Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Olho lento e existo longe
Quando não tento
Encontro-me no horizonte
Paisagens sem encerramento
A personificação do cansaço
Um astronauta vaga à esmo
seguindo planetas como seus mesmos
Recriando seu tempo-espaço
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A maioria delas furiosamente delicadas
Aprendi muito novo o valor do nada
Há muito que se consegue com a ponta da espada
Há segredos ocultos no rabo da palavra
Astronomia do sonhador que sempre fui
A vida de escritórios que nunca amei
Tudo se dilui entre os mistérios que inventei
Livros tortos, quadros, sapos e corujas
Edredons, fantasmas, fadas e roupas sujas
Constelações ancestrais e carneiros
Minha coragem e tudo que é verdadeiro
Fui sempre sozinho por ousar ser inteiro
Sem me encaixar nas molduras
constantemente me julgam mais jovem
Não entreguei a minha alma ao retrato
jamais me atreveria ao destino de Dorian
A juventude e a beleza compartilham um fim
Ambas acabam diferente dos sonhos que existem em mim
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A dureza férrea e a secura do vinho
Meu jeito sério subitamente se abre em sorrisos
Sou aquele vago oceano no fim do caminho
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Danço no escuro do meu apartamento
Ao som de Lord Huron vão meus movimentos
Conto os carros que passam com dificuldade
É perigoso esquecer de ligar os faróis quando a noite cai
É corajoso permanecer quando o resto se vai
Sombras fúteis lavam louças
na metade da madrugada por bajulação
Venderam-se por coisa tão pouca
e se rastejam suplicando atenção
Fui inventado para outras coisas
Está claro para quem me olha
Fito nostálgico o sol do fim de tarde
Quando o crepúsculo me escapa
Sinto que algo no meu peito arde
Para não dizerem que não falei das coisas frágeis
e do tanto de verde que há na natureza
Para não dizerem que não lhes contei
que depois da Dor se encontra Beleza
Para não dizerem que eu não tinha flores
até no meu nome do meio
Para não dizerem que só pisava no freio
Amei tudo o que pude e o que não pude amar
Prometi me esquecer no futuro para me resguardar
da infantilidade inútil da vingança
Quando tudo se acaba sobrevive a esperança
Somos todos eternamente crianças
Considerações finais deste solilóquio
A solidão não me fere e preciso ser cauteloso
Já fui viciado na melancolia profunda
Olho devagar e vejo com calma
Por vezes antevejo até os desejos da alma
Só que tudo que sei sobre os outros
Quase nunca sei sobre mim
Não tenho opiniões e apenas instintos
Estou preso em meus próprios labirintos
Tentando encontrar alguma coisa que nem sei
Tentando me chamar pelo meu primeiro nome
Tentando enxergar insistentemente o rosto
que eu tinha antes da criação do Universo
Rabisco mais um verso e me desconcentro de tudo
Durmo tarde e devoro outros mundos
Estou aqui, mas estou por toda a parte
Está claro para quem realmente me olha
Fui inventado para outras coisas.
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Menino doce.
CRÔNICA DE DOMINGO.
Destas tantas coisas que a gente pensa em um domingo. Destes tantos olhares, ingênuos e enviesados, dos cenhos franzidos desde a infância até os caprichos excessivos. Franzo igualmente o cenho, mesmo adulto, não muito diferente do meu sobrinho que ergue suas sobrancelhas em reprovação. Muito mais espalhafatoso do que ele, persisto de cenho franzido e mostro a dureza através do meu olhar, tudo isso como o disfarce para o menino doce que eu era quando tinha a idade dele e que ainda sou, confesso envergonhadamente. Hoje conjecturo ideias extravagantes e penso que a doçura dos meus gestos deva se fazer cada vez mais secreta. Quantas intenções cabem nos instantes mais ligeiros, nos passos mais lépidos e em como ajo em relação a tudo? Sinto-me como se fosse condenado a nunca ser por inteiro, por só se oferecerem metades a mim.
