Overthinker.

            Escrevo por impulso e insistência, por necessidade e descaso, por prazer e por alívio, por tudo e por nada. Acontece é que penso muito o tempo inteiro, overthinker, qualquer coisa não tão alongada assim, conjecturas esticadas, mas não o suficiente para alcançar o mundo inteiro. Existir sem pensar é exercício de liberdade total. Pensar é sofrer e admito que sou tomado por dores até quando doer não faz sentido. Um grito reverbera no fundo da consciência, mas eu o ignoro. É que nunca esperaram pouco de mim e por isso vivi pressionado. Sou tudo e nada, portanto, é difícil me descrer em absoluto. Vi muita televisão ao longo da vida e agora sou tolo o bastante para acreditar. Eu preciso me desapegar da ilusão de que posso alcançar o que chamo de totalidade. Sou irremediavelmente eu e há dias que me canso. Há noites que me canso e.

            É possível mesmo individualizar um desprezo fulgurante para a figura de um ou outro homem enquanto concomitantemente o amor maiúsculo pela humanidade segue em uma crescente? Li alguns ensaios sobre isso, estudos ou filosofias (ou só discussões) de homens que odiaram um homem em específico e se derramaram em amores pela humanidade. A ideia me faz rir, mas não me arrisco ao teste. Tenho me perguntando qual é a relação minha com os outros e me vejo em um labirinto. O que é que faço do elo com os outros da mesma espécie que eu, esses tantos tão iguais e tão ridiculamente diferentes, que é que me conecta? A conexão que busco é vã ou a ilusão de conexão é necessária para sobrevivermos? O que devo aos outros tacitamente por ser também humano? Os deveres, mesmo os básicos e claros, poderão ser ignorados por uns, ainda que sejam essenciais em um quadro maior? Temos escolha ou somos eternamente vítimas das escolhas que fizeram antes que fôssemos independentes o bastante para escolhermos por nós mesmos?

            Contenho meus impulsos de violência, sim, enraivecido estou, entretanto, liberto-me em pensamentos. Sou livre e me admito imperfeito. Hipócrita? Não, mesmo que me contradiga vez ou outra. Suspiro e liberto do peito o peso do Universo. Fui tudo por saber que sou nada. Se tudo lhes parece sem sentido, isso não me afeta. Não preciso me atribuir sentido para seguir em frente. Acordo e torno a dormir sem motivos e sigo em frente. Erro ou acerto e sigo em frente. A vida é apenas seguir em frente. Estou sendo deixado para trás por muita gente, mas de que isso interessa? Só preciso seguir em frente obstinadamente como sempre o fiz. A felicidade chega e passa. A tristeza chega e passa. A raiva me manteve alerta e o meu orgulho ferido me fez dar um passo adiante e viver coisas inesperadas e bonitas. Toda história triste acaba. Toda história feliz também. Eu hoje me regozijo pela sorte de viver minhas melhores horas. Estão me esquecendo. Estão me deixando para trás e há pouquíssimos que notam. Estão fazendo tudo isso e.

            Para ser honesto, eu não tenho uma resposta para isso. Tudo me escapa, entretanto, capto tudo (mesmo o que me escapa) em um retrato mental fracionado. A minha memória vai se esquecendo de coisas desimportantes e, ainda assim, tenho a capacidade de me lembrar das melhores lutas da WWE, dos melhores gols do Palmeiras, das maiores crises de riso na adolescência, do maior medo da infância. A família por parte de pai era rica e a família por parte de mãe era pobre. Era excitante transitar entre os dois mundos e deixar flutuar a sensibilidade que sentia. Nada que os opulentos me deram valeu um dia mais do que os tomates com sal. Era tudo o que a minha avó poderia me oferecer, mas ela sabia que ao me entregar aqueles tomates, que eram apenas tomates, estava ali recebendo toda a minha gratidão e o meu amor. Sei que divago, sim, claro que sei. Tudo se perde entre minhas fantasias e ficções, entre realidades e encenações, não obstante, eu repito o que li anteontem em uma crônica de Clarice. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos.

            Se não lhes parece, que não lhes pareça. Não vivo para comprovar o vínculo, entretanto, insisto em lhes contar que essa convicção genuína que sinto, esses impulsos livres e amorosos, fazem-me acreditar em heróis, filósofos, santos, loucos e até em mim mesmo. Sim, tornei-me ousado o suficiente para me amar e até para me crer. Se não lhes parece que a minha mente e o meu coração estão ligados à escrita, bem, parecer é menos importante do que ser e sou, sem dúvidas, escritor. Escrevo por impulso e insistência, por necessidade e descaso, por prazer e por alívio, por tudo e por nada. Acontece é que penso muito o tempo inteiro. Penso desde que era criança e acredito que vou pensar até meus últimos segundos de vida. Penso em mais milhares de coisas que não caberão neste texto ou nessa vida. Sorrio e me distraio antes de suspirar. Os pensamentos logo voltarão. Como é frustrante ser um overthinker.

MANCHA.

Estou ficando sem tempo
por estar com muitas horas sobrando
Perambulo nu pelo apartamento
Estranhas coincidências me fizeram
morar sempre no andar mais alto dos prédios
Outras casualidades me colocaram ao lado de igrejas
Vizinho de Deus e alto como os anjos
Gargalho destas notas mentais e bebo cerveja preta
Sou acometido por uma memória sexual
e dedico um tempo na rima mais óbvia
Entro em um banho gelado na madrugada
saio com as costas molhadas e fito o reflexo
Sei que estou ficando sem tempo
Perambulo pelo apartamento, úmido, sutil
Depois ligo a música alta e ignoro os vizinhos
Eventualmente adotarei um gato de rua
Medito sobre o futebol, a poesia e a morte  
Abro a porta da geladeira e como chocolates amargos
Os chocolates, os ovos mexidos, o suco de limão
são os primeiros pilares da minha independência
Gargalho de como é ridículo o termo “independência”
Ninguém nunca poderá existir realmente sozinho
Nesta quinta-feira que já foi sábado
Neste início de março que outrora foi coisa nenhuma
Suspiro e solto o peso todo de minha existência inútil
Filho, parece que você carrega o Universo inteiro no peito
Não conte aos outros, mãe, é verdade, eu carrego
Desdobro-me pelas pessoas importantes e
me reconheço esquecido em meus tantos cacos
Mania repulsiva de me deixar para mais tarde
A música romântica toca na televisão distante
Um bicho que não é uma aranha escorrega pelas teias
A metáfora do ferro e do vinho me abandona
As lições de Rivière agitam minhas moléculas
O propósito é uma loucura obstinada dos teimosos
Pelo menos nós temos a coragem para pensar e gritar
Esses tolos emudecidos pela ilusão do dever de passividade
Como me irritam os que engoliram o manual das boas maneiras
Querem matar qualquer um que seja autêntico
Disseram-me que o fracasso traz lições e falho em aprender
A minha atenção divaga ao sentir o vento ou notar as cores  
Distraio-me da vida quando me agacho e cheiro as flores
Excessivamente curioso acabo perfurado pelos espinhos
O sangue rubro pinga no tapete branco
Não é preciso perdoar os tolos imprudentes
Não é realmente necessário ser independente e rico
Os melhores enganadores mergulham os distraídos em truques
Os feios são belos, os vulgares são polidos e tudo é ao contrário
Ver a verdade é uma infelicidade tremenda
Contenho meus impulsos de distanciamento
Convicções irrefutáveis se agigantam na consciência
Eu sei que há feridas que nunca se fecham
e há manchas que não saem com a lavagem.

