Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra. A culpa pode ser do TDAH, da memória, da inconstância, não importa. Não se realizar traz uma clareza sobrenatural sobre a vida. Nunca deixo de sentir que continuar é falhar, ainda assim, algo me impele, por reflexo ou também por distração, a seguir em frente. Quem dera os meus (nossos) mistérios fossem facilmente solucionáveis e a gente não precisasse aumentar o volume da cabeça para continuar processando a quantidade avassaladora de mudanças que ocorrem. Mudo de opiniões, porém me flagro em um esforço hercúleo para preservar minha essência. O que não contradiz o âmago, de um jeito ou de outro, resguarda-me. Há vezes, entretanto, que me pergunto a razão de me resguardar tanto, a razão de não me admitir desarrazoado e cometer loucuras, porque isso tudo flutua distraidamente na nossa cabeça e tudo se sucederá súbito e semelhante enquanto todos compartilharmos o mesmo fim. Despropósito pessoal e outra enxurrada de informações. Na vida a gente aceita migalhas de amor, mesmo sabendo que são migalhas. Queremos todas as lutas, mesmo quando é vazio o valor da batalha. Queremos desesperadamente vencer e sermos lembrados. Precisamos da ilusão de que seguiremos aqui, mesmo depois de mortos, ainda que em um vulto distante de lembrança, um detalhe passageiro na recordação de alguém. É difícil contemplar o reflexo no espelho e ver ninguém.
São Paulo é uma cidade ambivalente. A realidade crua choca e aterroriza. Pessoas deitadas e esquecidas, muitas delas dormindo, algumas outras pedindo insistentemente e ao mesmo tempo surgem artistas produzindo belas músicas e paisagens únicas e significações. Tudo está ali quase como se não estivesse. O Beco do Batman, agora Buraco de Minhoca, abriga secretamente aventura e prazer, mas me flagro andando solto, distraído e leio uma frase “você se orgulha de quem tanto tenta ser”. A frase me comove e na releitura percebo que esqueci a interrogação, mas tudo fica bem porque há perguntas que são certezas no meu coração. São Paulo é uma cidade feia e intrigante, eu digo com certeza que em quesito beleza não se compara com a minha Campo Grande. Que há nesta cidade antiga e suja que me atrai? Julgo ser a capacidade de tornar tudo indiferente. Existe uma obrigação tácita, algo nas entrelinhas, que te força a abrir mão da vaidade em um limite extremo. Há méis que são venenos. Será que eu abandonaria a minha sensibilidade tão constante acaso morasse em um lugar assim? A feiura não deve ser romantizada, entretanto, percebo-me deificando os especialistas na indiferença como se a abstração definisse quem sabe realmente viver a vida. Quem se aprofunda demais em tudo acaba afogado e foi assim, quase sem ar, vomitando água que parecia nunca terminar, que me desfiz da convicção de que se importar é sempre benéfico. Se olho para todos com a intenção de zelo, eu contenho meus impulsos que urgem por retribuição. Todo ato de amor deve ser genuíno, direto e sem intenções, mas posso eu controlar meu âmago, a minha sede de justiça? Vez ou outra me vituperaram por me assumir cru, incontível e incontido, escancarado. Quando zombam o meu sonho sacro de escrever livros, quando escarnecem dos contos ou crônicas, quando me provocam, eu retribuo com agressividade. Sinto que sou e sempre serei furiosamente delicado e essa indolência, essa indiferença paulistana é inatingível pra mim. Até mesmo os vendedores, que por antecipação supomos que agirão com delicadeza, destratam os clientes tranquilamente, como se a grosseria fosse motivo de celebração. Ah, São Paulo! Tão inigualável nas noites e tão ridícula nos modos! Ah, São Paulo! Tão triste, agitada e comovente… A cidade feia é repleta de magia. Chame do que quiser, mas aprendi que há algo de especial nesta feiura. Julgo que a personalidade da cidade é fria e dura.
Flagro-me pensativo sentado dentro do carro e observo o céu e as pichações. Muros, paredes, pontes, prédios, tudo alvo da arte de rua. Quem é que sobe tão alto para desenhar um símbolo que pouquíssimos saberão o significado? Não, claro, eu deveria saber melhor. Quem sobe alto sobe por conta própria e por si. É sobre fazer o que deve ser feito, ainda que os outros não entendam. Julgo que os grafiteiros e os pichadores e os artistas ajam todos por instinto, pois só o que é feito por instinto representa realmente arte autêntica. Sofrer é pensar, assim, para a criação de coisas frágeis é preciso se entregar de corpo e alma ao trabalho. Se mudará vidas ou não, isso não pode interessar, mas quando algo belo e legítimo cruzar a minha mente, que meus dedos desnudem minhas verdades e me narrem por inteiro. Talvez por qualquer distração minha, eu nunca me cumpra, mas isso não interessa. Quando não puderes mais permanecer neste mundo, erguerei a cabeça, recobrarei o ar e seguirei caminhando. A jornada não acaba enquanto eu puder continuar sonhando. Talvez eu nunca me cumpra e isso não faz diferença. Não há fatalidades e a liberdade é a minha única sentença.