Intuição.

Tinha um hábito velho, mas não envelhecido, hábito pronto, feito herança que a alma traz de longe. Outro passado, outro corpo, outro rosto, ainda que de uma forma complexa, vil, irreconhecível, eu compartilhasse a mesma essência que minha versão atual. O mundo mudara e meus hábitos metódicos permaneceram. Era de sorrisos fáceis, risadas altas, mas tratos longos, demorados. Sabia ser feito de qualquer coisa antiga e às vezes tinha que tirar a poeira de mim, como um livro esquecido no meio da prateleira, páginas amarelecidas pelo desgaste das décadas.

Por que é que me sinto vencido? Para onde foram tantos anos perdidos? Quase sempre não me sentia bem, mas tinha um talento raro de ouvir e entender, de olhar e ver, de tocar e fazer com que me sentissem. Fantasma de tantos mausoléus, eu arrepiava a todos, mas me sentia frio, solitário e distante. Como explicar aos outros que os outros não bastam? Como me confessar, sem ser ingrato, mantendo o tato, que não são eles que me faltam?

Obstinadamente, eu insistia em buscar a primeira verdade do mundo. Eu queria saber qual o rosto que a minha alma tinha antes da criação do Universo ou que magia, encanto, gesto fútil e estúpido, que fez um homem triste e inútil se apaixonar pelos versos. A poesia, a prosa, as frases, todo detalhe me encantava. Aprendi por coincidência a perseguir o rabo da palavra. Como quem pega um bicho fugidio, um peixe pescado, a palavra pode se debater. Ofereça-lhe ternura e escute o que você tem a se dizer.

Olha, que não se adivinhem os fins, pois o mais importante é o que há na jornada. Se todos nascem e morrem, nossa única obrigação é tentar desfrutar da própria estrada. Tudo sucede expansivo, crescente, dominante. Tentei pendurar minhas esperanças em outras pessoas, mas a verdade é que elas sempre precisaram mais de mim do que eu delas. Desenvolvi ainda novo uma relação prodigiosa com a solidão. Aprendi a preencher os espaços com silêncio ou música, assim, acostumei-me a ouvir o coração. Quem é que sabe de nós senão nós mesmos?

A Tristeza bateu a minha porta entre 2010 e 2014. Foram quatro anos de crises de vômito, mais de vinte e cinco internações. Antevi o destino último da Terra enquanto vomitava tudo o que havia comido e depois o que nem havia comido e depois a bile e depois qualquer líquido escuro, preto, que saía de dentro de mim. Isso é o que meus órgãos fizeram para me punir por não saber lidar com a raiva?

Nunca amansei, mas aprendi. Meu pai me dizia para sorrir mais, meu avô me dizia para sorrir mais, filho, você sorria tanto e o tempo inteiro. Como diria a eles que isso foi antes de ler os gestos e os olhares? A melancolia funda que se aloja atrás dos olhos, os medos, os segredos, tudo o que infla por dentro e pesa por fora. Nunca mais sorri igual antes, pois comecei a ser uma espécie de esponja e absorvia instintivamente todas as dores. Cada recorte mínimo de tragédia era meu e eu tentava puxar para mim. Quando a minha mãe chorava e se rasgava na época da perda do amor, do conforto, da vida, eu fazia uma dança estranha em momentos específicos, estrategicamente aguardados. A dor então cedia, uma rachadura de alegria em uma montanha de traumas, entretanto, por ali entrava a luz do sol e a gargalhada soluçante de minha mãe preenchia os ambientes. Que é que me importava vomitar oito, dez ou doze horas seguidas? Eu tinha uma relação formidável com a solidão e, bem, se eu acabasse perdendo, seria uma derrota. Não quer dizer que eu não lutava, certo?

Nunca amansei, entretanto, observar cautelosamente as pessoas me fez compreender. A vaidade, a alegria, o medo, o desejo, a inveja. Tudo isso passeava estrangeiro no campo dos meus pensamentos e eu aprendia cada vez mais. Não tardei em notar que a maioria não tinha coragem. É preciso se indispor se o objetivo é a justiça. Quantas vezes não se feriram comigo e retrucaram com o silêncio? Não é nossa obrigação adivinhar o que não nos contam.

Acostumei a não se acostumarem comigo. Uns tantos amigos jovens ficaram furiosos quando eu os interpelei a respeito de adultérios. Disseram-me, ei, somos adolescentes, ei, somos novos, ei, nesta idade podemos errar. A equação perfeita dessas idiotices não incluía o quanto estes erros eram premeditados. Não incluíam também a outra parte, como se fosse obrigação de alguém suportar uma traição, apenas pela juventude. Cresci tão correto e valente que muitas vezes quiseram me prensar contra a parede, como se eu não tivesse direito de ser covarde, de falhar. Sempre fui imperfeito, entretanto, recusei a agir sem inteligência, domando o instinto tosco de animal selvagem. Talvez cada um de nós tenha esse instinto puro, essa bravura indômita, essa coisa qualquer que não se sabe o nome ou o motivo, essa razão em ser irracional. Talvez cada um de nós acumule tantas obscuridades secretas que, cedo ou tarde, elas escorrem, mágoas, raivas, sonhos, zombarias. Tudo se mistura em um caldeirão de sentimentos.

Quem é que sabe o que quer? Quem é que sabe o que é? Quem está sozinho e deseja desesperadamente alguém? Quem não consegue seguir o próprio caminho por se ver refém? Vez ou outra ainda me enxergo no passado, calado, escurecido para dentro, entretanto, desprovido de instintos amargos, nu de qualquer coisa animalesca, apenas um menino distraído e com fama de desatento, apenas por prestar atenção em coisas que ninguém dá a mínima. Que é que somos além do que sonhamos?

A solidão é cômoda demais para os solitários. Quem está sozinho por covardia ou por consequências e não por escolha, está fadado a viver para sentir o peso das ausências. Quem preenche o espaço com companhias e nunca pôde estar sozinho, cedo ou tarde vai se perder e hesitar sobre o destino e o caminho. A solidão propositada lapida, enobrece e nos prepara para dividir o espaço quando outrem entra na nossa vida.

O trabalho anda me consumindo muito tempo nas últimas semanas, eu tenho ficado bom em resolver as coisas, estou melhor, mais rápido, mas não consigo dividir meu foco e a rotina implacável me esmaga. Como se persegue o sonho quando se esquece de sonhar? Tudo entra na frente do sonho maior. Entra antes o sono, o exercício físico, as obrigações de casa, a família, os amigos, a namorada, entra na frente ir ao banheiro ou beber água, entram antes os aniversários, os adversários, as distrações. Como seguir em linha reta com tantas confusões?

Confessei ao meu psicólogo que estava farto dos outros e que estava disposto a assumir uma atitude mais rebelde. Chega de ser babá, psicólogo, cuidador, amigo, conselheiro romântico. É preciso se virar sem a minha presença. Não que eu seja um anjo mal, radical, eu só optei por mudar um pouco o que era antes.

A sensação das sensações, o todo, não apenas a sombra, a inteireza, eu preciso entender, eu preciso me entender, abra a porta, deixe-me caminhar pelas ruas geladas nesta noite úmida ou dirigir a esmo sem pensar amanhã que a gasolina está cara, por favor, ouça a minha súplica, a tua súplica, eu preciso me entender, eu preciso entender, não apenas o superficial, mas o que existe além das regras, quero vislumbrar o que há além desta obediência cega, deixa-me apreciar a inversão, deixe-me uma vez trocar o dia pela noite, quero gritar na beira do mar ou na beira do parque, quero me estrear, antes que tudo isso se acabe e correr por aí, medir os barrancos e pular os muros, como se fosse adolescente outra vez, como quem cai e se suja e ri, por não temer nada, por não querer nada, deixa-me compartilhar o segredo com uma coruja, deixa-me olhar para este segredo do portão, este detalhe, lusco-fusco da criação, empresta-me tuas lentes para que eu possa olhar diferente e mudar meu jeito de mudar o jogo, entrego-me à sensação das sensações, sou uma peça pequena no todo.

Cuidado, pois a beleza não dura para sempre. Há coisas que você só pode ter agora e outras que só pode ter mais para frente. O passado não respeita o seu espaço e está presente. Só promete tomar cuidado para não perder seus motivos para sorrir. Não temos garantias de que o arrependimento não vai nos engolir. Somos apenas humanos contraditórios, complexos e incalculavelmente delicados. Preocupamo-nos com o futuro enquanto tememos o passado.