A CIDADE FEIA

            Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra. A culpa pode ser do TDAH, da memória, da inconstância, não importa. Não se realizar traz uma clareza sobrenatural sobre a vida. Nunca deixo de sentir que continuar é falhar, ainda assim, algo me impele, por reflexo ou também por distração, a seguir em frente. Quem dera os meus (nossos) mistérios fossem facilmente solucionáveis e a gente não precisasse aumentar o volume da cabeça para continuar processando a quantidade avassaladora de mudanças que ocorrem. Mudo de opiniões, porém me flagro em um esforço hercúleo para preservar minha essência. O que não contradiz o âmago, de um jeito ou de outro, resguarda-me. Há vezes, entretanto, que me pergunto a razão de me resguardar tanto, a razão de não me admitir desarrazoado e cometer loucuras, porque isso tudo flutua distraidamente na nossa cabeça e tudo se sucederá súbito e semelhante enquanto todos compartilharmos o mesmo fim. Despropósito pessoal e outra enxurrada de informações. Na vida a gente aceita migalhas de amor, mesmo sabendo que são migalhas. Queremos todas as lutas, mesmo quando é vazio o valor da batalha. Queremos desesperadamente vencer e sermos lembrados. Precisamos da ilusão de que seguiremos aqui, mesmo depois de mortos, ainda que em um vulto distante de lembrança, um detalhe passageiro na recordação de alguém. É difícil contemplar o reflexo no espelho e ver ninguém.

            São Paulo é uma cidade ambivalente. A realidade crua choca e aterroriza. Pessoas deitadas e esquecidas, muitas delas dormindo, algumas outras pedindo insistentemente e ao mesmo tempo surgem artistas produzindo belas músicas e paisagens únicas e significações. Tudo está ali quase como se não estivesse. O Beco do Batman, agora Buraco de Minhoca, abriga secretamente aventura e prazer, mas me flagro andando solto, distraído e leio uma frase “você se orgulha de quem tanto tenta ser”. A frase me comove e na releitura percebo que esqueci a interrogação, mas tudo fica bem porque há perguntas que são certezas no meu coração. São Paulo é uma cidade feia e intrigante, eu digo com certeza que em quesito beleza não se compara com a minha Campo Grande. Que há nesta cidade antiga e suja que me atrai? Julgo ser a capacidade de tornar tudo indiferente. Existe uma obrigação tácita, algo nas entrelinhas, que te força a abrir mão da vaidade em um limite extremo. Há méis que são venenos. Será que eu abandonaria a minha sensibilidade tão constante acaso morasse em um lugar assim? A feiura não deve ser romantizada, entretanto, percebo-me deificando os especialistas na indiferença como se a abstração definisse quem sabe realmente viver a vida. Quem se aprofunda demais em tudo acaba afogado e foi assim, quase sem ar, vomitando água que parecia nunca terminar, que me desfiz da convicção de que se importar é sempre benéfico. Se olho para todos com a intenção de zelo, eu contenho meus impulsos que urgem por retribuição. Todo ato de amor deve ser genuíno, direto e sem intenções, mas posso eu controlar meu âmago, a minha sede de justiça? Vez ou outra me vituperaram por me assumir cru, incontível e incontido, escancarado. Quando zombam o meu sonho sacro de escrever livros, quando escarnecem dos contos ou crônicas, quando me provocam, eu retribuo com agressividade. Sinto que sou e sempre serei furiosamente delicado e essa indolência, essa indiferença paulistana é inatingível pra mim. Até mesmo os vendedores, que por antecipação supomos que agirão com delicadeza, destratam os clientes tranquilamente, como se a grosseria fosse motivo de celebração. Ah, São Paulo! Tão inigualável nas noites e tão ridícula nos modos! Ah, São Paulo! Tão triste, agitada e comovente… A cidade feia é repleta de magia. Chame do que quiser, mas aprendi que há algo de especial nesta feiura. Julgo que a personalidade da cidade é fria e dura.

            Flagro-me pensativo sentado dentro do carro e observo o céu e as pichações. Muros, paredes, pontes, prédios, tudo alvo da arte de rua. Quem é que sobe tão alto para desenhar um símbolo que pouquíssimos saberão o significado? Não, claro, eu deveria saber melhor. Quem sobe alto sobe por conta própria e por si. É sobre fazer o que deve ser feito, ainda que os outros não entendam. Julgo que os grafiteiros e os pichadores e os artistas ajam todos por instinto, pois só o que é feito por instinto representa realmente arte autêntica. Sofrer é pensar, assim, para a criação de coisas frágeis é preciso se entregar de corpo e alma ao trabalho. Se mudará vidas ou não, isso não pode interessar, mas quando algo belo e legítimo cruzar a minha mente, que meus dedos desnudem minhas verdades e me narrem por inteiro. Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra, mas isso não interessa. Quando não puderes mais permanecer neste mundo, erguerei a cabeça, recobrarei o ar e seguirei caminhando. A jornada não acaba enquanto eu puder continuar sonhando. Talvez eu nunca me cumpra e isso não faz diferença. Não há fatalidades e a liberdade é a minha única sentença.

Razão da escrita.

Escrevo, pois preciso sobreviver e não há alternativas.

A frase soa pretensiosa, entretanto, é verdadeira. Estranhos são os caminhos que levam ao crescimento, tudo isso que me guia até o que chamo de autopercepção. Perceber a si mesmo, porém, não basta. Estar cônscio e ignorar a realidade me faz flertar com o vexame. Existo como uma espécie de ponto de exclamação. Nunca me oferecem o benefício da dúvida. Há sempre sentenças entusiasmadas, sejam elas decretos alegres ou fúnebres. Que faço eu de mim se não sei o que os outros o fazem?

Não, essa não é a maneira correta de se pensar. Os que já desistiram revolverão para dentro e dirão qualquer coisa como “não é bem assim”. Claro, é raro, nunca é o que parece, tampouco o que é, afinal, em regra, não é bem assim. As novas pessoas ditam as novas regras e esperam que eu me acostume ao incômodo odor do estrume. Em seguida me fitam desconfiadas, franzem o cenho e me julgam com uma opinião pulverizadora. Inexisto ou estou morto após o extermínio da originalidade? Antecipo a realidade, absorvendo-a, digerindo-a, não sem sentir uma extrema náusea, uma aguda vontade de vomitar. As opiniões que interessam são flechas no vazio, afinal, ninguém se dispõe a ler sobre quem não tem voz, mas se o palco é conquistado através do texto, como devo me tornar uma estrela literária sem a oportunidade de ser lido? Escrevo para sobreviver e saciar meu alívio, mesmo que não faça sentido. Continuarei escrevendo, eu sei, mas por que palpita em mim a urgência da publicação? O que explica essa vontade de escancarar ao mundo meu frágil coração? Quero transcrever a realidade pungente e linda em um livro de ficção. Ouso nesta confissão sugerir que, se por minhas entrelinhas derramasse meus segredos amalgamados, não haveria sequer uma pessoa que os percebesse. A necessidade de ser o centro das atenções diminui diretamente a capacidade de ser atento. Cobriu-se de glitter, gritou suas mil qualidades e naquele desfile infinito de vaidades, eu observava a tudo, triste e lento. Casa de palha e porquinho despreparado. Vê que a maturidade se perdeu no primeiro sopro do vento?

Olha, se pela minha língua vejo a sinceridade bloqueada, não pela presunção do que é falso em mim e sim pela surdez forçada, resigno-me ao silêncio. Sei, por outras cronologias quais habitei que há silêncios que envenenam, entretanto, há honestidades que quando diante da vaidade suprema se esfacelem e se perdem. Não sou hostil com os outros, até que passem muito do ponto. Condenam a minha agressividade, mas só reajo quando me fazem de tonto. Afaste-se no ápice da minha lamúria. Ao ser provocado, posso mostrar a minha fúria. Zombaram de mim e esperavam um silêncio vazio. Respeite o temor do sábio e tenha cuidado com a ira de um homem gentil. Tenho o hábito chato e insistente de duvidar de mim. Quem está sempre certo de si e de tudo o que faz perdeu o senso de direção e qualquer réstia de humildade. A grande problemática em não ser humilde é começar a olhar para o espelho e se enxergar maior do que realmente é. Além disso, não obstante, a cautela nunca deixa de ser necessária no caminho do progresso. Essa simbologia narcisista de se apaixonar pelo espelho é o reflexo do regresso. Acalmo minhas expectativas, afinal, ainda sou ingênuo para o mundo. Sofro, choro, acerto e erro, mas sou presente e me desculpo.

