Diga aos que acharem o meu corpo
Duro, inflexível e pálido
Tentei até o último instante
Diga que certas vezes me apavorei
Até errei o meu caminho
Algumas vezes iludido pensei
que faria tudo melhor sozinho
Diga aos médicos legistas
que fui um homem de poucos medos
Peça para que sejam detalhistas
e cuidadosos com meus segredos
Diga que nunca consegui me recompor
E que nunca mais pude ser quem fui
A sombra de uma versão melhor
certas vezes ainda me possui
Diga aos que acharem o meu corpo
que não permaneçam em luto por mim
Se estou estirado e morto
é porque tinha que acabar assim
Diga aos que acharem o meu corpo
que eu sempre maldisse os descuidados
Que notava a vituperação provinda do porco
ainda que ele jurasse ser meu aliado
Diga que eu vi a argêntea adaga
antes de ser tingida por meu sangue rubro
O golpe traiçoeiro de uma amiga espada
nunca pode ser parado por um escudo
Diga que eu sofri pela latência da dor,
E admita que não gemi por sequer um momento
Narre que humilhado despenquei de joelhos
no vazio imenso do silêncio violento
Diga que parti com certa humanidade
Carregando sentimentos estranhos
Confesse que deixei esta vida com dignidade
Sustentada por meu férreo olhar castanho
Peça para que não lamentem
nossas tantas manhãs e tardes de café
Diga para apostarem no que sentem
E que tenham sempre aquela velha fé
Diga para acreditarem nas próprias forças
como eu um dia acreditei
Diga que minha alma flutua por eternidades
Ensombrando a existência de quem ainda existe
Diga que aparecerei na velha cidade
quando o coração ecoar demasiado triste
Diga que eu fui para nunca mais voltar
Fantasma errante e viajante sempre fora de lugar
Diga aos que acharem o meu corpo
Que ele já não é mais meu
Que tudo que um dia tive
Jamais me pertenceu
Diga aos que acharem meu corpo
para que queimem meus restos
ou me arremessem em uma vala
Peça que desliguem todos os dias
a televisão que fica na sala
Diga para os que jazem funestos
que nenhum morto fala
Diga que foi por um triz
Mas que fui muito feliz
Antes de abraçar o Nada
Diga aos que acharem o meu corpo
Duro, inflexível e pálido
Tentei até o último instante
Ser melhor do que antes
Não foi o bastante
Esforços inúteis,
ainda que válidos
Diga para que sigam em frente
Que eu apenas fui primeiro
Sigam como se nada tivesse acontecido
Depois da morte há outro continente
Não há razão para o desespero
E eu reverei todos os meus amigos
Diga aos que acharem o meu corpo
não há nada que devam dizer
Neste mundo imprevisível e louco
só lhes resta continuar a viver.