Este hábito envelhecido, nunca esquecido, é o que me faz ter a ousadia de buscar tudo o que eu quero. Não tenho dúvidas de que mereço e com paciência eu espero. Que meus sonhos me encontrem antes do próximo inverno. Desejo ardentemente tudo o que desejava antes. Se a idade é uma ilusão, eu aproveito minhas oportunidades e instantes. Nada me remete e nada se repete. Eu sei que preciso continuar brutalmente sincero e voraz, com meus olhos buscadores e vívidos, para sobreviver. Penso sobre o tempo e tento esquecer o relógio. Se me sinto diferente por dentro, posso existir fora do óbvio? O senso comum não me interessa. Anuir por praticidade, aceitar o pragmatismo de quem já perdeu a identidade, isso tudo me estressa. Se há só a jornada, meu objetivo deveria ser eu mesmo. Será que penso tanto em mim quanto deveriam ou ainda me devo? Será que tenho vivido sob as leis dos outros e esquecido o que tanto almejo? Já quase não penso sobre vitórias e derrotas, mas intuitivamente sei.

Não sonhar é perder.

Não escrever é perder.

Não ler é perder.

Desistir
de mim                                                                                                                                              é perder

E estou necessitado de uma vitória para acreditar mais uma vez.               

A história oculta

a história oculta
alguns detalhes
foi na cidade de Tebas
que teu olhar me fez
pedra
este episódio
ocorreu há milênios
quando tu era guerreira
e eu ainda era gênio
antes de me saber
ignorante
mil anos se passaram e
crescia a fome do meu desejo
tantas vezes me reencarnaram
sempre longe dos teus beijos
pisca rápido
olha
linha
pesca rápido
isca
até que um dia
agora
morde
sê minha
sem demora
a língua revela
alguns detalhes
complexos
exploro o teu corpo
completo
jorramos em uma explosão
simultânea
somos dois, porém um
crime perfeito incomum
a perícia oculta
alguns detalhes
repugnantes
cuspe,
esperma,
suor e
sangue
ninguém sabe
o que nunca perguntou
tudo é muito, não cabe
amar demais é
desamor
quem nunca se aprendeu
na madrugada se esquece
ontem, abril, natal,
no final enlouquece
nem os pintores são
exatamente o que pintam
você conhece o golpe do Machado
o interno não aguenta tinta
segue-me com os olhos
ora para que se quebre este meu espelho
eu tenho notado
querem-me de joelhos
dei tudo o que pude,
só não pude ir além
o querer ser quem se é, Paulo,
nunca nos deixa bem
tenho mostrado meu
rosto
tenho sido o fulgor
na noite escura
entretanto,
este meu brilho eterno
não dura
apaga-se a memória,
as lembranças,
esperanças,
dançamos a última vez
antes do estrago
se aproxima e me usa
medusa
empedernido
te espero em desespero
aceso como uma chama
me oferece teu corpo
mente que me ama
a gravida oculta
alguns detalhes
iludimo-nos com o voo,
mas estamos presos à regra
até a nossa rebeldia
é frágil e quebra
seguimos fixados ao chão,
escravos patéticos do coração
eu oculto
alguns detalhes
tenho insistido em
amar um mundo
que pretende me odiar
internamente só há uma verdade
um dia vou para nunca mais voltar
uma noite dessas durmo
sem a intenção de acordar
sorrio triste e resignado
antevejo o futuro e relembro o passado
a história oculta alguns detalhes
noutra tarde infinita
se reencontrarão os nossos
olhares.

Gentil

            Maria suspirou e repousou as mãos nos joelhos. Estava ofegante, faminta e exausta, afinal, há quantos dias estava andando? Não sabia dizer ao certo. Estava se sentindo entorpecida e tentava se lembrar melhor das coisas. Tinha convicção de que estava brincando com Gentil no quintal antes de estar aqui, embora não soubesse onde era aqui. Maria levou a mão destra até o pingente na corrente que carregava no pescoço e sentiu um conforto familiar ao apertar o pequeno objeto. Estava tudo bem. O colar era um lembrete para seguir em frente em face das dificuldades, um amuleto da sorte, pois só os tolos não reconheciam a importância da sorte. Ela pressentia que Gentil estava vivo e a clareza de sua objetividade era absolutamente ingênua e inexplicável. Só voltaria acompanhada de seu coelho branco e cinza. Maria sorriu. Gentil era gentil, como bem dizia o seu nome, mas era ainda delicado e afável. Tinha olhos amendoados e escuros, como aquele chocolate de uma marca específica da qual não recordava o nome. O seu coelho não era como os coelhos brancos de olhos vermelhos das canções infantis, aliás, a garota sentia que havia uma espécie de conspiração silenciosa entre os coelhos brancos, como se eles não suportassem a presença dos demais animais e até de seus coelhos semelhantes, mesmo que no final das contas todos defecassem bolinhas marrons com a estética de cereal matinal. Havia algo de suspeito nos olhos verdes que se tornavam vermelhos apenas para se tornarem azuis no instante seguinte.

            Maria dava longas e deliciosas gargalhadas quando via Gentil saindo dos buracos que ele cavava no quintal. O coelho, como se a entendesse, fitava-a, sério, mas voltava aos buracos, como quem buscasse novos motivos para se sujar e para fazer a doce Maria sorrir. A menina geralmente acompanhava as peripécias do roedor com uma alegria admirável e com aplausos contidos, como se fosse uma lady que vivera séculos antes. Subitamente a felicidade de Maria era interrompida por um acesso de tosses fortes e contrações pesadas no estômago. Arfava com dificuldades e esperava, sempre com um otimismo marcante, que a crise passasse. Os médicos falhavam em diagnosticar qual seria a doença de Maria, porém, ela não os odiava por isso. Sabia que suas duas irmãs sonhavam com a sua cura, mas havia perdoado o mundo todo por antecipação, mesmo quando o mundo falhava tão feio às vezes. Maria sabia que o mundo não acertava com todas as pessoas e que nem mesmo a religião, fuga óbvia dos ingênuos, continha respostas para tanta dor. Em regra todas as promessas mundanas visavam conter o dano. Maria não ficou brava com Gentil quando ele entrou por um buraco e apareceu fora do jardim de sua casa, perto da rua onde passavam os carros. Ela apenas sentiu uma pontada de medo. Os veículos eram perigosos, pois as pessoas estavam sempre apressadas. Maria então se esgueirou pela parte mais baixa do muro e agradeceu pela sorte de conseguir acompanhar o seu amigo. Era mais uma aventura dos dois. Queria abraçar o coelho e sentir, a partir dos pelos quentinhos em contato com o corpo, a renovação da paz com tudo. Queria que em seu coração aflorassem apenas bons sentimentos.

            Maria não entendia para onde Gentil queria ir. Eles sempre haviam sido tão felizes naquele quintal e naquela casa; havia ali mais vida e amor do que em tantos outros lares ao redor do planeta. Como era a vida daqueles que não tinham um lar assim? Gentil, entretanto, desfrutava deste privilégio. A garota suspirou. Era verdade que Maria queria compreender seu coelho, mas se resignava em aceitar sua decisão, pois às vezes amar significava confiar absolutamente, mesmo sem ver. Gentil não tinha pena de Maria. Sempre a fitava fixamente, olhos com olhos, como dois iguais. Obviamente, por ter polegares e mãos, às vezes Maria limpava os vegetais e legumes na cozinha e levava até Gentil. Os dois comiam juntos, partilhavam a refeição e nunca pareciam satisfeitos. A hora da refeição era um momento de intimidade compartilhada entre aqueles dois amigos. Se havia alimentos, eles estavam ainda comendo, até que não restasse nada. Mastigavam pacientemente, prestando atenção em cada mordida, como se nunca tivessem um compromisso posterior. Maria riu com o comentário de alguém que uma vez lhe disse que ela seria o orgulho da nutricionista futuramente. Não sabia o que isso queria dizer, entretanto, o gesto muscular do sorriso, o conforto quente que provinha da ternura, aquele tanto de amor fazia com que Maria sorrisse por reflexo. Corresponder ao amor verdadeiro quando se ama de volta é apenas um reflexo do corpo, como um espirro. Amar e ser correspondido é uma ação involuntária e uma grande sorte. Maria se flagrava feliz diante dos elogios e repetia mentalmente a palavra “nutricionista”. Sorria exultante e cantarolava baixo, ainda que desconhecesse o significado daquelas lisonjas.

