esverdeado mar de Cabo Frio. João sempre se convencia de que era um grande ator, embora ninguém nunca tivesse lhe dito isso especificamente, mas entender o que se passava em seus pensamentos era algo especialmente complicado, principalmente pelo fato de que agia costumeiramente por instinto e ignorava grandes reflexões. Passou a faca da mão destra para a canhota em gestos distraídos. Havia a utilizado o instrumento vezes demais para não saber como agir e reagir. Cada dia que passa chego mais cedo na praia. Não consigo mais ficar em casa. É claro que não consegue, seu otário, cale a boca, gringo. Vai fazer alguma coisa? Foi o que eu pensei. Cale a boca, otário. Isso… me obedeça. É melhor chegar cedo do que tarde. Deus ajuda quem cedo madruga, mas está muito cedo. Não sei se adianta chegar aqui tão cedo. Não sei se…

João olhou para o relógio que marcava 5h57 e refletiu que os cidadãos com jornadas ordinárias de trabalho geralmente começavam às sete ou sete e meia ou até mesmo às oito horas no período matutino. Era justo categorizar e estereotipar ladrões como indivíduos que queriam uma vida fácil se alguns deles se levantavam antes de todo o resto? João riu e se lembrou de não mostrar muito os dentes. Sua presença era discreta, mas seu sorriso era perfeito e brilhante, luzia, assim, sorrir era um gesto impossível. A mãe e a irmã com os dentes tortos e amarelados se enraiveciam pelo que parecia ser um capricho de Deus para o filho caçula que nunca havia ido ao dentista. Os olhares atentos continuavam sua função e em movimentos lestos, João acompanhava a movimentação pela areia. Definitivamente os velhos com suas panças redondas e seus peitorais grisalhos e cabeludos eram predominantes em quantidade àquele horário na praia. Muitos iam na direção da Praia do Forte, quase todos, na realidade e, apenas uns pouquíssimos percorriam o sentido contrário. João estimava que uma centena de idosos já tivesse percorrido a praia logo cedo, quase todos homens, bom, as mulheres estavam certas, eram alvos relativamente mais fáceis e deveria caminhar pelo calçadão onde se avistava viaturas da polícia com notável periodicidade. Elas podem reagir, você bem sabe, quase se fodeu por causa disso, você sabe, é melhor não tentar fazer tudo o que você vê os outros fazendo, otário, você não passa de um otário, mereceu o chifre que levou, otário, segure a onda, o problema é que você é frouxo, cuidado, tome cuidado, não, você só precisa ser um pouco mais vingativo, sim, mais resoluto e duro e irritadiço. Cada dia que passa chego mais cedo na praia… estou pensando muito. Desse jeito vou ficar com dor de cabeça. Preciso parar de pensar.  

Outra vez o relógio: 6h25. Um grupo de mulheres passa e mais alguns velhos em seguida. João reflete que Cabo Frio é realmente uma cidade de aposentados e não fosse pelo mar, a cidade certamente cheiraria a naftalina, pelo menos em baixa temporada. Obviamente em alta temporada qualquer cidade atulhada de gente cheira a suor e lixo. João sorri por alguns segundos, mas retoma o semblante sério com a aparição de seu alvo. Um homem jovem com o celular na mão, erro de principiante, um típico otário dando mole. Guarda a faca no bolso e deixa as mãos segurarem a alça da mochila. Sempre leva uma mochila para o caso de furtar algum objeto grande, mas há só uma garrafa d’água dentro dela. João nunca se planeja e a mãe costuma lhe dizer que isso é um erro grave e que será sua grande ruína, mas com uma espécie de birra insistente na cabeça, João desliza pela duna de areia e desce subitamente, sem pensar, sem se preparar e apenas improvisa no que pretende ser outro assalto.

– Oi. – João diz e posiciona o corpo de uma maneira que dificulte a reação de fuga do homem. Será que ele é desses que foge ou que encara?

