Tinha um hábito velho, mas não envelhecido, hábito pronto, feito herança que a alma traz de longe. Outro passado, outro corpo, outro rosto, ainda que de uma forma complexa, vil, irreconhecível, eu compartilhasse a mesma essência que minha versão atual. O mundo mudara e meus hábitos metódicos permaneceram. Era de sorrisos fáceis, risadas altas, mas tratos longos, demorados. Sabia ser feito de qualquer coisa antiga e às vezes tinha que tirar a poeira de mim, como um livro esquecido no meio da prateleira, páginas amarelecidas pelo desgaste das décadas.
Por que é que me sinto vencido? Para onde foram tantos anos perdidos? Quase sempre não me sentia bem, mas tinha um talento raro de ouvir e entender, de olhar e ver, de tocar e fazer com que me sentissem. Fantasma de tantos mausoléus, eu arrepiava a todos, mas me sentia frio, solitário e distante. Como explicar aos outros que os outros não bastam? Como me confessar, sem ser ingrato, mantendo o tato, que não são eles que me faltam?
Obstinadamente, eu insistia em buscar a primeira verdade do mundo. Eu queria saber qual o rosto que a minha alma tinha antes da criação do Universo ou que magia, encanto, gesto fútil e estúpido, que fez um homem triste e inútil se apaixonar pelos versos. A poesia, a prosa, as frases, todo detalhe me encantava. Aprendi por coincidência a perseguir o rabo da palavra. Como quem pega um bicho fugidio, um peixe pescado, a palavra pode se debater. Ofereça-lhe ternura e escute o que você tem a se dizer.
Olha, que não se adivinhem os fins, pois o mais importante é o que há na jornada. Se todos nascem e morrem, nossa única obrigação é tentar desfrutar da própria estrada. Tudo sucede expansivo, crescente, dominante. Tentei pendurar minhas esperanças em outras pessoas, mas a verdade é que elas sempre precisaram mais de mim do que eu delas. Desenvolvi ainda novo uma relação prodigiosa com a solidão. Aprendi a preencher os espaços com silêncio ou música, assim, acostumei-me a ouvir o coração. Quem é que sabe de nós senão nós mesmos?
A Tristeza bateu a minha porta entre 2010 e 2014. Foram quatro anos de crises de vômito, mais de vinte e cinco internações. Antevi o destino último da Terra enquanto vomitava tudo o que havia comido e depois o que nem havia comido e depois a bile e depois qualquer líquido escuro, preto, que saía de dentro de mim. Isso é o que meus órgãos fizeram para me punir por não saber lidar com a raiva?
Nunca amansei, mas aprendi. Meu pai me dizia para sorrir mais, meu avô me dizia para sorrir mais, filho, você sorria tanto e o tempo inteiro. Como diria a eles que isso foi antes de ler os gestos e os olhares? A melancolia funda que se aloja atrás dos olhos, os medos, os segredos, tudo o que infla por dentro e pesa por fora. Nunca mais sorri igual antes, pois comecei a ser uma espécie de esponja e absorvia instintivamente todas as dores. Cada recorte mínimo de tragédia era meu e eu tentava puxar para mim. Quando a minha mãe chorava e se rasgava na época da perda do amor, do conforto, da vida, eu fazia uma dança estranha em momentos específicos, estrategicamente aguardados. A dor então cedia, uma rachadura de alegria em uma montanha de traumas, entretanto, por ali entrava a luz do sol e a gargalhada soluçante de minha mãe preenchia os ambientes. Que é que me importava vomitar oito, dez ou doze horas seguidas? Eu tinha uma relação formidável com a solidão e, bem, se eu acabasse perdendo, seria uma derrota. Não quer dizer que eu não lutava, certo?
Nunca amansei, entretanto, observar cautelosamente as pessoas me fez compreender. A vaidade, a alegria, o medo, o desejo, a inveja. Tudo isso passeava estrangeiro no campo dos meus pensamentos e eu aprendia cada vez mais. Não tardei em notar que a maioria não tinha coragem. É preciso se indispor se o objetivo é a justiça. Quantas vezes não se feriram comigo e retrucaram com o silêncio? Não é nossa obrigação adivinhar o que não nos contam.
Acostumei a não se acostumarem comigo. Uns tantos amigos jovens ficaram furiosos quando eu os interpelei a respeito de adultérios. Disseram-me, ei, somos adolescentes, ei, somos novos, ei, nesta idade podemos errar. A equação perfeita dessas idiotices não incluía o quanto estes erros eram premeditados. Não incluíam também a outra parte, como se fosse obrigação de alguém suportar uma traição, apenas pela juventude. Cresci tão correto e valente que muitas vezes quiseram me prensar contra a parede, como se eu não tivesse direito de ser covarde, de falhar. Sempre fui imperfeito, entretanto, recusei a agir sem inteligência, domando o instinto tosco de animal selvagem. Talvez cada um de nós tenha esse instinto puro, essa bravura indômita, essa coisa qualquer que não se sabe o nome ou o motivo, essa razão em ser irracional. Talvez cada um de nós acumule tantas obscuridades secretas que, cedo ou tarde, elas escorrem, mágoas, raivas, sonhos, zombarias. Tudo se mistura em um caldeirão de sentimentos.