Penso todas as minhas dores e traumas e medos e as visualizo ao longe. Desfilo em seguida pela avenida dos meus machucados e cicatrizes e vejo a minha alma inquieta e voraz em uma ansiedade crescente por se cumprir em definitivo, mesmo antevendo que não há nada que seja definitivo no âmago. Nada sacia a alma. Na passarela dos meus maiores vexames versões distintas de quem já fui me aplaudem e me apedrejam e sigo avançando sem titubear enquanto piso nas poças formadas pelo sangue que derramei. Não consigo agradar nem a mim. Como poderia sonhar em agradar os outros? Se nem meus desejos simplórios se cumprem, como posso sonhar em cumprir o que é alheio?
Tudo é absurdo e aguentamos esses tantos absurdos com uma tolerância insistente, como quem suporta os abraços ou os monólogos melífluos de um bêbado irritante. Há verdades convenientes demais para que eu não desconfie delas e se tudo converge para uma direção, eu tenho o hábito terrível de observar todas as outras. Não concordo com os outros e geralmente discordo mais veementemente das minhas próprias opiniões. Não é verdade que eu seja senhor de mim só por gastar metade do meu dinheiro em contas ou por morar sozinho ou por respeitar meus limites ou por antever que deveria me expandir na busca por solucionar a angústia do meu ser. Não, não me admito frio, embora tenha congelado nos últimos meses diante de revezes que pareciam irreversíveis e de notícias avassaladoras que me deitaram ao chão e expandiram o buraco fundo que há no meu peito há décadas, sim, desde muito antes de entender o que era o Vazio Escuro, eu o sentia, como se fosse um fantasma de Morte preso perpetuamente em minha Vida. Merecemos nossas sentenças? Tenho a consciência perfeita de que as grandes lições que aprendi ao observar as coisas frágeis aos meus sete anos de idade são das mais importantes que presenciei até hoje. Compreender a paciência com que a aranha tece a teia e como um pássaro sobrevoa o mesmo pedaço do céu por longos minutos enquanto calcula se consegue mergulhar para se alimentar, tudo isso é breve, calmo e raro. Respiro como se cada respiração pudesse representar um pequeno pedaço do paraíso, ainda que eu desacredite de todas as religiões, mesmo não sendo ateu ou asceta. O paraíso são os outros. O inferno também. Quem não se conhece minimamente não pode reclamar se eventualmente se reconhecer como refém de alguém. Quase toda pessoa que identifica nossas fraquezas, utiliza-se delas. Quantas vezes no desespero fecharam suas portas e você teve que escapar pelas janelas? Apenas para sobreviver…
Fecho os olhos na tentativa de buscar uma noite imperturbável de sono, mas sonho sem parar e a maioria dos sonhos traz maus agouros e me pergunto o que tanto faço para me conduzir por estradas metafísicas das quais tenho tanto medo. Talvez no fundo eu seja corajoso em segredo. Talvez eu mereça essa enormidade de pesadelos. Todas as traições que sofro em cenários metafísicos, todas as vezes que fui assassinado, todas as ocasiões que me cuspiram e me colocaram de joelhos, tudo o que eu merecia e nunca tive, tudo o que os outros nunca mereceram e tiveram, todas essas incoerências que me fazem duvidar se. Sinto que o Universo é muito grande e algum dia alguém haverá de me explicar as razões das emoções, pois emoções puras são sempre desarrazoadas e toda essa displicência silenciosa e a falsa amizade nos rompimentos súbitos de amores e amizades, apenas por praticidade nos afogam, forçando-nos a engolir litros e mais litros de uma amálgama de inúmeras mágoas.