– Oi. – Resposta seca. Não é um bom sinal. Já está desconfiando das minhas intenções. Talvez eu devesse ter sacado a faca antes.

– Meu nome é Davi e o seu? – A desconfiança cresce. João pressente que será mais trabalhoso do que pensara. Não conseguiu reparar tão bem no modelo do celular. A tentativa de furto com a possibilidade de confronto vale mesmo o risco? O rapaz é mais alto e musculoso que ele.

– Victor. – Isso não vai nada bem. Tenho que resolver isso logo. Já consegui muito tempo sem que um idoso aparecesse.

– Você é daqui, Victor?

– Sou.

– Daqui mesmo? Daqui?

– Daqui mesmo. Moro perto daqueles prédios ali, viu? – João não se virou. Victor não parecia ser o cara mais inteligente do mundo, na verdade, tinha uma cara de otário e estava sendo mais perspicaz do que João supunha que poderia ao apontar uma direção. O celular qual segurava descuidadamente instantes antes agora estava longe do alcance das mãos de João. O ladrão estava travado. – Davi, com licença, mas eu não tenho o hábito de parar minhas corridas matinais para tagarelar com estranhos e eu nunca te vi na vida. Vou nessa! – O sujeito correu atrás de um desses atletas idosos que passava no mesmo momento. Se fosse tentar algo no desespero também teria que lidar com o velho.

– Peraí! Vamos conversar um pouquinho! – Disse, mas a voz perdeu a força com surpreendente velocidade e o homem foi diminuindo conforme se afastava para partes distantes da praia.

João Miguel retoma seu posto após escalar outra vez a duna. Havia tempos que uma tentativa de furto não se revelava tão destrambelhada. O homem era alto e parecia capaz de revidar ou perseguir, mas se ele tivesse descido com a faca na mão a história seria outra. Por que diabos havia hesitado? O problema não estava na vítima e sim nele. Os pensamentos falavam mais alto do que nunca e João já não conseguia se evitar. As tantas noites anteriores vinham com um lembrete de susto e as imagens eram vívidas. A mãe espanca a filha porque acha que o comportamento dela é indecente. Ela pensa que a filha é uma vagabunda desde pegou o namorado argentino dela se masturbando espiando a garota na porta do quarto. A culpa não podia ser do namorado, mas podia ser da irmã. João tenta inflamar a irmã com a mesma raiva que sente, sugere que saiam de casa, a irmã dá de ombros, diz que Pablo já a espiona há anos e não há o que fazer e, além do mais, a mãe está velha e é melhor não comprar briga, João cerra os punhos como se fosse socar alguém ou alguma coisa, sente uma raiva latente da própria irmã, mas quer mesmo matar Pablo, João provoca novamente a irmã e ela dá de ombros, larga disso seu garoto otário, agora João desconfia de que a irmã e o argentino tenham relações sexuais, João pergunta para a irmã se ela e Pablo compartilham de alguma intimidade, ela manda ele ir tomar no cu, João insiste de maneira truculenta, ela revela que namora Hugo, João pergunta se Hugo não era o melhor amigo gay, se ele fosse gay não me comia, João fica em silêncio e perde a animosidade, mas pergunta o que ela esconde sobre Pablo, a irmã manda João ir pra casa do caralho, a mãe escuta a gritaria e chega xingando a garota, pois sente raiva dela, João não aguenta mais tanto barulho…

João Miguel restabelece agora sua conexão com a realidade. Odeia quando pensamentos insistentes surgem na cabeça e não o deixam. Sabe que faria qualquer coisa para não pensar. Odeia a irmã. Era sua pessoa favorita no mundo e agora não passa de uma vagabunda que dá para o argentino escroto e para o namorado viadinho. Odeia a mãe. Espanca a irmã gratuitamente só por acreditar que ela dá trela para o gringo fudido e vagabundo. Uma vez a mãe deformou a face da irmã de tanta pancada. Odeia Pablo acima de tudo e de todos. Sabe que o argentino espanca a mãe quando chega bêbado. O desgraçado do argentino já bateu nele também. Na irmã não bate, mas possui intenções secretas. Pablo é mais robusto, mais imponente e se comporta como se não tivesse medo de morrer. A próxima vítima surge diante de seus olhos.