            Maria sentiu a areia entre os dedos e subitamente se assustou. Toda sensação nova potencialmente era aterrorizante, mas só nos primeiros minutos. Respirou fundo e sentiu a brisa em seus cabelos; o chão se desfazendo em grãos microscópicos sob os pés. Sentiu uma tranquilidade enorme e envolvente percorrendo sua corrente sanguínea. Estava satisfeita. Tudo era azul, pacífico e de repente seus ouvidos captaram algo a se quebrar, mas era diferente do vidro ou da porcelana. O reflexo de Maria não foi tapar as orelhas e sim buscar a origem dos sons. O que se quebrava continuamente eram as ondas e ela se lembrou que um dia alguém havia lhe dito que havia uma piscina imensa, quase infinita, feita apenas de água salgada. Sentiu uma vontade de beber a onda, de molhar os cabelos, de se entregar ao que era novo. Também haviam lhe dito que ao anoitecer, este oceano ou mar, refletia o céu e fazia uma imitação das estrelas. Maria estava com sede e a curiosidade fez com que ela avançasse mais um passo na direção do mar. Instintivamente olhou para o sol e perdeu a visão por um instante. Tudo se ofuscou. Piscou forte então para que as cores sumissem e. Gentil estava na areia branca também, mas distante o bastante para que ela sentisse um aperto no coração. Queria o seu coelhinho o quanto antes. Alguém outra vez disse que só o amor não bastava, porém, se nem o amor era uma garantia, o que seria? Sentiu um aperto no peito. Precisava de Gentil. Gritou-lhe e disparou o mais rápido que podia em sua direção. O roedor esperou pacientemente, mas quando Maria estava perto de o alcançar, ele saiu saltitando em alta velocidade para longe dela.

            Maria oscilava entre a frustração e o entusiasmo. Acreditava que o coelho estava apenas brincando com ela, afinal, essa era a eterna dinâmica deles. Corriam e corriam, brincavam e brincavam, comiam lentamente os vegetais, legumes e frutas, os orgulhos da nutricionista, ela pensava na palavra e ria com graciosidade antes de apagar em um sono acolhedor e profundo. Nunca sabia o que Gentil fazia após ela dormir, entretanto, o júbilo que sentia era inenarrável ao despertar. Quando abria vagarosamente os olhos, ela via Gentil repousando ao seu lado. Será que os coelhos dormiam? Maria não tinha certeza. Sempre que abria os olhos, ela evita com maestria produzir qualquer barulho, entretanto, o coelho a observava, como se só estivesse esperando que a pequena acordasse. Maria se indagava sobre há quanto tempo Gentil fazia parte de sua vida e se perdeu em lapsos fugazes de memórias confusas. Tinha oito anos, mas tinha doze, vinte, trinta e quatro, cinquenta e um, sessenta e nove, oitenta e dois. Havia acabado de nascer, de se formar, de se casar, de se arrepender, de ser feliz. Queria conectar as pessoas, queria desaparecer, queria ter mais amigos, queria ser mais sozinha, queria saber o que fazer, queria não ter que fazer coisa alguma. Tudo era vago, confuso e sombrio. Esta sensação lhe apavorava e Maria concluiu que pensar nessas coisas não levavam a lugar nenhum. Concluiu que precisava se concentrar em Gentil. A situação era séria e a garota não podia continuar correndo para sempre, a barriga doía, a garganta doía, a tosse estava pronta a lhe atormentar, assim, ela resolveu gritar o nome completo de seu camarada. Senhor Garboso Gentil, ela berrou, ao que o coelho parou novamente, como quem a esperaria. Estava no topo de uma colina verdejante e não se moveu. Se Gentil disparasse colina abaixo, ele poderia despistar Maria para todo o sempre. O roedor não se mexeu e dessa vez esperou a menina, que, enfim, o alcançou. Ela se postou de cócoras e afagou o pequeno corpo do coelho, curando-se de todos os males e angústias. Quando ergueu a cabeça, a garota se deparou com um belíssimo campo florido. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto em toda sua vida. Voltou os olhos ao coelho e pensou que, na verdade, o coelho era a coisa mais bonita e as flores vinham depois. Há coisas que transcendem o tempo. Há amizades que transcendem os mundos e as cronologias. Havia, afinal, um fato improvável: Gentil e Maria eram amigos ontem, hoje e seriam amigos para sempre. Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas eram lágrimas da mais pura alegria. O coelho estava com os olhos marejados também, mas a menina não notou. Gentil deu dois saltos curtos para o lado, como uma espécie de sinal e a encarou solenemente. De alguma forma a garota entendeu que voltariam com a brincadeira. Agora ele desceria na direção das flores e ela o seguiria. Estava tudo bem. Correriam e correriam, brincariam e brincariam e, após isso, comeriam os vegetais, as frutas e os legumes e em algum lugar alguém diria que são os orgulhos da nutricionista.

            Gentil partiu em alta velocidade e Maria correu atrás dele. Não sabia explicar, mas respirava melhor e corria mais rápido. Gentil acelerava mais e mais e ela o seguia, acompanhava-o perfeitamente em corridas repletas de curvas acentuadas e saltos. Nunca mais tossiria. As flores exalavam um perfume doce e inebriante. Nunca mais sentiria dores. Seus músculos pareciam alegres com o esforço da corrida. Nunca mais haveria o desconforto chato de tantas ausências. Tudo o que perdemos é para a eternidade, até o dia do reencontro. Gentil continuava em uma corrida alucinada e Maria no seu encalço. Os dois corriam sem descanso, sem hesitação, sem remorsos. Correr era viver e viver era correr. Gentil Garboso era tão veloz que era quase inacreditável, mas a outra o seguia contente, em toda a glória de suas quatro patas. Dois coelhos corriam e brincavam incessantemente pelos campos de flores coloridos produzindo nuvens de poeira por onde passavam. Dois coelhos estavam destinados a correrem juntos para sempre, pois eram amigos pela eternidade e esperavam juntos para roerem rúculas e cenouras.

Os trapezistas.

– O ato do trapezista é o mais lindo por ser o mais arriscado.
– Você acha que a beleza está condicionada ao risco?
– A vida está condicionada ao risco. Quem não se arrisca passa uma vida inteira destinado a inércia ou ao silêncio dos covardes.
– Você está afiado.
– Estou eu.
– Afiado. O que é isso de silêncio e covardia? Bom, eu achei que ao menos os trapezistas dispensassem a filosofia e os pensamentos.
– Quem sabe dispensem? Quem sabe não seja eu a única razão meditativa por de trás de um ato puramente instintivo?
– Instintivo nada! Eu não quis dizer que algo que não receba pensamentos precise ser necessariamente instintivo. Bom, os trapezistas também treinam, ensaiam para valer e só então se revelam no palco principal.
– Todo ensaio é o ato principal quando um erro leva à morte.
– Você perde a magia do espetáculo com tantas conjecturas! Bom, para mim o ato do trapézio não é somente sobre o risco e sim sobre confiança. Isso quer dizer que, se quem deveria te segurar, porventura, não te segura, você perde tudo.
– O risco! O trapézio é como uma história de amor. Você se arrisca e espera que alguém do outro lado segure a sua mão. A vida inteira pendendo em um salto. Tudo está em jogo.
– O trapézio como uma analogia aos amores. Você anda bastante criativo, mas nota que este número do show não foi feito para durar?
– Desde quando a finitude é motivo para a descrença?
– Logo chegam os palhaços que você tanto detesta. Por mais lindo que seja este ato, logo as cortinas se fecham, a iluminação muda e tudo se altera.
– Você parece subestimar o ato dos trapezistas. Se todo ensaio é ato principal para um trapezista, ama-se não somente quando os holofotes estão mirados nele.
– A vida inteira dependendo de um salto… Eu não sei se gosto da ideia. Se é como você disse, como conseguirei acreditar nas histórias, poesias e romances com esse tipo de exemplo? O que dignificará o amor sendo que ele possui vida tão curta? E se eu quiser uma vida diferente dessa?
– Qual seria a sua motivação em fugir do amor?
– Sobrevivência?
– Amar é um salto no escuro. É simultaneamente temer a queda e desejar cair, entretanto, por mais que seja difícil fazer com que esse tipo de discernimento caiba na razão, amar é alcançar o inalcançável.
– Posso viver sem isso, obrigada.
– Só uma pessoa que nunca amou diria isso, mas se você pode compreender como é sutil e perfeito o ato do trapezista, você pode compreender o amor.
– Não foi feito para durar, olha lá ao longe, os palhaços estão chegando e logo esse seu papo todo vai para o beleléu.
– Esqueça os palhaços. É o que eu tento fazer. Você provavelmente está certa. O trapézio é um momento mágico no circo, mas é fugaz. O que você não pode entender é que aos amantes verdadeiros o tempo nunca é curto, mesmo quando as histórias são contadas em poucos capítulos e se encerram de repente. Há quem tenha passado uma vida inteira esperando amar e tenha amado apenas um mês, mas que trocaria estes trinta dias por todo o resto.
– Você trocaria?
– Sim.
– Uau! Nenhuma hesitação.
– E você?
– Não sei…. Eu acho que ainda não vivi isso. Como você quer me convencer a crer no amor se me dá razão no argumento? Como você espera que eu deposite tudo em algo que não vejo? Sou desprovida de dons circenses. Não sou trapezista.
– Eu não quero te convencer de nada, mas você nunca voará se não tirar os pés do chão. Faz-se necessário deixar o ninho. Já ouviu dizer que viver é perigoso? Há um mundo inteiro oculto depois da zona de segurança.
– Então não posso optar por uma vida segura e estável?
– Qualquer ilusão é segura e estável. O voo é imprevisível, bem como a magia. Para explorar novos horizontes é preciso pular.
– É diferente saltar para tocar o teto e saltar sem ter a menor noção de qual é a altura da queda.
– Pois lhe digo que o impacto da queda pode ser terrível, insuperável. Existem os que nunca se recuperam…
– Você está me fazendo odiar os trapezistas da maneira como você odeia os palhaços.
– A única maneira de amar é pular na escuridão e esperar esperançosamente que alguém segure a sua mão.
– Eu ainda tenho medo do escuro.
– Um dia isso tudo passa. É lindo, emocionante, requer esforço e prática, mas por que temer a vida e o amor se o ato dos trapezistas é curto e acaba? Mais vale apostar tudo do que viver eternamente condenado ao nada.
– Você está afiado!
– Estou eu…

A Renúncia de personalidade.