A expansão do conhecimento, a absorção da vida social, olhar com o desejo de realmente ver, isso tudo traduz em mim uma segurança que, vez ou outra, rejeitei. Se o tempo é um conceito relativo ou inventado, há obrigação real em me aprimorar? Essa preguiça dos grandes pensadores que se infundem nos conhecimentos dos coachs, os tantos técnicos de pessoas, isso tudo me representa exatamente em que sentido? Nenhum, eu sei, mas por mais que sejam vãs minhas palavras, escorro por entre elas. Escritores escrevem e é tudo o que sei. Esse hiato ingrato quer me provar coisas que eu já aprendi. Aconselho-me por graça e por nostalgia. Sei o que fui, quem sou e quem quero ser um dia. Olha, que nem todas as minhas poesias são excelentes, entretanto, sou poético diante da vida. Confesso que nunca me esqueço da sombra da morte e não vivo por acúmulos. Tudo se perde e não tenho porque enfiar novos papéis na gaveta. Perco-me neste ensaio de mim mesmo e respiro fundo para recobrar o ar enquanto olho para o teto. Problema pessoal do caso concreto. Ia dizendo algo como “saber ter sido só no passado não significa saber ser só no presente”. Avançamos em certas áreas, regredimos em outras. Nada é permanente. Se a única certeza é a morte, como há quem ouse cuspir na vida? O que farei com a sorte se toda história é esquecida?

Não, eu sei, não é o que diriam os historiadores. Talvez Henry, talvez Nelson, talvez outros, talvez esses todos narrem a distopia inserida no meio dessa realidade, sim, talvez falem sobre dissonância cognitiva como meio de explicar a ruptura coletiva em prol de um governo prejudicial às pessoas. Como surgem pessoas viciadas em violência? Deificamos nossos representantes, somos súditos, sem regência. Que fará a história com os nossos ossos? Que será do que nunca foi dito? Quiçá alguns historiadores carreguem a literatura também, ainda que tudo se perca nos interlúdios da gigantesca história. Algum dia, algum lugar, alguma memória. Que contaremos aos próximos humanos se perdermos aqui? Até admito perder, mas mais adiante. Você caiu, é natural, não faz mal, mas levante! Estou divagando e noto os meus pensamentos flutuando e partindo. Frases, letras, poemas, até mesmo novelas, tudo isso me sobrevoa como uma nuvem dentro do meu escritório. Que tipo de histórias minhas contarão ao velório? Que tipo de narrativas cantarão no meu velório? Onde é que estão os meus tantos amigos? Abandonaram-me com tanto oportunismo? Estranho como os valores podem mudar radicalmente. Um dia Cristo, um dia Dorian, outro dia um réprobo deprimente. É inútil se render aos heroísmos, entretanto, ainda acredito nos heróis. Congelei no passado aquele ato que salvou a minha vida, pois o que ocorre hoje é triste e dói. Presente maldito e um homem que choraminga da própria vida após amaldiçoar o amor. Ergue-te logo, filho, você não é o primeiro a sentir essa dor. Essa sua ferida não se cura com excesso de atenção. Disfarçar o machucado aos olhos não é o mesmo que disfarçar ao coração.

Graças ao comprometimento assíduo que tenho com as letras e às artes, no geral, tenho me tornado consciente do meu crescimento vagaroso e gradual. Sim, ainda que eu cresça devagar, estou firme e sólido, ganhando tamanho e espessura, como uma árvore antiga. Crescimentos súbitos não são realmente crescimentos, se neles não se identifica continuidade. Penso-me e entristeço. Se sou contínuo e constante com o caráter, com os amigos, com o amor, com a vida, flagro-me inconstante com a escrita. O que me torna tão apaziguado e estático? Preciso continuar e revelar o que sei e o que não sei. Reconheço que o que não sei ocupa um espaço muito maior e mesmo quando minha alma abarcar os conhecimentos deste Universo, ainda não será o bastante. Um dia traduzirei o canto dos pássaros, a docilidade no olhar de um cão ou os murmúrios da floresta? Um dia serei capaz de estabelecer uma conexão por identificação com milhares de pessoas? Meu sonho alcançará o horizonte? Nasci pequeno e quero existir longe. Aprenderei os segredos indizíveis? Difícil, impreciso, improvável, entretanto, instiga-me o tanto de vida que há na Vida, os livros, a realidade, bem como a ficção. Tenho esse comprometimento assíduo com tudo o que importa. É fácil responsabilizar a vida pelas derrotas, pelos afastamentos, pelas escolhas, quando somos nós que dia após dia determinamos o curso do futuro, ainda assim, essa mania de comprometimento seja relativamente nova. Distraído preencho o papel com a tinta ou brinco com as palavras. Quem não ousa se buscar pode não se perder, mas também não irá se encontrar.

Interlúdio para respiração. O que justifica a escrita senão a própria escrita? Desde que, encontrei-me na denominação de escritor, eu escrevo. Que tipo de escritor não produz textos? Que tipo de alma se sacia? Que tipo de homem não se guia pelo que urge no espírito? Faça de uma vez e não espere. Controlo meu fogo com medo de queimar o mundo, entretanto, meus dedos flamejantes batem no teclado com força. Escrevo e ponto. Quem é que precisa de mais motivos? Tudo é incerto, mas sigo, meio por me importar demais, meio por um instinto selvagem e tosco. Se pelo decorrer da vida domei minhas selvagerias, como explicar que nos textos sou livro e indomável? Bicho dócil, ignóbil, manso, até se fazer irrefreável.

Escrevo e continuo a escrever. Escrevo para desvendar a mim e ao mundo, pois os dedos são mais honestos que a mente e, assim, posso me revelar sem ser teatral ou acrobático. Os dedos nunca sussurram e, bem, esta grande responsabilidade de me expressar no idioma original da alma, essa complexa disposição em falar sobre inúmeras cronologias, isso de tentar através da humanidade ser mais humano e cativar humanos, por meio do afago ou da provocação, isso me significa tudo. Intercalo entre gênio e estúpido. Nasci para amar e escrever, ainda que eu viva a sofrer. A minha gata Nami me observa pela janela, concentrada em algum detalhe que só a percepção felina pode vislumbrar. Há dias que queria ser como os gatos, pulando alto e encontrando um lugar formidável para descansar. Há dias que me perco do sentido e não há Pessoa ou Shakespeare que me sacudam o suficiente para retornar e retomar à realidade. Perco e admito minhas derrotas, nunca faço barulho para interromper o sono alheio, sou fácil ao diálogo com quem não tenta me manipular e entrego meu coração. Sinto um orgulho profundo de mim, mas ainda me sinto envergonhado pelas tantas vezes que errei no caminho. Estou me tornando um homem formidável, mas jamais teria ido tão longe sozinho.

Aviso último, sem tormento, lamento ou alarde: o que há de se perder não tem onde guarde. Anoto a última frase no papel sem sombra de ironias vivas. Escrevo para sobreviver, pois não há alternativas.