Ela é mais atenta que o primeiro rapaz qual abordara para assaltar, mas desta vez ele vai descer logo com a faca e vai pegar o que precisa e ir para casa. Não, talvez não vá para casa. Em casa eles estarão lá, todos os três, talvez mais gente, em casa eles vão me perseguir e me machucar e ninguém liga para os meus esforços e nem dá a mínima pra minha vida, não. João escorrega pela areia e desliza pela duna. Ninguém dá a mínima pra mim, duas vagabundas e um argentino brocha filho da puta, não, eu ainda chego com o que furto com o meu esforço e tenho que comprar comida pra todo mundo, foda-se, cambada de idiota, eu vou alugar meu canto e não ter que pensar em ninguém batendo em ninguém, vou arrumar uma namorada e… João continua seu avanço na direção da mulher. As namoradas que eu tive me traíram, é porque você não passa de um otário, não, não se pode confiar em mulher, minha mãe mesmo não confia na filha dela e talvez esteja certa, se ela tá dando pro gringo imagino pra quem mais ela não tá dando, não se pode confiar em mulher e agora aquele cara lá quer dizer que é meu pai, argentino filho da puta, meu pai sumiu quando eu nem me lembro, ninguém mais pode ser meu pai, ele nunca vai voltar, não se pode confiar nos pais também e nem nos homens, os homens são ainda menos confiáveis que as mulheres, droga, o que foi, seu otário? Cale-se! Eu tenho que fazer tudo sozinho e é isso, João para diante da mulher, ninguém me valoriza, ninguém é confiável, ninguém se importa e parece que ninguém liga para a minha vida, eu não tenho alguém que realmente me ame, eu, para agora, para de pensar, não grita, porra, eu odeio esse argentino cuzão, eu espero que ele morra e quero que minha mãe pague por espancar a minha irmãzinha de graça e quero que uma bomba, cala boca, para de pensar, eu quero que minha irmã fuja com o melhor amigo gay dela e morra com a bomba, ninguém nessa vida vale a pena, para, furta o que tem que furtar e vai pra casa, olha a cara dela, para de gritar, parou de gritar, ela não tá entendendo, fala alguma coisa, fala, vai dividir a recompensa com sua mãe, fala alguma coisa, o argentino viado tá de olho no que você trouxe, parou de gritar, caralho, não trava duas vezes no mesmo dia, não…

– Isso é um assalto! Calminha… Passa já suas coisas que eu não vou te machucar, eu prometo. – Nenhuma resposta. Você pensa que pode me ignorar? – Eu disse que isso é um assalto! Entrega suas coisas, puta! – Nenhuma resposta. João começa a sacodir vigorosamente o corpo da mulher e só então percebe que está deitado acima da cintura dela e os dois estão na areia da praia. O branco suave da praia tingido de escarlate e as ondas empurrando e puxando uma quantidade impressionante de sangue. João ainda se movimenta e nem percebe que está molhado por sangue e sal. Ele ainda desfere facadas sem nem perceber que está com a arma na mão. Os pensamentos não o alcançam e ele continua com uma facada após a outra. O braço ameaça travar e ele cai resignado acima do corpo morto da mulher.

Engana-se quem pensa que é impossível ser preso por assassinato na metade da manhã de uma quinta-feira.

O relógio marcava 8h12 e o rapaz João já estava algemado dentro de uma viatura policial. Não estava comovido com o assassinato ou desesperado com a prisão, mas as vozes que ecoavam no fundo de sua mente faziam com que ele tivesse vontade de se matar. Crianças cantavam em uníssono.

Otário, bundão,

não serve nem pra ser ladrão

Otário, bundão,

Partindo pra prisão,

Otário, cuzão,

Dentro do camburão,

Otário, imbecil

Até o argentino riu

Otário…

Otário.