Ter a personalidade e não abrir mão dela é exigir-se em demasia? Se porventura me forçarem a acreditar que realmente devo abrir mão de mim, ainda que eu esteja cônscio que todo disfarce é inútil, o que restará meu em mim?

Penso no escuro, onde nada vejo, longe dos santos e criminosos, longe do que me ensina a experiência, apenas para que eu possa ver claramente além das situações complicadas. Há vezes que me odeio pela insistência, entretanto, aprendi que a razão superior não deve se sobrepor à razão inferior, assim, insisto no que é preciso, afinal, fazer-nos a nós mesmos é a tarefa, não?

A noção de pertencimento é, em regra, perturbadora, principalmente para quem nunca pertenceu. Há pessoas que comumente elegem ídolos, elevam pessoas até patamares divinos, mesmo que a atenção recebida seja só uma consequência de outra atenção não recebida. Quando dois solitários se unem, abraçam-se e sonham longe com o fim do pesadelo de existir sozinho, entretanto, utilizar-se de outrem para findar a solidão, quando não se tem mais ninguém para contar, é mesmo assim tão valoroso? Calar a personalidade não traduz o emudecimento da alma? Só me arrependi de não ter sido mais eu antes. Se renunciamos o que somos, o que resta de nós? Se abdico de ser quem sou, o que, enfim, torno-me?

Diminuir-me para que os outros se sintam grandes é inadequado. Apagar a minha luz não fará com que os outros brilhem mais. É importante reconhecer quando erro para que possa me desculpar, mas é raso se desculpar em todos os momentos apenas para evitar o conflito. O orgulho é importante quando não é venenoso. Os perdões são gestos imensos, quando sinceros. Quem não sabe perdoar só aprendeu coisas pequenas.

Há centenas de desculpas frágeis e perdões falsos. O tom de voz muda, a necessidade da presença, os pretextos, entretanto, tudo é límpido, absolutamente claro para quem está habituado a ver o mundo. Não posso me sujeitar a isso. Cumpro meus deveres de amigo, ainda que talvez só reconheçam o valor da minha amizade décadas depois. A covardia não me veste e digo o que tenho que dizer, mesmo que erre na forma. A grande ironia de ser verdadeiro é ser execrado por quem não me iguala em verdades. Fui sincero, de todo o coração e há um número notável de pessoas que nunca se recuperaram das injustiças que cometeram comigo.

Pulamos etapas, metaforicamente, quando aumentamos o salário, quando saltamos de estágios na vida, iludindo-nos com a sensação de que somos mais do que somos e de que furamos a ordem cronológica de existência. No fundo continuamos realmente jovens, minuciosos e delicados. Lá para dentro, devagar e longe, a maioria carrega um vasto leque de puerilidades. A maioria não move um dedo para resolver uma desavença ou um conflito, porém esbravejam sobre como tudo é incerto e errado. Apontam os dedos julgando as inconsistências alheias, ignorando todas as próprias. Não, meu caríssimo Jean, nós não nos alcançamos nunca. Eu nunca fui culpado pelos problemas que você tinha aí dentro e nunca teve a coragem de externar.

A ilusão da evolução pelo avanço dessas ditas etapas é notório e muitos se perdem. É como se tivessem desvendado uma espécie de fórmula de desvendar a vida, eu sei, ingenuidade, mas e daí? Mera mudança não é crescimento. Uma mudança real, dura, verdadeira, exige continuidade e aprendi que sem continuidade não há crescimento. Perdoei todos os que me foderam e sinto que concluí a tarefa mais difícil de aprender a me perdoar pelos meus erros. Nunca caminhei longe da humildade e entoei em voz alta tudo o que um dia me feriu. Nunca carreguei mágoas e a ironia é que alguns nunca se recuperaram das injustiças que cometeram comigo.

Por vezes penso que nasci do avesso, cresci ao contrário e me guiei por incertos instintos cósmicos. Era velho na infância e me sinto rejuvenescer com o decorrer dos tantos anos perdidos. Seria eu uma criatura interplanetária perdida na Terra? Foi em uma manhã de março que vim ao mundo para lidar, dia após dia, com despedidas. Nunca me esqueço de que um dia partirei também. A maioria sobrevive hostil, vil, sem memórias ou lembranças. Queria antever o dia da morte para sorrir em uma última dança.

Tudo em mim é muito por pouco tempo, mas me percebo expandir de maneira extravagante, ilimitada, lépida. Quase tudo me interessa, ainda que seja apenas por alguns dias ou meses e noto que a prolixidade dos meus sentidos contradiz minhas atitudes sucintas. Fito o rosto que tinha antes da criação do Universo e sinto urgência de alimentar a minha alma. Posso desapontar desconhecidos, porém avanço passo-a-passo em direção a mim, encontrando o que sou e significo.

Tenho sentido uma evolução, estou mais saudável, mais imperfeito, mais humano. Não posso aceitar tudo e não vou. Não posso concordar com tudo e não vou. Existo para as pessoas que amo, porém, é preciso me recordar de que eu sou uma delas, sim, amo-me primeiro como se o amor pudesse garantir a minha sobrevivência. Amo-me primeiro e não me ajoelho, pois o amor é a minha essência.

Bem, Gunnever, Aurum B, September, todos os filhos de fantasias e ficções, sim, vocês que traduzem o meu coração nobre, bom, eu talvez insista em vocês tanto quanto tenho insistido em mim. Se sou humano o suficiente para conhecer meus limites e humilde o suficiente para me arrepender e me desculpar, se sou objetivo e resolvo meus conflitos, ainda que não resolvam comigo, o que carrego para me arrepender? Nada! Não, daqui em diante vou, outra vez sem arrependimentos.

Ter a personalidade e não abrir mão dela é exigir-se em demasia? Se porventura me forçarem a acreditar que realmente devo abrir mão de mim, ainda que eu esteja cônscio que todo disfarce é inútil, o que restará meu em mim?

Estou lúcido e consciente, não posso me destratar, não posso estender tapetes. Sei que não basta ser amigável. É preciso ser amigo. Sei que não basta ouvir. É preciso falar. Há silêncios que envenenam e segredos demasiadamente grandes sufocam. Não estou mais paralisado por meus medos. Outra vez me flagro a disparar verdades pelas pontas dos dedos.

Mudo devagar e de forma contínua por compreender que a repetição reforça a missão. Ando distraído, porém não me perco entre as estrelas, mas amo os planetas e a lua; não me desoriento buscando dentro dos aviões o meu propósito de vida. Morro de pena de quem nunca conheceu o seu lugar. Cada dia é uma cena eterna para quem não sabe perdoar. A vida em si é meu propósito e me sinto grato por notar. Sobre a vida e a morte, a saúde, a sorte, eu não tenho respostas, mas estaco e respiro enquanto admiro essa velha cidade.

Renuncio o Universo, mas não abro mão da minha personalidade.



Uma noite qualquer.

Foi em uma noite qualquer, quando ela bateu na porta de minha casa. Eu, míope, mas com olhos suficientemente bons, reconheci sua forma e a sua voz, desentendo a lógica da aparição. O amor quando verdadeiro é insensato. Eu não precisava da lógica. Instintivamente, eu sabia. Era ela, inequivocamente era, pois eu havia memorizado até mesmo o jeito de se insinuar. Escutei mais três batidas em uma insistência atípica, fiz-me surdo e perguntei mais de uma vez, apenas para avaliar a minha própria sanidade. Ela respondeu sem titubear.

– Meu bem, você é feliz há tantos dias consecutivos. Tenho convicção de que sentiu a minha falta. Não vai me deixar entrar?