Sem reticências

Encontra-me hoje sem reticências
Percebe-me como sou: inédito
Não dê muita esperança para tua crença
Deixe que falem os gestos e a presença
Aquele outro eu de ontem já não existe
Aquela outra você de ontem também não
Outro dia me palpitou ao peito um súbito desejo
Capricho desforme do meu grande coração?
Não, o coração não anseia por muito
Satisfaz-se com a função de bombear sangue
A alma urge por um passeio solitário
e a maioria dos otários só anda em gangue
Sacode o meu corpo com tua força brusca
Nenhuma amizade de verdade te ofusca
Cuidado com o que tanto busca
Há sempre o risco de encontrar
Por existir demasiado tarjaram minha testa
O dia que me matarem, chorarão e farão festa
Contarão minhas melhores memórias e os cultos
descrerão estupefatos diante da minha cronologia inútil
A classe artística não recebe o apoio que merece
O artista que sobressai esnoba quem nunca surgiu
Alimentam-se da farta fama que os envaidece
O desfile deslumbrante do ego macio
Não obstante, fingem que esquecem
Quem solitariamente os aplaudiu
O único jeito de se encarar é subutilizar os espelhos
Dizem-nos tantas coisas o tempo inteiro e nos convencem
Sim, eles nos persuadem de que não somos bons
Eles nos persuadem de que somos muito bons
E nesta descompactação pessoal passamos a crer
As verdades se misturam com as mentiras
O velho não é necessariamente sábio
Bobagem, isso é o suco da idiotice,
Veja como é possível que um estúpido como eu
tenha escrito novelas, histórias e contos de fadas
Persevera nessa vida quem marca o papel com a tinta
e persegue o desfecho até o rabo da palavra
A constância é a perfeição e somos imperfeitos
Fúteis, inúteis, imersos nessas reticências
Acordamos e predizemos o dia, a semana, o futuro,
A arrogância de antecipar o imprevisível
Vê, filho, pessoas nascem e morrem todos os dias
Ninguém dá a mínima para a porra da poesia
até perder o avô, até ser demitido, até o fundo do poço,
De repente uma rima distraída cessa seu período fosco
Extravaso minhas humanidades em uma delicadeza furiosa
E repudio a crença em um mundo indolente e passivo
Te humilham, te cospem, te pisam e quando você reage
AH! VOCÊ… VOCÊ FOI MUITO AGRESSIVO
Ó vida, sonora estúpida de motivação
Você se fode todos os dias e não há comoção
Os cristãos erram propositadamente e julgam
Os não cristãos seguem o exemplo e se Deus existir
deve certamente estar envergonhado de nós
Entretanto os réprobos trajados de santos
são os primeiros que apontam e dizem que você não presta
Foi por escolher ser eu entre tantos
que sigo com a porra do alvo na testa
Estereótipos que não me comportam
Previsões que não me completam
Ainda assim, escrevo tudo isso como um desabafo
Outros humanos com suas humanidades se achegarão e dirão
Daniel, obrigado, ei, obrigado, eu realmente entendo
E nessa confissão secreta de intimidade
Odeio um pouco menos essa cidade
Por mais que me vituperem o tempo inteiro
Por mais que antes dos olhos, olhem minha roupa e meu dinheiro
Ó, VIDA! ELO ESTÚPIDO FINDÁVEL
Estarei a afundar eternamente?
Rasgo o papel, doo dezesseis livros, recito dois poemas
Passo um café, lavo a louça, como qualquer porcaria,
O sapo cangaceiro me cobra sobre as publicações
Não posso reclamar da simplicidade dos anfíbios
Eu o posicionei ao lado e o exigi que me exigisse
Um relâmpago cruza o céu antes do meio-dia
e me comovo ao ponto de provar meu próprio sal
Se os sapos choram, eles estão a cometer suicídio?
Torno-me sorumbático e pessimista
Tentei colocar no papel um pouco de poesia e falhei
Alguns amigos queriam me ver hoje
Disseram que estão com saudades e que tenho crédito
Até os encontraria, se me recordassem sem reticências
e me percebessem inédito
Entretanto, sendo pouco e tanto,
Resigno-me ao meu escritório repleto de tédio
A coluna por coincidência dói e não tomarei remédios
Queria escrever algo magnífico e devaneei sobre o nada
Quem poderia me ver como sou se sou invisível?
A minha imaginação é um milagre
que não odeia o que é real
Ainda assim, às vezes, eu queria ser menos fatal
Negar-se, entretanto, é decretar a morte de mim
Se tudo um dia acaba, vou atrás do rabo da palavra
Escolher eu mesmo meu fim.

Terça-feira morna

O lusco-fusco deste fim de tarde atinge minha pele pálida. O sol se recolhe e o temor cresce nesta noite sem luar. Fecho as janelas e respiro fundo, tentando apagar a sensação incômoda que me sobressalta. O cão, leal, fita-me carinhosamente com seus olhos de jabuticaba. O gato, bicolor, recolhe suas patas e deita ao lado do meu braço direito, cobrindo a distância que pode, sem me atrapalhar. Antes que a ausência da gata se faça sentida, observo-a surgir na porta do escritório e me analisar com uma seriedade misteriosa e complacente, antes de subitamente começar a lamber os próprios pelos em uma higienização longa e demorada. Tudo no cão e nos gatos é absolutamente natural. Estranho-me ao me deparar com a minha imagem letárgica, absorvendo a invernia deste início de novembro. A estreia do penúltimo mês do ano me deixa reflexivo e meus pensamentos percorrem vielas escuras e perigosas. Nos filmes e na vida, não há razão que justifique a insensatez de adentrar um beco de penumbra onde sombras de bichos se misturam e se confundem com fantasmas de pessoas, entretanto, para provar a minha espontaneidade e livre arbítrio através de uma atitude de pura estupidez, eu me flagro caminhando em frente.


Revolvo-me para dentro, interiorizando-me, internalizando-me, buscando no cerne qualquer coisa com uma pitada de magia, qualquer coisa que me faça deixar de pensar, qualquer solução para voltar a sentir e agir estritamente por instinto. Se todo o sofrer é individual, por que eu me comovo com as dores que não sinto? Se isso não é tristeza, será que secretamente minto? Os mecanismos e as mecanicidades engessam as ações e a sociedade se torna previsível, robótica. As academias de musculação estão cada vez mais lotadas, não pela preservação da saúde, mas por uma espécie de estímulo ao senso coletivo de estética. Todos nós devemos ter os abdomes tonificados e os músculos fortes. A flacidez apavora tanto os cidadãos modernos quanto a fome assola os miseráveis. Tudo que é fruto de um senso coletivo gerado através da indução premeditada me apavora. Resumimo-nos ao que nunca fomos. Os titereiros balanças suas cordas e as pessoas correspondem aos comandos. Absorvem doutrinas inteiras em um minuto e depois abrem suas cabeças ao fanatismo, sem compreender que é um caminho sem volta. Marionetes robustas, violentas e manipuláveis. Ajoelham-se para falsos deuses. Espalham notícias, antes mesmo de as lerem. Tornaram-se os robôs revolucionários, não pensantes, convencidos pelo primeiro vídeo editado que recebem. São liderados por qualquer um que entoe um grito populista e falsamente revolucionário. Pensam-se vitoriosos, mas o que acontece é justamente o contrário. O surgimento dessas novas estéticas, dos novos sensos comuns, dessa necessidade estrita de concordância, envenena pouco a pouco a minha alma. Se não formos iguais, não servimos. Quando suas ações não visam o lucro, quando suas ambições não são puramente monetárias, quando a astronomia da tua existência não engloba e engole o tempo inteiro o que ditamos como Sucesso, outras palavras ardilosas e ásperas como Fracasso entram traiçoeiramente como a brisa gélida pelas frestas da janela. Um dia eles foram outras coisas, mas já não se lembram de quem era. Aprendi que qualquer um que esqueça o passado se torna desprotegido quanto ao futuro. Talvez seja por aprender tanto que diminuí a frequência com que canto e vejo meu coração mais duro.


A alma não pode se tornar empedernida. Os conhecimentos que absorvemos com calma, creio que de alguma forma os levamos para outras vidas. Não é possível que isso seja tudo. A estética grita e cala o conteúdo. Tento falar, mas estou mudo. Será que é mais uma derrota amarga para processar? Não admito que isso seja o fim. Por vezes, sinto que a vida vai acabar, mas ainda tenho tantos sonhos em mim.