Sinto vontade de se me insistir, sem ter a convicção de que eu mesmo valho a pena. Tento sorrir, mesmo nos dias que não crio novas ficções ou poemas e tudo me dói, como um peso no peito, como qualquer grampeador que é repousado em cima de uma folha de papel apenas para evitar que ela não voe e assim permaneço sem voar, por um detalhe que me foi imposto. Será que as primeiras árvores sonharam em voar? Creio que sim, se perscrutavam os caminhos inconstantes das folhas ao vento. Será que imaginaram que poderiam ser algo tão diferente do que aquilo que eram por natureza? Penso nas contrapartes de tudo e em como isso tudo pode ser belo e perigoso. O poder aliado com a estupidez é fatal. Verifica-se aqui o potencial para estupidificar a população e criar uma massa de pessoas não pensantes e há quem já pense que há diversos pensamentos que sejam proibidos. Nada é proibido em nossas mentes. É preciso ser sensível se quiser ver o que ninguém ousa ver, mas muita sensibilidade machuca e por vezes me pego sem ar por enxergar um mundo excessivamente sombrio e talvez me doa admitir que as coisas sejam exatamente assim. Por isso, acredito que nos piores dias, é preciso sobreviver com muita destreza. Só vencemos quando enxergamos que após a Dor há um tanto imensurável de Beleza e assim, sem facilidades, começamos a ver uma realidade que talvez se equipare com a ficção. Talvez nos dias de trevas, eu possa crer na luz do meu coração, entretanto, confesso-me vil com um instinto que nunca se cumpriu: há vezes em que queria me vingar do mundo e ser vilão. Se um dia acordasse mau, fatal e me guiasse apenas por um instinto louco de destruição. Será que na ira eu encontraria alguma comoção?
Tudo é vago e quase estúpido. Um estranho invade o meu espaço em um bar e me ofende e há tantas pessoas que posteriormente irão defender a atitude dele. Nenhuma resposta justifica as defesas. A síndrome do advogado, todos correndo para uma ocasião para tentar fazer parte de algo qual não fazem parte. Querem a justiça, sem se exporem diante do desconforto, como quem quer um prêmio, sem lutar por merecê-lo. Queremos os espólios, mas não queremos erguer a espada, nem mesmo para defender as pessoas que tanto nos defenderam outrora. Somos impecavelmente injustos e incoerentes e essas tantas inconstâncias se impregnam em nossas atitudes mais constantes e tentamos ser suavemente melhores, como quem entende que o mundo já viu o suficiente de dor e como quem percebe, sem epifanias, que um abraço longo e um pedido de desculpas rápido pode significar tanto quanto não parece. Vez ou outra o perdão chega tardio, sem evitar a confusão, entretanto, clareando o caminho para dias mais bonitos. Palavras ditas sem floreios, um gesto sincero, são coisas quais eu teimosamente ainda acredito.
Assim, vejo-os o tempo inteiro e muitas vezes quando me atiram, busco não sair do caminho da bala. A minha vida foi sempre no limite e eu me sinto próximo ao fio da navalha, mas sobrevivo a mais uma batalha e me reergo enérgico, com o meu coração doente, mas ainda pulsante, com a certeza de que nada de bom do que eu faço garante algo bom a seguir, ainda assim, este é o meu único jeito de agir. Ergo a minha cabeça e meus olhos encontram o sol e posteriormente uma profusão insana de cores. Talvez eu deva acreditar nos amanhãs, mesmo com a morte de tantos amores. Talvez abandone o resto da minha parte sã e ostente orgulhoso minhas tantas dores. Quando olho para o sofrimento contínuo, parece-me que não há Deus, pois se Deus houvesse haveria de ter nos resgatado muito antes. Não é possível que sofrer seja uma constante. Já busquei refúgio no sono para fugir da realidade que me feriu. Por vezes sinto que tento sentir um mundo que nunca me sentiu. Por aí espalham que é curto o meu pavio e que eu aprecio estar dentro de uma confusão. Ouço uma estúpida em sua interminável provocação. Há meses que estou no Inverno. Nunca mais haverá verão? Caminho, não pelas vielas de Campo Grande, mas pelos campos grandes da minha alma. Pavimentei minhas trilhas e construí os degraus da escada que ainda estou subindo vagarosamente. Grito em voz alta os meus maiores vexames e sinto uma raiva fervorosa. Talvez esta crônica seja uma tentativa de. Nada.