Respirei fundo, enchi-me de coragem para falar o que ela merecia ouvir, tudo o que estava sufocado, preso estreito dentro do peito, mas me flagrei diante da porta e minha mão destra a abriu. Ninguém me conhecia tão bem. O que mais eu poderia fazer? Prometi que lançaria um olhar gélido, mas ela viu que meus olhos estavam impregnados de saudade. Avancei quase contente por reconhecer a Tristeza e sorri triste tendo um vislumbre de que os olhos dela também estavam marejados. Dei o meu sorriso mais acolhedor e pedi para que se sentasse enquanto eu fazia o café. Ela me fitou com mistério, como se fosse me contar algo, eu não perguntei, pois aquilo podia ficar para depois. Só quando enchi as duas xícaras, notei que ainda estava sozinho e havia servido café para dois.

Qualquer dia desses.

Qualquer dia desses, eu parto e não volto. Quem sabe, antes de ir, eu avise minha mãe do meu paradeiro, apenas para que ela se tranquilize. Não há mãe que mereça perder o sono pelas aventuras de um filho, entretanto, todas as mães do mundo entram na estatística da insônia e se tornam vítimas da indústria farmacêutica.

Todos falam o tempo inteiro e, exigem-me coisas, atitudes, posicionamentos e eu, tão feito de pausas quanto de silêncios, enervo-me perante ao esdrúxulo espetáculo da dramatização do tédio alheio. Por ter pacificado a minha relação com o nada, por ter me tornado um mestre dos espaços vazios, não tumultuo meu próprio silêncio com barulho. A minha mente, que costumava ser uma tela constantemente colorida, hoje em dia surge, vez ou outra, como uma tela em branco. Aprecio o interlúdio e respiro.

Todos falam tanto e raramente escutam o mínimo. Eu já nem lembro quais foram minhas últimas demandas atendidas. Quantos pedidos meus foram colocados na fila de espera? A realidade é que muito se exige e pouco se entrega.

Estou exausto de fazer solicitações e concessões. Esqueceram o meu aniversário e como tudo sucede ao contrário, eu fui alvejado de reclamações. Ainda eu, vítima da vituperação alheia, recebo a recomendação de ficar calado. Insisto tanto em ser leve que todos supõem que eu não sei “pegar pesado”. Afaste-se, acaso pretenda me ferir, deixe-me, se quer provar o sabor do meu sangue. Use a prerrogativa da honestidade direta e indiscreta, mas não me ataque com oportunismos que visam minha derrota e vexame.

Se odeia alguém, não seja simpático. Se possui algo contra, seja enfático. Se são bons os seus motivos, aplique-os e seja prático. Essa praticidade que tanto me exigem, ninguém nunca me deu.

Até quando eu deveria pedir licença por existir? Até quando será que me vão me exigir retratações frágeis seguidas por deificações de falsos ídolos? Eles não são o planeta inteiro. Eles são a única coisa que você possui. Estou farto dessa arrogância constante, destes sorrisos plásticos, dessa constante atuação. Vá ou não vá. Estreite ou rompa o laço. Faça ou não faça, mas se porventura alimentar o rancor, recuse beijos e abraços.

Se me exigem tanto, comecem por vocês mesmos. Quero ser apenas unidade, eu sou apenas um. Quantas vezes terei que repetir para que me ouçam? Não escravizo ninguém segundo minhas vontades e estou cansado de viver pelos outros. Todo o muito que entrego, em réplica, sempre soa pouco. O que ofereço nunca é o bastante? Saiba que é tudo o que tinha neste instante.

Sina desesperadora de existir é ter que liderar. Todo mundo quer que eu os faça sorrir, mas ocultamente se aprazem de me ver falhar. Não sou eu também humano, feito de falhas, derrotas e medos? Se estou no meu tempo, por que alguém sempre diz que cheguei tarde ou cedo? Aceitem a minha ausência de pontualidade. Eu falto em muitas coisas, porém, eu sobro também. Sou um especialista em ser quem sou e essa teimosia de amor ainda vai me levar além.

Só por hoje imploro para que cesse esse drama, oro, mesmo sem crer, para que me sobre um vislumbre de felicidade, um pedaço onírico de sonho para sonhar, uma realidade que me seja menos pungente, uma ou outra pessoa que me escute e que tente, realmente tente me entender…

Estou preso a não sei o quê, mas qualquer dia desses me solto. Se eu me cansar de vocês, eu parto e nunca mais volto. Se isso acontecer, neste ínterim final, lembrem-se, enfim, que eu era humano. Acostumados a heroísmos e obrigações que não deveriam me pertencer, recordem-se de que eu era apenas mais uma gota neste imenso oceano.

Cuidado com o que constroem em suas cabeças vãs. Se vocês desconhecem até os seus parceiros, que é que vocês sabem dos outros? Essa mentalidade de clã transborda uma hostilidade lúcida somente aos loucos. Preciso sobreviver, ainda que não saiba mais os meus motivos. Preciso permanecer… é a única chance de encontrar os tantos sonhos e anos perdidos.

Estou me desapegando para não me apagar. Estou me acendendo para que possa continuar. Estou sendo, cada vez mais, eu mesmo.

Como todos me exigem e nada me entregam, eu aprendi que as verdadeiras ânsias da alma são individualistas e cegas. Este altruísmo de boteco não vai me levar a nenhum lugar. Se essa é a minha maior verdade, por que não consigo mudar?

Desligue suas obsessões. Desapegue-se das suas expectativas. Vocês todos acham muitas coisas e eu…

Eu sou apenas o que sou, longe dos achismos e opiniões. Repleto de puerilidade, eu me habituei a ser franco e não fazer comparações. Eu sou apenas o que sou e firo por ser, coisa que é realmente rara. Às vezes me constranjo, mas estampo minhas verdades na cara. Se a mim permaneço um mistério, insondável, profundo, complexo, como vocês ousam tentar me antever? A única realidade lógica é que vou cair e perder.

Esqueçam o que supuseram de mim. Nunca mais me idealizem. Vocês todos acham muitas coisas e eu sou diferente. Vocês todos acham muita coisas e eu apenas…

Sou.

Uma covardia.