O peso das responsabilidades mundanas me sobrecarrega. A crueldade que não pude herdar de nenhum parente distante, esse ímpeto de bondade constante é o que me cega. Não posso admitir ser uno, se sempre me torno outra coisa. Mudo o tempo inteiro e abro a minha cabeça para mais, sem me imbecilizar. A religião de não ter religiões, eu, indivisível e puro, oscilante, falível, confio no meu próprio coração. O maior prazer mora ainda dentro da ilusão. Salto no abismo da inconsciência alvejando me tornar ainda mais puro, ansiando por agir de acordo com todos os estímulos que necessito para satisfazer a alma exigente. Mereço mais e sei, entretanto, acocoro-me no canto perto da privada e vomito, lúcido, sistemas, teorias e teoremas inteiros. Reviso mentalmente livros que nunca foram escritos e me sinto perto da morte e perto do divino. Penso-me grande, mas tenho todas as idades que tive e a gente só sobrevive se guarda em si um pouco de menino. Será que prezo em demasia a criança que fui? Desde a infância amo o vermelho e hoje noto que perdi meu reflexo diante do espelho. O vampiro envelhecido que não envelhece, a cabeça que não se expande, o antigo desejo de existir longe. O primitivo anseio de beber sangue. Ó, escuridão sombria, esconda-me hoje, esconda-me até o domingo, proteja-me quando nada mais puderes servir de escudo, projeta-se e fala quando eu me fizer mudo. Cavaleiro das mil noites trajado em seu manto rubro. Que valentia o faz enfrentar a morte sorrindo? Vituperado prossegue sem sorte com a memória de quando o mundo era lindo. Era lindo por que o era ou por que havia quem amar? Assim como o inferno, o paraíso também não é um lugar. Verifiquei a necessidade dos outros para ser profundamente triste ou imensamente feliz.


Tudo envelhece e um dia voltarei ao pó. Tudo arrefece e no fim se anda só. A vontade de não ter vontades, os suspiros cansados no meio do expediente, o meio expediente da vida, que pode ter acontecido a qualquer momento. Eu sozinho e sem saber como seguir e me orientar. A minha memória em outra cidade. O coração no lugar certo. A alma papeando com divindades em outras cronologias e distantes desertos. Eu tentando aprender algo para que. Tentando ouvir mais e se. Preocupando-me com os outros, mas sem receber essa preocupação de volta. Todos os desejos alheios foram realizados com leveza e facilidade, exceto os meus próprios. Tudo foi conseguido pelos opróbrios. Eu, quase corajoso o suficiente para ser digno, desdobrando-me e desbravando tudo, ficando quando todo o resto vai saindo, eu sofro solitário, sem ter ao menos meu próprio tempo para sofrer. Luto para fazer valer cada momento e mesmo quando tento e venço, é difícil sentir como se eu não tivesse acabado de perder.

Obrigação insistente.

Tenho vivido como se a vida não passasse de uma obrigação insistente, um constante cálculo de penhores, como se tivesse nascido devendo e por uma espécie de premonição, por um instinto divino, virasse a cabeça para trás e reconhecesse uma boa parte de mim que não reconheço completamente, mas enxergo como o exímio vendedor da loja de perfumes que vi apenas uma vez e que por saber vender e sorrir, gravou-se na tela de minha memória. Por vezes fito a tela e tenho a nítida sensação de que a vejo em todos os dias de minha vida, como um filho apegado à mãe, que cresce se escondendo atrás de suas pernas, seguro na proteção materna, na lembrança pontual do sorriso reconfortante. Em outras ocasiões, franzo o cenho e me flagro arisco, vulnerável, defectível e humano, assim, minto que me lembro do semblante do vendedor, entretanto, a imagem é confusa, distorcida e vaga, como se as faces de todos os vendedores do Universo formassem uma amálgama que atordoa a minha alma. Perco-me do fio que me conecta a mim, esqueço-me, atraso-me e perco os horários. Os começos todos soam como fins. Sou um e simultaneamente vários.


Cutuco minhas feridas com a teimosia de uma criança que arranca a casca do machucado recém cicatrizado e observo o sangue escorrer preguiçosamente. Entristeço e sorrio, como se tivesse a vivência de um Deus esquecido que permaneceu sozinho neste planeta silencioso por éons, como se tivesse vislumbrado o Aleph, visto os sóis da Galáxia, antes que me deixassem com apenas uma estrela imensa de calor. Nestes dias, busco em mim a satisfação própria e por não encontrar ou, por me julgar demasiadamente hipócrita ou frágil, recolho-me para dentro como uma tartaruga voltando ao casco, revolvendo para os confins do porão de mim, buscando a própria Via-Láctea cardíaca da minha alma. Lá e em Imaginações, devo encontrar a Redenção que procuro pelos crimes que nunca cometi. Lá e Além, devo compreender o que hoje para mim se escapa na simplicidade sem misticismos. Confio a minha vida a alguém que não deveria e sofro. Desconfio e descredibilizo a minha existência num ato de covardia fúnebre e me vejo tiritando, amedrontado por quem nunca ousaria me ferir. A distância entre a eternidade, o nunca e a primeira vez é curta. Os acertos reverberam. Os erros também.


Humanizo-me e não choro. Abro a gaveta da cozinha e pego uma faca. Brinco com o cabo da faca em meus dedos, leve na consciência pontiaguda de que um movimento errado pode me fazer sangrar. Pisco e me lembro então da casca arrancada, com uma espécie de ironia argêntea. Qualquer um que arranque uma pele morta não é acusado por sua negligência ou afobação, entretanto, alguém que brinca com uma faca e deverá ser interpretado erroneamente. Checo o interior da geladeira com uma desculpa para me livrar dos meus pensamentos mais torpes. Encontrar algo que não se procura traz uma fonte de alegria inesperada. Sobrevivo soporífero nas rotinas diurnas e nas madrugas, triplico a intensidade da minha rotina em sonhos sonâmbulos. Morri em uma queda de elevador triangular. Fui coroado imperador onírico em qualquer século antes de Cristo. Vivi numa realidade em que não havia deuses e que não havia a mera ideia de deificar normalidades. O comum era raro e tudo era extremamente comum. Olhei as coisas pela primeira vez e chorei, como quem corta uma cebola e sente a súbita ardência nas órbitas oculares. Corri até a janela e todas as paisagens eram imensas e deslumbrantes.


Cri, até deixar de crer. Sonhei, até verificar meus sonhos esfacelados pela pungência da realidade desconexa. Eu, que mereço, nunca terei. Os que não merecem, em regra, se cumprem e conseguem exatamente o que pretendem, assim, deveria apenas consumir este mundo de coisas frágeis e lentas ao invés de me comover por suas misérias. As tragédias são individuais e intransferíveis, mas qualquer um que viva a própria vida com as mãos no volante e, vez ou outra, ouse lançar uma olhadela para o retrovisor que revela as outras vidas, pode acabar batendo o carro. A feiura da realidade mancha a tela branca de nossa consciência oportunista.


Há inúmeras crianças e adultos e velhos espalhados pelo planeta, quase nus, sentindo a fome dilacerante. O que sobreviveu de suas consciências é mais atroz que a fome e são obrigados a engolir um pedaço jogado de pão, como quem engole todas as vidas que houveram antes dessa, como quem é obrigado a admitir que não possui nenhuma memória de dignidade e deve comer os restos que encontra no chão, exatamente como fazem os pombos. Aqueles vultos são escombros, pedaços de homens e mulheres que se perderam ao longo do caminho. Há quem dê de ombros e refute “nascemos e morremos sozinhos”. Há quem encontre saídas e mude a própria sorte. Há quem só sofra durante a vida sem nunca pensar na morte, pois se sentem antecipadamente mortos. Tudo é aterrorizante para quem vive com medo. O sofrimento é constante para quem se sufoca com inúmeros segredos. Refém das projeções d’alma, comovo-me, enraiveço-me defronte ao mais simples caso de adultério. Tenho sobrevivido sendo quem sou, entretanto, não compreendo ainda meus próprios mistérios. Fito sério o meu rosto no espelho e envelheço devagar. Sinto-me exposto e a contragosto, estou mais perto de algum lugar. Que paisagem é essa que me aguarda, ainda não sei. Se nunca morri por um capricho dos Administradores, se mantenho o meu emprego de Daniel enquanto a alma veste este corpo imperfeito, por que me preocupo com o futuro, se ele não existe? Que é que molha o meu copo de chope e faz minha alegria ser triste?