Bem, entre tantas verdades, pode ser que existam mentiras e, vez ou outras, não há problemas, desde que as mentiras que criamos através dos contos e ficções e histórias, possam se estender e alcançar uma compreensão ainda maior da realidade. Há verdades que cessam verdades e essas verdades não interessam. Se é preciso acreditar em divindades, que acreditem. Se é preciso louvar os erros para eivar os acertos, que louvem. Se é preciso falharem para que aprendam a amar, que falhem, mas que quando a autocomiseração acabar, por favor, que amem. Os pesadelos, os monstros, os inimigos, os fantasmas, tudo isso existe e as nossas ficções não os tornam mais ou menos reais, porém somos os heróis e heroínas de nossas próprias jornadas e mesmo em cenários imaginários ou sonhados, notamos uma necessidade de triunfarmos. Quero nunca mais morrer em sonhos, mesmo aceitando que um dia vou morrer na vida real, ainda não sabendo distinguir a diferença crassa entre uma realidade e outra. O sono do dia seguinte nos levará para outras realidades e me pergunto se me deixarão ter a mesma substância que faz de mim quem eu penso que sou. Se algum dia me concederão o privilégio de.
Quando olho para o abismo, sinto que o abismo me olha de volta e o desespero que se infunde nos outros é algo que me conforta. Posso olhar para o precipício por anos sem nenhuma tentação em saltar para dentro. Quero outras coisas que. Preciso de outras coisas que. Significar a vida é solucionar o mistério das inutilidades?
Escrevo-me, como se pudesse me resumir, como se pudesse me curar das antigas doenças da alma. Sinto que trago isso de outras vidas. Sinto que não há memórias boas ou más esquecidas. Tudo que foi é uma lembrança vaga em algum campo interno e extrassensorial. Toda a tristeza se apaga diante da farta mesa na véspera do Natal.
Há dias em que eu só queria me sentir especial. Há dias que.
Exagero no café, na água, no tempo em que passo no escritório. Exagero na quantidade de vezes que vomito, na quantidade de vezes que insisto, na qualidade das vezes que.
Torço para que o Palmeiras vença para que a semana seja melhor.
Torço para que não chova e para que eu jogue vôlei e derrame um pouquinho de suor.
Rezo para que não me quebrem outras vezes. Tenho bancado o forte, mas na verdade tenho sorte. Pessoas se despedaçam tão facilmente e é tão difícil reconstruir, praticar a remontagem e eu sou péssimo em quebra-cabeças e.
Abro a porta para a escuridão e sinto a dor doer. Preciso abraçar minhas partes malignas e amá-las, mas não amo. Se dissesse que já as aceito estaria me afundando em autoengano.
Só os ébrios de espírito despertam na madrugada para lavar a louça alheia ou tirar o lixo do vizinho. Os réprobos, como eu, revolvem para dentro de si mesmos e permanecem sozinhos.
Brindo uma cerveja preta com meus dois gatos e meu cachorro me observando, às 2h35, enquanto escuto Lord Huron. Bailo com os fantasmas e sei que.
Deus nos abandonou e todo o meu futuro depende do que eu fizer. Gargalho por me sentir desesperado e enclausurado, cônscio das minhas capacidades, ensombrado por uma melancolia profunda que me persegue desde o primeiro choro no hospital.
Minha mãe dizia e ainda diz ao mundo que eu sou especial e eu.
Escrevo livros querendo acreditar que um dia conseguirei publicá-los, mas em verdade, em segredo, eu me omito. Bem no fundo acredito que meus sonhos são distantes e que eu nunca vou cumpri-los.
Ainda assim me escrevo, como se essa fosse a última confissão de que eu.
E de que eu.
E ainda de que.
“O mundo é para quem nasce para conquistá-lo e não para quem sonha que pode fazê-lo, ainda que tenha razão”. Rio de Pessoa e depois de minha pessoa e uma sombra fútil e petulante me chacoalha e grita comigo:
– Não se ria!
Dou de ombros, entre tantos escombros e respondo aos sussurros.
– Um dia.
Quem sabe uma criança correndo pela rua ensolarada me faça acreditar que.
Quem sabe os filhos que nunca tive estejam clamando pelos contos que escrevi ou pelos que ainda escreverei e.
Quem sabe se tudo que ainda não sei signifique que todo mundo nasce para ser rei e essa visão axadrezada da vida tenha me feito peão de meus próprios sonhos e qualquer instinto de rebeldia seja ainda bem-vindo.