Escrevo estes meus fracassos
com tinta, sangue e covardia
Sinto que tenho sido julgado
por falhar em ser perfeito
Anjo mau, indiferente, confundido
com qualquer diabo que sabe se portar
Um dia desses, se acordar diabo, fujam
Se este mundo porventura me dobrar pelo susto,
Tornar-me-ei assustador
Arranjarei um diabrete sorridente
que andará atrás de mim como um cão
Que tu pensas, velho caquético e bigodudo,
que tira o lixo pontualmente às sete e dez?
Faz do hábito uma oração para se enganar,
porém o ar lhe escapa e o peito dói
Um dia tirará o lixo, mas sequer estará ali
para ver o caminhão passar
Teus hábitos não engodam a cronologia
Tu também não escapas da morte
Que tu sonhas, mestra das artes?
Parece disposta a largar tua vida alinhada
e desaparecer para sempre no próximo bonde
Ninguém sabe da tua verdadeira estrada
nem dos segredos que o coração esconde
Que te inquieta, corsário ferido?
A mágoa velada que carrega no fundo dos olhos?
A raiva atrincheirada atrás da consciência?
A tua mudez que afastou todos que ama?
Escrevo estes meus fracassos
com sangue, covardia e impaciência
O que está quebrado, é claro, se quebrou
Este golpe forte no teu orgulho te matou?
Que te assombra, príncipe da eterna adolescência?
Traiu todos os teus amores e teme pelas consequências?
Esse ceticismo forçado é forjado pelo medo?
Há anos tu tens me evitado por ser capaz
de ler teus mais óbvios segredos?
No teu caso optei por nunca te escancarar
Mas porque teme o que sei, eu espero que trema
É sozinho que um dia você vai falhar
Eu vou me calar porque sinto pena
Que tu desejas, sombra cigana?
Transitando lentamente e evitando os domingos
Não há corrida para fora que nos salve
quando dentro estamos caindo
Justiceiros ébrios com seus punhais afiados
desconhecem os alvos que são perfurados
Escrevo estes meus fracassos
com vinho, impaciência e covardia
Pois ainda me lembro como abrir garrafas
Conhecimentos inúteis para um inútil completo
Problema inevitável de caso indiscreto
Estou me matando por tolos obstinados em arrogância
Estou tentando salvá-los de sua própria ignorância
Quando foi que eu me tornei tão valente?
Quero voltar a ser aquele moleque chorão e indecente
Acovardado atrás das pernas de minha mãe
Repleto de remelas nos olhos e caos nos ouvidos
Rezando para que o dia acabasse e eu
Escrevo estes relatos com covardia e honestidade
Lembram de quando a Tristeza bateu à minha porta
em uma madrugada solitária na cidade de Dourados?
Lembram de quando servi duas xícaras de café às três
em São Paulo e me esqueci de que estava sozinho?
Talvez eu esteja enlouquecendo o tempo inteiro
E inventando esse mundo estúpido com danças imbecis
Talvez essas tantas coreografias vexatórias me provoquem
Talvez eu esteja na beira por tentar ajudar quando deveria
estar pouco me fudendo para esses idiotas
Não compreendo como não me tornei misantropo
Todo o muito que sofri ainda assim é pouco?
Talvez eu esteja apenas cansado e confunda as coisas
Não, isso não, eu não confundo as coisas
Mesmo na beira do meu limite e das minhas dificuldades
Ainda que os pássaros amarelos me atormentem
Eu não confundo as coisas
Sofrerei vinte minutos e uma noite de sono
por todos os livros que ainda não escrevi
Sofrerei até outubro pelos livros que não publiquei
Prefiro a introspecção e me disseram inúmeras vezes
que queriam me ouvir falar
É um prazer imenso te ouvir falar
Ei, espere, eu não tenho monólogos hoje
Quem sabe eu só não queira ficar no meu canto
e esquecer de todos vocês enquanto escrevo obscenidades
Claro que vocês duvidam da sujeira dos meus dedos,
pois escreveria erotismo puro para me livrar de vocês todos
Sim, eu estou atento, ninguém lembra tanto das corujas
Nenhuma voz alcança tanto e eu vi o velho vulto perto das onze
Eu não estou enlouquecendo, eu estou chegando lá
Eu estou perto de começar a me entender,
Sim, eu entendi todo o resto e agora faço uma oração
Para quem oro? Ora, se isso interessa a qualquer um
Eu, na verdade, oro para quem me ouça
Que quem me escuta possa me ajudar porque ando exausto
Entendo toda essa gente pútrida que se move com a maré
E sou eu o alvo da ignomínia final
Sentenciado pelos réprobos por tê-los decepcionado
Sanguessugas ordinários, eu vou decepcionar todo mundo
Aguardem, oportunistas teatrais, eu falharei com todos
Vocês, que não são quem são, ainda hei de olhá-los sem máscaras
Cortarei os fios e acabarei com a graça dessa brincadeira
Olha nos meus olhos, titereiro
Estou fora de tuas cordas, meu velho amo
Estou dançando a minha própria música, seu imbecil
Não sou mais o teu fantoche e hoje vou me vingar de mim
Estou cansado de ser o anjo bom e previsível
Quero vê-los sofrer e começar do zero
Quero ser humano pelo menos por um dia
Se não puder ser humano, deixem-me retornar ao pó
Deixem-me virar matéria de poesia
Só não façam de mim o que fazem de todo o resto
Eu aceito o meu fim e a morte, mas se mentirem
Erguer-me-ei do cemitério em protesto
Esqueça o pedestal que tu mesmo ergueu e subiu
Você não é melhor do que ninguém
Tua vida perfeita também jaz por um fio
Pois quem deveria saber de ti não o sabe
Olha para mim, velha louca deitada na luxúria
Se tua realidade é tão alegre e opulenta,
por que não te desliga da tua nojenta fúria?
A personificação da inveja e da lamúria,
Olha-me nos olhos, megera, receba minha injúria
O vômito das minhas palavras no teu chão
Sente na minha bile a sinceridade do meu coração
Estou cansado de ser o anjo bom e previsível
Inventa algo novo, deturpa tudo e me detesta
Vitupera o que sobrar de mim em tuas festas
Estou cansado de ser o anjo cheio de qualidades
Grande, altruísta, preocupado e quase morto  
Sim, eu estou cansado de tanto me ser
Esqueça a calma
Estava enganada na tua premonição de vida eterna
Ajoelha diante de mim e sente o gosto do meu esperma
Idolatra-me por uma noite como se eu fosse
o guitarrista medíocre da tua banda dos sonhos
Deifica-me por vinte e quatro horas e me entrega tudo
Quero que não sobre absolutamente nada
Absolutamente almejo ter até a sua alma
Não se desespera se porventura errar meu nome
Isso é definitivamente consequência de viver insone
Acordado por seis dias e meio e sonhando com
Qualquer coisa que me faça sentir vontade de
Insistir
Eu estou prestes a chorar
Eu estou prestes e desistir
Eu estou prestes a quebrar os espelhos
e emudecer de uma vez por todas
Minhas reflexões cessam com a memória
do punho atravessando a madeira do guarda-roupas
A vida não nos afasta de ninguém
Silêncio afasta, arrogância afasta,
Vontades recíprocas e orgulho obstinado afastam
Um ano atrás meu velho nos deixava
Queria sonhar em ter sua altivez
Os apertos de mãos dizem muito
e nunca apertei todas as mãos que gostaria
Os olhares vibrantes dizem muito
e nunca mais te olhei
Chame-me do que quiser, eu estou entendendo
Vocês precisam de um novo bode expiatório
Preparem um tipo especial de missa para o meu velório
Eu estou prestes a sonhar
Eu estou prestes a sorrir
Eu estou prestes a dar o salto derradeiro
para a morte ou para o voo que libertará minhas asas
Estou prestes a compreender a simplicidade
deste ódio que se fixa facilmente em pessoas rasas
E ainda quase todos subestimam a potência de um poema
Se não me escutam, deveriam ouvir o Valter,
“quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas”
Escreve algo humilde neste papel e escuta o silêncio
essa extravagância atroz está me deixando puto
Se eu morrer sem desatar esses nós,
Recuso suas lágrimas e seu luto
Até porque tenho lutado sozinho
por quem nunca me ouviu ou me leu
Estou longe da metade do caminho e lamento
Ninguém nunca me aprendeu
O louva-deus não ora por porra nenhuma
Fiéis e ateus desaparecerão na mesma bruma
E até os que são lembrados serão esquecidos
Nossos nomes se dissiparão e seguiremos ao limbo
Desce do teu trono, rei de espadas
Ninguém neste mundo é realmente teu inimigo
Qualquer santo perfeito em sua jornada
pode lhe apresentar um grande perigo
E se os vilões porventura forem sempre os outros
É melhor que olhe para dentro e tenha cuidado
Quando estamos ficando loucos é que tudo sucede o contrário
É bem provável que você seja o responsável
por esse seu declínio melancólico e deplorável
É bem provável que você seja um pedinte
Você pensa no final do livro, mas
nunca escreveu o capítulo seguinte
Tira os olhos do umbigo e cessa tua obsessão narcisa
O mundo não gira por você, embora eu admita
Sua ausência pesaria se um dia me faltasse
Ninguém neste mundo é realmente teu inimigo
Nossas ações revelam algo individual e intransferível
Nossas ações revelam a profundidade de nossos abismos
Cala-te agora, revolve devagar e olha para dentro
Aceita-se humano e desiste de se tornar uma lenda
Faça uma loucura espontânea e não se arrependa
Não espere nunca que todos te entendam,
mas agradeça acaso seja compreendido por um ou dois
Agradeça o dobro por quem nunca te deixa para depois
O destino lúgubre do ferro é que ele enferruja
Se um dia eu for moldado pela dor e acordar diabo
Fujam
Interlúdio e minutos para o intervalo
Guardo agora os sonhos nos bolsos
São 22h55 e sei que preciso dormir e trabalhar,
mas nesta véspera de segunda-feira,
Eu sei que dormirei sem me vingar de mim
Se eu dormisse covarde e acordasse corajoso
Faria da minha próxima manhã um novo jogo
Entretanto, tudo sucede lento e pesaroso
Sigo ostentando na pele e no peito
inquietações sinceras e verdades doloridas
Eu queria dizer que isso aqui é um poema,
mas estas palavras de merda não me resumiriam
Eu queria gritar que essa tragédia é um desabafo,
mas é só uma covardia
E eu, covarde de tudo, acocorado e aterrorizado pelo medo do escuro,
Eu sigo indignado com os impostos e as manchetes dos jornais
Eu sigo perturbado por quem se comunica apenas por sinais
Eu sigo indignado com os roubos e assassinatos
Eu sigo incomodado com a soberba
Eu sigo delicadamente furioso
Eu sigo delicadamente
Eu sigo covarde, mas
Eu sigo
Eu.

Saiba ser sozinho e adote um animal.

Eu me peguei refletindo sobre a persistência, sobre uma vontade insistente de agir e ser diferente, de não sucumbir diante das mazelas mundanas e concluí que não sabia se tinha esse tipo de força. Você sabe reconhecer suas fraquezas? Li ainda hoje na internet alguém dizer que sofreu centenas de traições e me imaginei assim tão traído. Acho que, se fosse o meu caso, eu me fecharia para todos e escolheria a solidão absoluta, em ordem de me manter seguro, sem me tornar ríspido, sem correr o risco de descontar as minhas frustrações nos outros. Nunca fui traído nos romances que tive e tampouco traí, assim, localizo-me distante deste local de fala, ainda assim, penso-me traído e nas traições que nunca foram e essa ira muda que sinto brevemente me leva para longe.