Nasci para não me cumprir e a expectativa pesa meu corpo. Teso, sinto meus olhos fixos nos retrovisores. Minhas mãos estão firmes no volante, porém falho em retomar o campo de visão da estrada. Sinto como se uma colisão fosse inevitável, entretanto, o carro segue adiante sem danos severos. Os meus planos já não acontecem como eu espero. Olho-me, curioso, seco, duro. Observo quem está de fora e foge das análises individuais em uma tentativa infantil de tentar se evitar. Ninguém corre mais rápido que os problemas e por isso é fácil notar que todas as tragédias estão sempre ao nosso alcance. O passado, inútil como nostalgia e fundamental como lembrete, avizinha-se constantemente do atual, do pensamento de hoje e constato que quem se firma no presente e somente no presente é consequentemente mais feliz. Que ideia vaga e ultrapassada é esta da realidade. Pisco e vejo centenas de vidas ocorrendo diferentes, apenas por uma decisão caprichosa de virar a esquerda instintivamente e não para a direita. Vejo o Universo rugindo cenários e mais cenários, incalculavelmente drásticos e felizes e tristes e caóticos e diferentes. Fixo-me na realidade sem chorar pelas milhões de vidas que nunca vivi, entretanto, espio pelo buraco no muro, pela fresta da janela que alguém deixou aberta de maneira descuidada logo antes de um dia de tempestade e encaro inúmeras outras realidades alheias. Julgo entender como aquelas pessoas, tão sólidas, íntimas e confortavelmente confiáveis na minha intuição poderiam me trair e sofro oniricamente por todas as traições que já sofri em outros cenários, por meio de outros sonhos e gestos, que por vezes se igualam a qualquer realidade atravessada que fira o ego. Sobre o olhar da consciência, preferia me manter cego, mas enxergo os detalhes paisagísticos de um aceno distante, de um sorriso febril, de uma vingança muda de uma traição que nunca houve e me calo, repousando a minha quantidade avassaladora de pensamentos em Lugar Nenhum. Sento no sofá e vejo o cachorro andando pela casa, assim como os gatos, assim como um garoto tímido de cabelos pretos e lisos e que sonhava em usar um topete, assim como um velho escritor lúgubre e quase satisfeito, não concretizando a satisfação própria por não escrever e finais e sim novos epílogos, por insistir em escrever novos capítulos, por adoçar a vida através de chocolates amargos. Tudo desfila diante dos meus olhos, o que foi e o que fui, o que nunca recuperei e sorrio exultante, como se triunfasse secretamente sobre a vida, que é particular e barulhenta.


O que sabem de mim, ninguém o sabe. O que sei de mim, não o sei. Coroado por vilanias e crimes, nunca fui rei de nada. Em sonhos diurnos fui tudo e fiz tudo. Senti frio, prazer, fome, vergonha, calor, orgulho e até felicidade. Vivi como se a vida significasse algo e posso jurar que vi os Administradores zombeteiros gargalhando da minha pequenez, com a convicção de que por um capricho sem esforço poderiam se livrar de mim. Quiçá a realidade seja apenas uma ilusão e todas essas crenças concretas não passem de coisas corriqueiras.


Interlúdio. O gato deita no meu colo e me fita carinhosamente. Olha dentro de meus olhos com um amor tão profundo e verdadeiro que, por instantes, creio na ilusão estéril de minha bondade. Isso não é útil e tampouco verdadeiro. Ninguém é puramente bom ou ruim, entretanto, o felino deita um olhar longo e repleto de amor, confiando sua frágil existência e todas as suas sete vidas a mim. A melancolia preenche o quarto somente nos espaços não ocupados pelos gatos e pelo cão. O vento ululante sopra qualquer nota de triunfo e sorrio conformado. Volto ao dia de ontem e celebro silencioso a vitória da Democracia, rezando, sem religiões, para que este país polarizado se una, para que se pense mais do bem coletivo do que no individual, para que se preze o que é justo acima daquilo que desejamos solitariamente. Os fanatismos todos me exaurem, assim, ao olhar minha imagem corcunda e cansada no espelho, percebo que o que é alheio tem em si o potencial de vituperar a minha saúde e sanidade. Não são mais do que soldados de uma causa desconhecida. São, eu me vejo solitário numa terra perdida. Prezo pelas luzes nas janelas acesas e pelas pessoas que se movem em seus quartos, em suas restrições, em suas liberdades. Ninguém se importa com o que deveria se importar. Tudo me foge e estremeço novamente, entretanto, é preciso confiar em dias melhores. Respiro fundo e vejo claramente, por um instante sacro, a imagem célere do Paraíso. O alívio necessário encontro na profusão dos meus sorrisos favoritos.


Tenho vivido como se a vida não passasse de uma obrigação insistente, um constante cálculo de penhores. Juntei dinheiro o bastante, mas agora não me lembro do nome do vendedor, não, eu tentei de tudo e não me recordo de sua face, de sua voz ou de seu tom de pele, não, nem mesmo das informações mais básicas. Suspiro.

O avião decola e muitos dormem. Talvez eu seja um deles, sempre dormindo, sentindo a pressão nos ouvidos até não escutar direito e ficar incomodado ou desmaiar em um sono profundo, raro e absolutamente silencioso. O avião decola e julgo que durmo, julgo que nunca acordo, porque todos os voos decolam e aterrissam e eu, mesmo tolo, creio que todos os voos são um só, ainda que todas as jornadas sejam diferentes. Afivelo os meus cintos e me reforço na prudência. Nunca hei de me concretizar. Os sonhos passam entre as nuvens. Não consigo fazê-los acontecer. Letras e ideias flutuam em percepções gênias, como milagres científicos sobrenaturais fabricados pelo meu cérebro, mas pisco meus olhos e todas as ideias voam para fora. Será que o sonho vale mais que a vida? Será que projetar a vida é sabotar o sonho? Nada jamais me convenceu de que a realidade é real, exceto os fracassos. Queria, por merecimento, apenas sentir que me entregarão pela boa vontade tudo o que mereço. Gargalho da minha ingenuidade. Só os suficientemente ousados e vis se concretizam e disso já sei. Ouço o choro do filho que ainda terei e o aninho em meus braços, prometendo para ele segurança e carinho, mesmo que isso esteja distante do meu controle. Não controlo nada. Talvez tenha morrido na estrada, na BR-163, muito antes do bloqueio patético dos caminhoneiros, muito bem pagos. Pisco e estou de volta ao avião. A aeromoça me oferece uma refeição leve. Peço os lanches, tanto o salgado quanto o doce, bebo o café, a água e depois durmo. Tenho a sensação de que nunca mais vou acordar. Tenho vivido como se a vida não passasse de uma obrigação insistente. Tenho a sensação de que nunca vi verdadeiramente. Deita e dorme, garoto, você fez muito e eu sei que parece pouco, mas você pode permanecer contente.


O peso ou a leveza, eu ainda me pergunto frequentemente. O importante é enxergar e propagar a Beleza. Este é único motivo legítimo para seguir em frente.