Quem sabe tudo faça sentido, mas não neste mês de agosto e muito menos neste domingo. Os meus demônios não foram vencidos, mas neste fim de dia me pego com fome e sorrindo.
Nos restaurantes que ainda não conheci na Ásia.
Nas pontes que ainda não cruzei na Europa.
Nas línguas que ainda nunca falei antes.
Nos castelos em que nunca fui príncipe ou rei.
O copo de água meio cheio também está meio vazio e eu, meio vazio, certamente estou meio cheio.
Nos bosques selvagens.
Na sutileza felina ou na lealdade dos cães.
Na casa solitária como o meu coração no meio de uma ilha perdida.
No meu carro preto ou branco que percorre estradas e engole o sol.
Em tudo o que há em mim parecido com o inconstante mago Howl.
Pensando e sentindo, afinal, percebo-me normal, nada especial, mas sei que ontem, hoje ou amanhã, fosse como fosse…
Serei sempre aquele menino doce.
Depois não tenho certezas.
Acordo antes e respiro
A mulher que amo
dorme ao meu lado e sorrio
Sempre fui gentil com as pessoas
Com as que odeio e com as que não gosto
e mais ainda com as que amo
Observo-a e me basto
Amar é olhar com cuidado e
Cuidar dos outros sempre foi
a única coisa que soube fazer desde cedo
Frequentemente alguém me dizia
Perto de ti não ouso sentir medo
Por vezes fui fatalista, mas vivi
tentando fazer a diferença
Creio que a felicidade destes dias
seja apenas consequência
Observo-a a dormir e sorrio
Este retrato no coração me acalma
Até quando ainda não a conhecia
sinto que a imagem já me acalmava
Toda esta leveza e poesia esteve
desde antes fixado em minha alma
O pé esquerdo dói e manco
Pisei em algo pontudo
Ainda assim, nesta manhã canto,
Porque a alegria traduz meu conteúdo
E me basto com a alegria de hoje
ainda que saiba que todas as horas seguintes
Trazem surpresas
Sou feliz e completo agora
Sobre depois não tenho certezas
Levanto e faço o café
A mulher que amo continua dormindo
O cachorro que amo continua dormindo
A gata que amo continua dormindo
O gato que amo me seguiu até o escritório
Apenas para dormir mais perto de mim
Sou feliz e completo agora
Absorvo da vida toda a sutileza
Sou feliz e completo agora
Sobre depois não tenho certezas.
Artista.
As coisas começam e acabam
Nunca duvide do que encontra
no rabo da palavra
Solidão e borboleta amarela
Anteontem extraiu do coração
Uma autodestruição das mais belas
Pintou uma obra de arte
A tinta seu próprio sangue
Por não se duvidar artista
Teve uma severa hemorragia e morreu
A perícia encontrou sangue e lágrimas no piso
Junto com um bilhete e um último aviso:
Digam que ele nunca se arrependeu
Einmal ist keinmal.
Receita.
Prepare
Oito ovos mexidos
Saboreie um pedaço
de chocolate amargo
Beba três goles de suco de limão
aquele mais caro do mercado
Agora é só apreciar meio litro de café
para se manter em pé durante o dia
Se for domingo ou feriado
Finalize aquele livro do Dostoievski
Junte o que há no seu porão
Rascunhe uma crônica ou poesia
Se não for domingo e nem feriado
Vá para o trabalho e cuide bem
de todos aqueles números
Até os trabalhos mínimos importam
Evite pisar nos insetos e matar os besouros
Até as vidas menores importam
Ouse se conhecer e olhe para si e para dentro
Prepare uma mochila com um lanche caseiro
Dirija até o Shopping China e compre
Meia dúzia de coisas que você não precisa
Lembre-se também de levar chocolate amargo
O suco de limão caro compensa mais no mercado
Vagueie pela cidade nas noites e sente sozinho em um bar
Não saia correndo se uma estranha se sentar contigo
Ela precisou de coragem para ir até você
Agora você precisa de coragem para ficar
Portanto, sorria, mesmo que ela não seja tão legal assim
Ainda que você saiba que prefere ir para casa sozinho hoje
Se quer coisas novas na sua vida, deve permitir que elas entrem
Se o seu velho mundo está balançado
Entre discretamente em um novo e recomece
Nenhuma maldade ou bondade perdura para sempre
Passeie pela cidade aos domingos de manhã
Contemple o que há de natureza e o que há de natural
Esteja atento aos que se atrevem a te criticar e te elogiar