Os corações sensíveis assim o são, viciados na melancolia, acostumados com a voracidade alheia que contrasta com a paciência serena. Pessoas assim, tão furiosamente delicadas, não raramente são testadas, como se o ato único da vida, esse viver cotidiano, zombasse incessantemente da nossa fibra e nos guiasse para um hedonismo como solução geral. Se me permito a acreditar que devo viver a vida somente pelos prazeres, ignorando todo o resto, eu estou fatalmente perdido. Custam a aceitar, mas há muito mais envolvido. Quando criança e adolescente presenciei muitas traições, umas tantas ocorriam no ambiente familiar, envolvendo o que acontecia na minha própria casa ou nas casas dos meus amigos. Não tanto depois vi esses mesmos amigos copiando o comportamento de seus pais e dando sequência a um ciclo potencialmente infinito. Furioso e frágil, eu bravejava que escreveria minha história diferente. Não falhei, pelo menos não ainda e admito que por vezes não sei de onde tirei forças para ser exatamente quem eu sou. Não subestime a capacidade de ser autêntico. Ser exige esforço e persistência, pois é preciso ser continuamente. Ser é, sobretudo, navegar contra a maré e ter a consciência de si. Aos dezessete, certa feita, minha mãe me olhou e disse que eu estava me tornando um homem incrível e lindo. Aquelas palavras, poucas, retas e sinceras, foram suficientes e me serviram como combustível para que continuasse no caminho para ser alguém de quem eu sempre me orgulhasse, mas e se as pessoas que mais amo de repente me traíssem? E se o punhal ensanguentado removido de mim pudesse ter sido a arma de alguém que adoro? O que seria do Daniel nos dias de hoje?

Para ser honesto, eu não sei o que me seria e nem a minha argúcia intelectual pode de verdade prever uma realidade alternativa. Só o que foi realmente foi e todas as outras possibilidades morreram. A dualidade é incômoda e estranha. Fui e sou correto, sem exigir da vida recompensas, porém nunca esperei que houvesse tanta punição. Sim, se você for como eu, um maldito certinho, muitas vezes se sentiu mal por estar fazendo o bem, pois parece que agir direito é digno de castigo. Acho que é por essas e outras que tanto acabam cedendo aos tantos perigos ou sedentos pelos perigos. Eu até brincaria com fogo, entretanto, jamais incendiaria a casa. Sou o último acordado antes dos outros dormirem por sentir o dever de zelar pelos que convivem comigo. Tudo é vago e longe. Acreditava no Amor romântico e eterno e nas Amizades românticas e eternas, até que me dissuadiram destas crenças. Necessitei de quase três anos para, enfim, recuperá-las, mas não foi nada fácil. A vida nos testa ao contrário.

Um dos grandes amigos que tive, uma vez, veio se gabar de uma mulher com quem havia transado. Eu o confrontei, sem dar bola para o assunto e o indaguei sobre o motivo de ter feito algo assim sendo que namorava com outra. O resultado desta satisfação foi catastrófico. Fui eu acusado de ser traíra, afastado do meu grupo de amigos e colocado em isolamento, apenas por não ser conivente com algo que nunca poderia tolerar. Passei anos com pouquíssimos amigos por ter a coragem do embate e meu prêmio foi a retaliação. A pior parte é que eu sentia falta desse meu amigo, ainda que não reconhecesse nele valor moral. Quem nunca deu um “foda-se” para a moral? Como dizia Victor Hugo, “que sejam maus e inconsequentes, mas corajosos e fiéis“. Ele era inconsequente e custo a utilizar a palavra “mau”, porém era covarde e não havia fidelidade dele aos amigos ou aos amores. Sofri pelo afastamento, sim, mais do que eu gostaria de admitir. Tantas horas compartilhadas e eu havia perdido o meu amigo para os meus próprios valores. É muito nesta vida questionar a veracidade de outros amores? Sim e não, entretanto, se alguém que amo passa dos limites, não estou obrigado de forma tácita a me posicionar? Se me silencio diante do errado, vejo-me conivente e aprendi há anos que há silêncios que envenenam. Quando quase havia me convencido de que ser duro, mesmo com as coisas certas, sempre nos afastava das pessoas, a vida finalmente me deu amigos novos, amigos significativamente melhores. Com esses novos eu poderia ser sincero sem correr o risco de que facilmente se ofendessem. Quem exige não se importa em ser exigido e com os meus novos amigos eu poderia esperar um caráter férreo em retribuição. Com essas novas pessoas que apareceram os conselhos eram verdadeiros e entravam direto no coração.

Antes disso, entretanto, aprendi a acreditar na solidão. Se há solidões maléficas, depressivas e sufocantes, há solidões largas, espaçosas, onde se encaixam todos os mundos com seus respectivos países, cidades e praças. Aprendi a acreditar no trabalho, embora não tenha me sentido mais digno. Eu, sempre sensível em escutar os outros, aprendi a escutar os meus silêncios e a amar os meus barulhos. Sem o grande afastamento, eu jamais teria amadurecido tanto. Fazia as coisas da maneira correta por instinto e me esticava para a compreensão alheia por ser empático, entretanto, só após ficar completamente solitário é que me entendi e se entender representa um passo importante para tentar entender a sociedade que me cerca. Não posso me considerar exceção de coisa alguma, se sou tão humano quanto os outros, mas quanto mais você vive e vê, mais chances surgem de encontrar pessoas que valham mais que o ouro. Aguardo o fim do expediente pensando nessas pessoas, outrora tão distantes ao ponto de serem inexistentes em imaginação, hoje tão próximas que posso as encontrar em algumas horas. Toda essa noção é estrangeira e confusa e sofro, porém, imagino-me feliz em breve ao chegar no meu próximo destino e, enfim, encontrar-me com pessoas que me tornam mais alegre e me tornam ainda mais efusivo, apenas por existir. Abraço-os ou aperto suas mãos e os nossos sorrisos são luminescentes. Sim, eu os amo e sou amado de volta. Ouvi muitas vezes sobre o quanto sou importante como amigo, filho, namorado e isso nunca fica enjoativo. Respiro essas tantas palavras e me sinto bem. As palavras e os gestos são, em regra, o único conforto.

A solidão de Dourados ensinou a mim tudo. A fábrica de tratores, os céus laranjas ou rosados, a poeira vermelha, o coelho branco perto do supermercado, a BR-163, a jornada de trabalho, tudo isso se consolidou em mim como uma amálgama de coisas inúteis dotadas de uma importância celestial. Numa tarde, naquele posto de rodovia, a abelha gigante que sobrevoava o meu energético venceu. Não sei se faria tão bem para seu corpo diminuto o energético e imaginei que o coração fosse uma coisa insignificante, mas a abelha bebeu e depois disparou rumo ao desconhecido, mostrando-me sua coragem selvagem, provando meu erro. Aquele coração suportava mais do que eu supunha. Eu nada entendia de abelhas. O Nada ensina muito sobre o Tudo. Só o silêncio que traz sentido aos barulhos. E então eu absorvia da vida a própria vida e me preparava para algo que não sabia. Acumulei decepções e fui o príncipe de horas sombrias e me vi esquecido e distante. Nas sextas e sábados e domingos eu trabalhava. Todo o resto fumava, bebia e fodia. Eu era o único esquecido pela humanidade e longe do que me fazia humano, eu me reinventava do zero, como se tivesse acabado de nascer ali. Busquei não me ressentir com os outros, pois eventualmente seriam eles isolados e eu me divertindo. Quem nunca pôde viver um período de isolamento não tem sequer um parâmetro mínimo, básico, para o autoconhecimento. A solidão nos ensina a buscar nós mesmos, conhecer essas pequenas e preciosas coisas que revelam nosso propósito de vida. Fui talhado por essas noites infinitas e vivi o sábado sem fim. Só por ser só é que ainda tenho todos os sonhos do mundo em mim. Por vezes, ainda que quatro anos tenham se passado, eu fecho os olhos e me enxergo preso naquele sábado dolorido.

Olhos fechados. Imersão. É sábado novamente, 2018. O que eu posso fazer além de ficar recluso? Ir na pizzaria? Entrar em uma festa como penetra? Não, eu não conheço ninguém nessa cidade. Sou muito afável e polido para as zonas; muito direto para o romance, muito tímido para fazer amizades e estou cansado de ser engando por mulheres nos aplicativos. Só eu sou quem sou e mais ninguém é quem deveria ser. Tantos questionamentos sem respostas e um bafo de morte me seduz dizendo que tudo se iguala e que um dia virarei pó. Eu, resignado com a solidão, devo aproveitar então a condição de ser só? Como se aproveitar se a solidão é assustadora? Tenho medo de mim ou do que não conheço ainda? Eu preciso acordar. Eu preciso me acordar. Alguém me sacuda agora. Eu quero muito sair daqui. Tanto faz Campo Grande ou Paris. Eu quero qualquer cidade que não seja essa e qualquer dia que não seja sábado. Alguém me acorda longe. Emersão. Olhos fechados.