Verdades Inconvenientes

Só posso confiar em meus dedos
Subitamente eles escancaram verdades
das quais eu não ouso desconfiar

A psicologia nada serve
para quem vive na teia da aranha
A naturalidade que se exprime com leveza
é absolutamente enganadora

Alonga-se e dá um sorriso triste
O mestre titereiro puxa as cordas
A bailarina come, mergulha,
luta, dorme e até sonha, mas
nunca resiste e nunca dança

Teu corpo repousa longe da violência física, porém
finge não saber que a alma é vituperada todos os dias

Kiwi, morango, segredos batidos, cítricos
Tudo o que não se pode ter certeza
Abóboras zombeteiras no Halloween
Teias de mentira entre as de verdade
Isso tudo favorece a confusão dos ingênuos

Gêmeos caminham antagônicos
O mau contra o bom e os dois supérfluos
Um inseto com grandes antenas pousa na janela

Só posso confiar em meus dedos
Meus olhos captam imagens, vislumbres, estéticas,
Meus dedos desnudam vilezas, crimes, pecados
A voz hesita na mensagem e no tom
Os dedos, cruéis, são convictos

A coragem de ser covarde assumido
O coração mais resistente que o vidro
Tudo estilhaçado e espalhado pelo chão
Minhas vísceras, minha pele, minhas mãos

O sal dos olhos toca a ponta da língua
Estou comovido com um relâmpago na estrada
A BR-163, o Hospital Miguel Couto,
Tudo de novo e outra vez até estar morto
Tento gritar, mas já estou rouco

Sinto-me aliviado por conseguir usar os dedos
Estou pronto para revelar minha alma e meus segredos
Começo admitindo que sou um homem repleto de medos

Sacralidades profanadas em qualquer noite de quinta
O interno não aguenta mesmo tinta
O sexo é o consolo que temos quando o amor não nos alcança?
Só os tolos acreditam em velhas e novas esperanças?

Não há sequer um conselho que me disse que presta
Ninguém estampa a alma na própria testa
Não te falaram? Paris não é uma festa

Lá se vai o sol em outro fim de tarde
O que há de perder não tem onde guarde
A invernia me dominou, mas meu peito ainda arde

Morangos mofados, frutas podres, crises de identidade,
Homônimos perdidos e esquecidos pela cidade

Eu sei que muita gente não vale o que come,
mas você esperava que eu deixasse alguém passando fome?

Pinheiros, árvores redondas, garotos e garagens,
Circos, cachorros correndo na chuva, bichos selvagens,
A bola oito, o fim do jogo, o ressurgimento, o que importa,

Está morrendo afundando em uma espécie de senso comum
Está deificando um ser humano ridículo e se apequenando

Olha, sorri para as flores, canta para os amores,
Aposta corrida na rua e personifica o vexame
O estresse só aumenta e tenho medo do derrame

Sinto que posso morrer jovem e assim se lembrariam
da minha cafonice eternamente juvenil, mas diriam
eis ali um homem que sabia

Quando alguém quebrasse o silêncio fúnebre
perguntando sob a minha lápide sobre que diabos eu sabia
Quiçá surgisse alguém com certa intimidade e contasse:

Ele sabia sobre Tudo, sobre o Mundo, desde cedo,
mesmo assim ele quase nunca dizia, só antevia,
porque a verdade só se revelava nas pontas dos dedos
Meu espectro vazio talvez esboçasse um sorriso
Será que meu espírito merece o paraíso?

Olha, que tudo passa rápido e o hoje logo vira ontem e
A vida é para quem sabe viver e buscar o prazer
Olha, eu sei que falando assim, parece a ti que fiquei louco,
Sou um homem com muito, mas transpareço pouco

A estética que me importa é invertida
Aprendi há tempos o Nome da Vida

Todos precisam tanto de mim
Sou eu que as coloco de volta nelas mesmas
Ah! Sou eu que as faço enxergar suas belezas!
Ah! Sou eu que encerro, reato, sorrio, xingo, amo, odeio!
Ah! Parece-me que precisam de mim com uma espécie de sobrecarga
Acordo cedo e como chocolates e evito que a vida seja amarga

Tentei explicar à minha mãe e à minha namorada,
Olha, eu às vezes preciso ficar sozinho e me conectar
com as partes distantes de mim das quais me esqueço
Se coloquem no meu lugar, eu agradeço,

Obrigado, de nada, companhia, solidão, best-sellers,
Futebol, tartarugas, corujas, a escuridão e o medo,
A tua luz salvou a minha vida e este é outro segredo

Não tenho confiado em minhas percepções, entretanto,
acredito cegamente nas revelações dos dedos

Faça silêncio, por favor, há alguém dormindo
O choro de um novo menino vem surgindo
Vamos juntos agora, sigam-me os bons,
Tenho sido um grande líder, mas não admitem
Habitualmente querem andar atrás de mim,
mas aperto os seus braços e digo: andem ao meu lado!

Ouça-me capitão, tritão, um dia serei lembrado
Falo tanto que muitas vezes não sei o que dizer
Flagrei-me aos prantos até o amanhecer

Estou me tornando arisco outra vez
Meu coração de bicho de rua vê os faróis
Acordo suado entre os meus lençóis

A ampulheta jaz ao meu lado e a areia escorre
A minha memória enfraquece e ninguém me socorre
Tudo bem, todos precisam de mim
Meu instinto heroico sonha com uma morte bonita

Rio das mortes idiotas e isso não aceito
Rio da minha lorota: – como se eu controlasse o jeito

Gargalho e o som retumbante da minha risada
se parece com o relâmpago da estrada naquela vez que chorei

Do tudo vamos ao nada, mas nasci para ser rei

Olho para minhas excentricidades e me acho incrível e patético,
A realidade é que amo meu tipo de senso estético

Sonhei que era atropelado, mas acordei aliviado
Não havia sido vítima fatal do maior de meus medos
Sorri, sem entender meu próprio mistério, feliz e sério:
O importante é que eu ainda podia usar meus dedos

As maiores verdades são inconvenientes
Ninguém se importa tanto assim com a gente
Cada um se concentra apenas no que sente

Adivinhei a vida, mas o segredo dela me escapou
Tenho uma impressão frágil de que Deus me abandonou.

Estão tentando me matar

Estão tentando me matar
E ouço os aplausos ensurdecedores
que me congratulam por meus fracassos
Sorrio quase satisfeito, mas antevejo
com uma espécie de premonição
Estão realmente tentando me matar

Como quem acompanha a multidão
eu me aplaudo levemente, atrevido,
Não sou digno deste espetáculo, eu sei,
mas é extremamente educado aplaudir
Ainda sou furiosamente delicado
Ainda sou inevitavelmente triste
Ainda tenho a mesma idade
de quando pisei aqui pela primeira vez

Sou ridiculamente humano e sinto
um asco inevitável por mim mesmo
Sinto medos e refreio minha expansividade
Estou faminto e reconheço que não é justo
engolir o Universo inteiro como vingança

A sombra que meus sonhos projetam é alta
Se eu partir agora, quem sentiria minha falta?

Ridículo, patético, imbecis brochas
Fechados em suas solidões mecânicas
Perdidos em realidades virtuais viciantes
Eu bem que me venderia para habitar
outro planeta que não este
Ainda não me cansei dos animais,
mas essa gente me irrita em excesso

Tudo parece fora do lugar, mas vejo
um bem-te-vi e meu coração se acalma

Tenho a incrível capacidade de fazer
com que todos os outros se sintam bem
Quem me prioriza tanto assim?
Sei que posso elevar o astral do ambiente,
como diziam os mais antigos e velhos
E me flagro ridículo por reconhecer
Que viveria eternamente infeliz se soubesse
que o resto das pessoas caminha feliz
Altruísmo de esquina barato e raso
Felicidade comprada na conveniência
Amendoins oferecidos em voos nacionais

O apresentador toca um dos meus ombros
e aponta para o telão com o microfone
Desperto de algum sonho lúcido
Ouço novamente sonoros aplausos
A rede de televisão encontrou muitas pessoas
que agora contam dezenas de histórias minhas
Localizo entre eles alguns impostores
Todo este palco é falso
A única verdade que reconheço é a primeira:
Estão tentando me matar

Perco-me na profusão de cores
Olha, que tudo isso evidencia minhas dores
e choro por saber que se pagar o preço
Jamais erguerei a cabeça outra vez
Jamais serei um conquistador

Estão tentando me matar
Eu bem que queria dirigir pelas estradas,
entretanto, todos me exaurem com solicitações vãs,
A rotina dos escritórios é um suicídio diário
e devo me odiar para aceitar a morte cotidiana