Quem é que sabe o que quer? Quem é que sabe o que é? Quem está sozinho e deseja desesperadamente alguém? Quem não consegue seguir o próprio caminho por se ver refém? Vez ou outra ainda me enxergo no passado, calado, escurecido para dentro, entretanto, desprovido de instintos amargos, nu de qualquer coisa animalesca, apenas um menino distraído e com fama de desatento, apenas por prestar atenção em coisas que ninguém dá a mínima. Que é que somos além do que sonhamos?
A solidão é cômoda demais para os solitários. Quem está sozinho por covardia ou por consequências e não por escolha, está fadado a viver para sentir o peso das ausências. Quem preenche o espaço com companhias e nunca pôde estar sozinho, cedo ou tarde vai se perder e hesitar sobre o destino e o caminho. A solidão propositada lapida, enobrece e nos prepara para dividir o espaço quando outrem entra na nossa vida.
O trabalho anda me consumindo muito tempo nas últimas semanas, eu tenho ficado bom em resolver as coisas, estou melhor, mais rápido, mas não consigo dividir meu foco e a rotina implacável me esmaga. Como se persegue o sonho quando se esquece de sonhar? Tudo entra na frente do sonho maior. Entra antes o sono, o exercício físico, as obrigações de casa, a família, os amigos, a namorada, entra na frente ir ao banheiro ou beber água, entram antes os aniversários, os adversários, as distrações. Como seguir em linha reta com tantas confusões?
Confessei ao meu psicólogo que estava farto dos outros e que estava disposto a assumir uma atitude mais rebelde. Chega de ser babá, psicólogo, cuidador, amigo, conselheiro romântico. É preciso se virar sem a minha presença. Não que eu seja um anjo mal, radical, eu só optei por mudar um pouco o que era antes.
A sensação das sensações, o todo, não apenas a sombra, a inteireza, eu preciso entender, eu preciso me entender, abra a porta, deixe-me caminhar pelas ruas geladas nesta noite úmida ou dirigir a esmo sem pensar amanhã que a gasolina está cara, por favor, ouça a minha súplica, a tua súplica, eu preciso me entender, eu preciso entender, não apenas o superficial, mas o que existe além das regras, quero vislumbrar o que há além desta obediência cega, deixa-me apreciar a inversão, deixe-me uma vez trocar o dia pela noite, quero gritar na beira do mar ou na beira do parque, quero me estrear, antes que tudo isso se acabe e correr por aí, medir os barrancos e pular os muros, como se fosse adolescente outra vez, como quem cai e se suja e ri, por não temer nada, por não querer nada, deixa-me compartilhar o segredo com uma coruja, deixa-me olhar para este segredo do portão, este detalhe, lusco-fusco da criação, empresta-me tuas lentes para que eu possa olhar diferente e mudar meu jeito de mudar o jogo, entrego-me à sensação das sensações, sou uma peça pequena no todo.
Cuidado, pois a beleza não dura para sempre. Há coisas que você só pode ter agora e outras que só pode ter mais para frente. O passado não respeita o seu espaço e está presente. Só promete tomar cuidado para não perder seus motivos para sorrir. Não temos garantias de que o arrependimento não vai nos engolir. Somos apenas humanos contraditórios, complexos e incalculavelmente delicados. Preocupamo-nos com o futuro enquanto tememos o passado.
Este hábito envelhecido, nunca esquecido, é o que me faz ter a ousadia de buscar tudo o que eu quero. Não tenho dúvidas de que mereço e com paciência eu espero. Que meus sonhos me encontrem antes do próximo inverno. Desejo ardentemente tudo o que desejava antes. Se a idade é uma ilusão, eu aproveito minhas oportunidades e instantes. Nada me remete e nada se repete. Eu sei que preciso continuar brutalmente sincero e voraz, com meus olhos buscadores e vívidos, para sobreviver. Penso sobre o tempo e tento esquecer o relógio. Se me sinto diferente por dentro, posso existir fora do óbvio? O senso comum não me interessa. Anuir por praticidade, aceitar o pragmatismo de quem já perdeu a identidade, isso tudo me estressa. Se há só a jornada, meu objetivo deveria ser eu mesmo. Será que penso tanto em mim quanto deveriam ou ainda me devo? Será que tenho vivido sob as leis dos outros e esquecido o que tanto almejo? Já quase não penso sobre vitórias e derrotas, mas intuitivamente sei.
Não sonhar é perder.
Não escrever é perder.
Não ler é perder.
Desistir
de mim é perder
E estou necessitado de uma vitória para acreditar mais uma vez.