Quatro anos depois e me vejo lá naquele passado sem ter a menor noção de mim. O sábado infinito vive a uma janela do presente. Eu vivia em automatismos, quase robô de mim mesmo, com ações previsíveis e espelhadas. Nessa época, havia uma moça do supermercado que sorria para mim e só um ou dois anos depois percebi. Um jovem vagaroso, descuidado e inocente. Ela queria ser convidada para sair, porque aquele sorriso era exclusivo, íntimo e intransferível. Eu, ingênuo de tudo, confundia com uma simpatia natural, mas só em uma epifania notei que ela nunca sorria para os outros. Tudo o que não soube naquelas tardes, eu aprendi depois. Assim vai a vida. Acontece o tempo inteiro, mesmo quando não percebemos. Por vezes até supomos perceber e a ignoramos. Tudo é real, às vezes, até algumas mentiras e é preciso tomar cuidado com o que ensombra e é, na realidade, armadilha. Não é toda sombra de árvore que oferece descanso. Respiro e fecho os olhos. A fúria cessa e me sinto manso.

Se é na ausência que se percebe as tantas nuances da falta de alguém, pergunto-lhes, como é tão comum que nos relacionamentos distantes ocorram tantas traições? Como alguém, ao perceber extenuada a falta de outrem, preenche-se de coragem e consegue trair alguém? Vileza cruel e sombria! É por isso que me criei contra os relacionamentos ao longe, por ver neles a maior possibilidade de imaginação e amor, até se provarem mais venenosos do que a maioria. Cumprem a falta de um em qualquer outro e essa astúcia estética me soa perniciosa. Odeio os relacionamentos ao longe por deduzir que se encerrarão em dor e sofrimento. Se o amor precisa tanto de presença, crer na distância faz a diferença? Estamos apostando no desconhecido a nossa fé cega ou isso é outra coisa? Não entendo agora, portanto, não me meto. É mentira que cada um sabe o que faz, mas é verdade que geralmente não devemos meter o dedo. O que fazer para os esforços se revelarem válidos? Como conseguir a astúcia de tentar de novo após acumular tantos revezes? Como se regozijar com a memória de tantos fracassos? Respiro e medito. Há partes que entendo e repenso. Há partes que ainda não entendo e faço as pazes com o desconhecimento. Quem sabe daqui uma década eu seja sábio o bastante? Vou perder para a vida, mas pretendo existir longe.

Aprendi que a minha linguagem do amor é o tempo de qualidade, assim, esforço-me ao máximo para estar presente e ser uma boa companhia na vida das pessoas que me cercam. Todo o restante perde o encanto quando estão longe de mim ou quando, por algum motivo, estão presentes e simultaneamente distantes. A presença física, quando não acompanhada de sintonia emocional, pode ser nula. Não posso me acostumar a ser ignorado, principalmente quando, vez ou outra, sinto a latente necessidade de ser visto. Que fazer de mim quando quem me ama se esquece que eu existo? Respiro e medito. Persisto? Penso a vida inteira e encontro paz, mesmo que não encontre respostas. Cogito a condição de solidão para afiar meus pensamentos e afinar meus conhecimentos. Será que sozinho entenderia parte dessas tantas coisas que me escapam? Por vezes desejo ficar sozinho e me parece que o mundo se ofende, como se eu não tivesse direito de me pertencer. Sou mais dos outros do que meu? Sou overthinker por natureza e se não tento compreender, os pensamentos me matam (ou tentam). Tenho a impressão de que vim falar de sensibilidade e de que acabei por narrar tudo sobre a solidão, mas lhes pergunto: não seria a sensibilidade uma característica marcante de quem aprendeu a conhecer a solidão? Quem nunca se conhece corre o risco de viver fugindo de si mesmo, porém nossos pensamentos são mais rápidos que nós e nos alcançam. O que fazer para não viver eternamente sem esperanças?

“Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates. “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”, como neste relato agudo de Machado de Assis em Dom Casmurro. Aprendemo-nos sozinhos? Interlúdio e respiração ofegante e difícil. O peso ou a leveza? Não sei ainda. Meço meus desejos e posteriormente meus sonhos. Como li anteontem, “nossos sonhos merecem nossa disciplina”. Como tantas vezes falho até nas próximas rimas? Os meus romances aguardam mais palavras e mais coragem. A vida pungente quer me mostrar algo. O que estou deixando escapar? Não tenho convivido o bastante comigo mesmo. Estou sempre claudicante, exausto e queria me deitar em uma banheira de gelo, para restaurar meu corpo. Poderia o gelo restaurar também a minha mente? Qualquer detalhe faria a minha vida diferente. Que sejamos ocultos a quem é alheio e que toda a honestidade do mundo fira os outros, entretanto, quando se olhar no espelho nas manhãs, você deve dizer a si mesmo o que deseja, sem se avexar ou enrubescer. A vida exige que saibamos o que queremos querer.

Bem, sinto que cheguei ao fim destes relatos e sustento um orgulho tosco, quase vil, em apreciar o meu tempo sozinho. Tenho a impressão insistente de que quem não sabe ser só, simplesmente não se tolera e eu, mais do que me tolerar, aprendi desde cedo a me amar. Quem é que passeia no shopping e não repara nas famílias com filhos pequenos? Quem corre nos parques e não para numa apreciação lenta dos animais? Quem nunca se admirou com o sopro súbito do vento que faz as folhas dançarem? Quem nunca deitou no chão gelado de pedra e contemplou as tantas estrelas no teto do céu? Os meus gatos e o meu cão me ensinam todos os dias sobre a importância das coisas frágeis. Que mais me resta dizer?

Saiba ser sozinho, eu imploro, assim, você nunca correrá o risco de se perder das coisas que são realmente importantes na sua vida. E se não tiver animais de estimação, eu recomendo fortemente que arranje um. Em princípio, você sentirá que precisará cuidar deles, mas a realidade que se prova é avessa. Nossos bichos cuidam mais de nós e nos ensinam em menos tempo muito mais sobre a delicadeza, o carinho e o amor, portanto, enfim, altero a minha sentença final. Retifico-a e digo:

– Saiba ser sozinho e adote um animal!

Meu coração não é meu.

Meu coração não é meu,
embora me pertença desde que nasci
Quando estreei no mundo
já tinha uma identidade estética
O meu rosto aprendi a conhecer porque
crescemos todos cercados por espelhos e reflexos,
Entretanto, busco ainda a face original da alma que tenho
Só quem se desvê realmente se conhece um pouco
É preciso mergulhar fundo para deixar de ser oco
Sou um inútil e me chamam de idiota por acreditar
Eles não sabem que todos somos idiotas, acreditando ou não
Suspiro, deito na pedra e fito o céu sem usar fitas
Analiso a forma de uma nuvem branca
Ela dança e se divide até se dissipar
Existe nuvem que quer chover
como se quisesse chorar
Existe nuvem que vai desaparecer
depois de tanto dançar
Os físicos explicarão o fenômeno segundo suas Leis
Só que não há muitos fisicistas que bailem
Fecho os olhos e enxergo novas coisas
Tudo o que saiu da minha cabeça é meu
Amo os espaços vazios e sou incompreendido
Quando me observavam, ainda criança,
vagando e divagando pelo quintal
sempre se perguntavam: – Que será que está fazendo?
Eu apenas fazia, entendendo-me menos ainda
O que acontece dentro do peito é estreito
Confesso que nunca me soube tão bem
Queria ser convicto de tudo, entretanto, emudeço
Será que os desajustados vão além?
Sou uma espécie de confusão acumulada
prestes a irromper em uma certeza
Se soubesse qual parafuso me falta
eu mesmo me martelava até me consertar
Só que sinto que sei quando algo está com defeito
Reconheço tudo que está quebrado
Eu só estou do meu jeito
E tudo o que não surgiu
da minha mente é estrangeiro,
mas não necessariamente mentira
A única verdade que creio é que o mundo gira
Meu coração não é meu,
embora me pertença desde que nasci
Sou eu tudo o que vi
Sou eu tudo o que vivi
Sou eu ainda tudo o que não sei
Sou eu, enfim,
tudo o que nunca saberei
Este coração que não é meu desaparecerá
no dia que o meu corpo se decompor
Sou inútil a ponto de acreditar, que mesmo morto,
sobreviverão os meus versos de amor.