Calma, filhinho, olha para o teu rabo, Espanha, Madrid,
Respira fundo, não chora, não foi nada, Holanda, Estados Unidos,
Ouça minha canção de ninar e jamais esmoreça
A vida é dura, garoto, mas não para todos
Há amigos que, na realidade, são lobos,
Há seriedades que se parecem com um jogo
É para teu bem e também para o bem dos outros
Quando foi que menti para você?
Eu e o Presidente da República falamos a verdade
Enfraquecemos a nossa inteligência e ostentamos a vaidade
É para teu bem e para o bem da cidade,
para o bem do Estado e até do País
Eu como o herói nacional perdido em
um sonho solitário na velha torre de Paris
Veja, Paris não é uma festa, acorde, porra,
Quando é que você não se sentiu sozinho?
Estão tentando me matar

O meu erro não pode ser consertado facilmente
Seu erro foi mais caro, mas você nem mesmo sente

Vista um casaco e se proteja do frio
Vista uma máscara e se disfarce do mundo
Todos sorriem febrilmente e anseiam pela minha morte
Estão tentando me matar, mas isso não posso permitir
Meu destino pode não ser de muita sorte, porém insisto em sorrir
Contrario os inúteis obstinados em suas ignorâncias
Sou inconstante imperfeito e me emociono
com o clarão de um relâmpago que vejo pela janela
Ninguém sabe o que sinto e nem se importa
Ninguém sabe o que minto ou omito
nem as tantas tramas que meus ombros suportam
Odeio a responsabilidade e ainda assim
Enxergam-me como uma figura responsável
Profundo asco por quem me promoveu
no emprego que eu tanto odiava
Jurei que partiria, mas minhas pernas ficavam
Quando tentei voar, congelei com a mira da arma
Eu tinha razão o tempo inteiro:
Estão tentando me matar

Não sou recompensado devidamente por
Um estranho ganhou muita mais que eu e
Vomito minhas tramas falhas
Derramo lágrimas salgadas

Queria te dizer, meu bem,
que ainda vejo uma réstia da sua luz
Isso é o que me conduz,
mesmo que tenha me sentido mal
Você cai no chão e sinto que não consigo erguê-la,
Tudo bem, meu bem, é assim que funciona,
mas um dia seguiremos as estrelas

Olha, diretamente para a minha cegueira,
Diz-me que não vale a pena odiar essa cidade
já que de um jeito ou de outro ela foi sempre nossa

Confessa-me envergonhadamente no lusco-fusco
que errou muito e errou grave e me deixe furioso,
só para observar minha ira esvair com o vento

Peça meus desejos mais abjetos e os escute, refute,
Fita-me como um anjo mau e perdido que mesmo ferido
Ousou tentar fazer o bem, ainda que tanta gente quisesse
mesmo arrancar suas belas e longas asas
Não voa longe anjo ou pássaro cercado por pessoas rasas
De uma nuvem distante admiro milhares de casas

Não deixe que tudo acabe em brasas, veja,
Tua crise de asma é o abandono de Deus
Minha crise de mim é o autoabandono final,
mas me recupero por querer acreditar na tal da balança
Sou ridículo e nunca perco a esperança

Corro para resgatar todos os meus amigos,
mas meus gritos reverberaram pelo bairro na última madrugada
E ninguém aparece em meu socorro
Uma sombra para na porta do meu quarto
Avisa que é hoje que eu morro


Não, eu não posso aceitar
Esta festa toda sem gente e eu
Não escrevi crônicas suficientes
e nem falei do trapezista

Não, eu não posso aceitar,
É cedo, volte depois de amanhã
É cedo, volte em cinquenta anos, no mínimo,
Eu não posso aceitar este destino

Amei muito as histórias que nunca vivi
e amei muito menos que o suficiente os amores reais

Machuca muito quando vejo as pessoas
colocarem a venda nos próprios olhos
Ninguém se preocupa comigo
Ninguém se preocupa com nada
Estou me desfazendo aos poucos e voltando
Meus gritos se tornaram roucos e estou definhando
Estão tentando me matar e estão quase conseguindo

Para chegar ao céu é preciso ir ao inferno?
Ser simples é o que nos faz eternos?
Não, eternidades se despedaçam
Tudo se despedaça e sobreviver
é se matar todos os dias, sem morrer

Sinto uma ânsia de vômito de outras vidas
Ajoelho-me e rezo para um deus que me ignora
Só queria poder fazer com o meu tempo
exatamente o que eu quisesse fazer
Choro mais uma vez e antecipo o meu fim
Que tragédia é carregar os sonhos e responsabilidades
do mundo todo dentro de mim
Tudo isso anda tão pesado
Há alguém para dividir o fardo?
A vida era mais simples quando eu me decidia
rolando sempre um dado

Ei, se porventura eu me for, lembre de mim com amor
Como um pedaço antigo daquela tua memória de ternura
Desfaz-te das suas armaduras e me acredita

Te vejo chorar e também choro e a única cura
Encontro-a frágil em teu reconfortante abraço
Tudo bem, meu bem, compartilhamos o cansaço

Se conseguirem me matar,
você ainda pode me amar,
ainda que em outro tempo espaço

Inventado para outras coisas.

Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Olho lento e existo longe
Quando não tento
Encontro-me no horizonte
Paisagens sem encerramento
A personificação do cansaço
Um astronauta vaga à esmo
seguindo planetas como seus mesmos
Recriando seu tempo-espaço
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A maioria delas furiosamente delicadas
Aprendi muito novo o valor do nada
Há muito que se consegue com a ponta da espada
Há segredos ocultos no rabo da palavra
Astronomia do sonhador que sempre fui
A vida de escritórios que nunca amei
Tudo se dilui entre os mistérios que inventei
Livros tortos, quadros, sapos e corujas
Edredons, fantasmas, fadas e roupas sujas
Constelações ancestrais e carneiros
Minha coragem e tudo que é verdadeiro
Fui sempre sozinho por ousar ser inteiro
Sem me encaixar nas molduras
constantemente me julgam mais jovem
Não entreguei a minha alma ao retrato
jamais me atreveria ao destino de Dorian
A juventude e a beleza compartilham um fim
Ambas acabam diferente dos sonhos que existem em mim
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A dureza férrea e a secura do vinho
Meu jeito sério subitamente se abre em sorrisos
Sou aquele vago oceano no fim do caminho
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Danço no escuro do meu apartamento
Ao som de Lord Huron vão meus movimentos
Conto os carros que passam com dificuldade
É perigoso esquecer de ligar os faróis quando a noite cai
É corajoso permanecer quando o resto se vai
Sombras fúteis lavam louças
na metade da madrugada por bajulação
Venderam-se por coisa tão pouca
e se rastejam suplicando atenção
Fui inventado para outras coisas
Está claro para quem me olha
Fito nostálgico o sol do fim de tarde
Quando o crepúsculo me escapa
Sinto que algo no meu peito arde
Para não dizerem que não falei das coisas frágeis
e do tanto de verde que há na natureza
Para não dizerem que não lhes contei
que depois da Dor se encontra Beleza
Para não dizerem que eu não tinha flores
até no meu nome do meio
Para não dizerem que só pisava no freio
Amei tudo o que pude e o que não pude amar
Prometi me esquecer no futuro para me resguardar
da infantilidade inútil da vingança
Quando tudo se acaba sobrevive a esperança
Somos todos eternamente crianças
Considerações finais deste solilóquio
A solidão não me fere e preciso ser cauteloso
Já fui viciado na melancolia profunda
Olho devagar e vejo com calma
Por vezes antevejo até os desejos da alma
Só que tudo que sei sobre os outros
Quase nunca sei sobre mim
Não tenho opiniões e apenas instintos
Estou preso em meus próprios labirintos
Tentando encontrar alguma coisa que nem sei
Tentando me chamar pelo meu primeiro nome
Tentando enxergar insistentemente o rosto
que eu tinha antes da criação do Universo
Rabisco mais um verso e me desconcentro de tudo
Durmo tarde e devoro outros mundos
Estou aqui, mas estou por toda a parte
Está claro para quem realmente me olha
Fui inventado para outras coisas.