Há críticas justas e elogios insinceros, portanto, abra os olhos
É perigoso acreditar em tudo o que dizem sobre você
Essa paisagem com gosto e cheiro de paraíso
Muitas vezes é uma armadilha
Pode sair dela completamente afetado
Volte para a casa
A solidão te ensinou muitas coisas
mas é hora de adotar um gato
Sozinho não irei conseguir
Sozinho amadureci bastante,
Entretanto, não venci o mundo
Agora como mais um pedaço de chocolate
Peço um lanche completo na hamburgueria
com adicional de ovos
Bebo o suco de limão (aquele mais caro)
Assisto um seriado promissor ou um anime novo
Hoje o meu time de futebol não joga
Se for sábado, cuidado, há noites de duzentas horas
Sento e escrevo no papel
Vou até o escritório
Sento e escrevo no computador
Malho por duas horas e nem é início de madrugada
Sinto um tesão absurdo, porém não desejo ver ninguém
Bato uma punheta e ainda nem é madrugada
Meus pensamentos não se esclarecem e continuo acordado
Meus pensamentos não me esclarecem e continuo acordado
Escrevo mais um texto triste sobre amores
como histórias de fantasmas
Só alguns viram, mas todo mundo fala sobre
Do terceiro andar olho pela sacada larga
e vejo a rua deserta e a fábrica de tratores
Ligo o ar-condicionado do escritório
Ligo o ar-condicionado do quarto
Ligo Lord Huron na televisão grande
e danço desajeitadamente
Quando voltar para a minha cidade
Serei o peixe valorizado no mercado
Isso não interessa
Quando voltar para a minha cidade
Receberei o calor dos meus amigos e minha família
E choro de madrugada
Hoje é sábado (ou sexta)
E de amanhã não passa
Vou adotar um gato e escrever um conto
sobre um amor que foi e não é mais
E vou rezar, embora não acredite em Deus
Eu acredito mesmo é no suco de limão mais caro
e naquele pedaço mágico de chocolate amargo
Vou até a minha geladeira e repito a receita,
Embora tenha comido lanche horas antes
Preparo
Oito ovos mexidos
Saboreio dois pedaços
de chocolate amargo
Bebo três goles de suco de limão
aquele mais caro do mercado
Já sinto o cheiro do café
e vou beber um litro inteiro
Esta noite vou tirar de mim
Tudo o que é falso
E vou encarar o meu eu verdadeiro
Não é bem que os ovos e o chocolate e o limão
tornem-me imensamente satisfeito, entretanto,
Esses alimentos me situam e me basto no entendimento
Neste momento a vida precisa ser desse jeito.
Carneiro.
Carneiro verde
no piso do apartamento
Carneiros espalhados pela casa
Ímãs de geladeira, estantes, enfeites
Uísque ou cerveja quente
Carneiro no signo
Fogo
Nos teus olhos me queimou
e porque não merecia aquele
Fogo
Ousei me tornar
Fantasma
Desapareceria eternamente
ou destruiria o Universo
Sou vasto para meios termos
Minhas lacunas se colorem
num processo automático
Sinto-me máquina
Olhos umedecidos
Máquina nunca
Vinho apenas seco
A ponta da língua espada
Engoli uma estrela cadente
na última madrugada
Cuspo na terra
para espantar o azar
Lutaria sozinho uma guerra
se o único espólio fosse te amar
Uma lâmina fria corta minha pele
Meu sangue pinga vermelho escuro
Era você com o punhal nas mãos
para a minha surpresa
Pelo menos não sorria
e pude morrer aliviado
Ouça
Se minhas ruínas outra vez se tornarem belas
Se outra vez meu sentimento for puro
Se os sapos aprenderem a canção dos pássaros
Se eu me perder no escuro
Grita meu nome
Ignora o teu medo
Fogo ilumina também
Fogo não é feito só para queimar
Carneiro verde vago
Fogo, fogueira, fogaréu
Ocultismos e profundidades
Você pode preferir carneiros
eu amo olhar para as corujas
Cuidado com o que quebra
Mais cuidado com o que suja
O aviso alertava sobre a fragilidade
Você detestava ler os avisos
Nem toda mancha sai com a lavagem
há coisas que deixam marcas definitivas
Ainda que sempre possa se livrar delas
se quiser alimentar o fogo
Agora olha para as estrelas e para o mar
Agora olha para meus olhos castanhos
e meu coração cadente feito de fogo
Quando não aguentar de fome
Grita só mais uma vez meu nome
Antecipo que não irei te atender
Ando esquecendo de tantas coisas
um dia me esquecerei de você?
Ainda assim me chama, inflama
Fogo
Acha-me
se porventura eu me perder
Lembra de mim,
se um dia eu me esquecer,
Coloca-me no teu ímã de geladeira
como uma memória antiga do primeiro tempo
em que sorríamos juntos
Mesmo que você permaneça
Mesmo que amanhã cedo talvez
Você me faça rir outra vez.
Retrato da Infância.
O retrato de minha infância feliz
está colocado na mesa de cabeceira da minha memória
Quando se cresce há tantos empecilhos para ser feliz
Há tanto que se pesa antes de chamarmos algo de felicidade
que todos os que tiveram uma infância boa como a minha
revolvem em si mesmos, como máquinas do tempo,
pela nostalgia de uma época em que era fácil aproveitar a vida
O quadro que vejo, do passado colorido e dolorido,
está emoldurado na primeira parede do meu coração
Mesmo quando eu optava pela solidão
Era pequeno, como as crianças costumam ser
e me orgulhava das minhas banalidades,
como as crianças costumam se orgulhar
Nunca imaginava àqueles tempos que eu cresceria
e me tornaria uma pessoa tão difícil e alta
Antes, infante, observava todos os bichos
sem imaginar que um dia haveria em mim tanta falta
Envelhecer é silencioso
Raramente, percebemo-nos envelhecer
é que meu coração ainda carrega as mesmas coisas que eu tinha
naquele momento distante em que eu acabara de nascer
Exceto pelas ausências que aprendi a acumular
E o vazio escuro, inseguro, que tenta me sugar
Já íntimo, nomeei-o como Vide Noir
Outro gênio já diria
Viver é perigoso
e só aproveitamos a vida sem medo
Quantos de nós não temos vergonha
de nossos pequenos segredos
mesmo após eles serem revelados?
As manchas deveriam ensinar para o futuro
e não afetar o presente que logo será passado
Tenho todas as idades porque a idade é uma mentira
A única verdade é que cada um tem uma cronologia
Sofremos, ainda que esteja claro para ver
Tudo o que nasce deve um dia morrer
Anteontem vendi minhas duas coleções de DVD
porque precisava de dinheiro para comprar roupas novas
Comprei um carro, mesmo que dirigir não me apraza,
porque preciso da facilidade da locomoção para ser prático
Preciso ser prático para evitar ser infeliz
É assim que as coisas funcionam e o mundo funciona
e há tantos cuidados que devemos tomar para não sermos engolidos
Aquele velho amigo inimigo se aproxima e o ouço sussurrar
Vide, vide, vide noir
Despenco no precipício de mim e no mais fundo
do meu ser enxergo novos horizontes
Por vezes tudo soa vago, mas vou existir longe
Volto aos tempos em que corria pelos parquinhos
Tinha medo de me machucar e chorava com facilidade
Deitava na pedra do quintal e seguia os insetos, sem machucá-los
Depois inventava um império robótico capaz de coexistir com eles
Os humanos não tinham humanidade o suficiente
para poupar vidas pequenas
E algo me dizia que toda vida valia a pena
Sentia um tosco orgulho em ser excelente nos videogames
Eu era feito de brilho e barulho, mas permanecia discreto e silente
Tudo em mim era muito e com frequência divagava
mesmo muito novo sentia que algo sempre faltava
E era seguido de perto por meus irmãos e meus amigos
Estava sempre acompanhado, até quando corria para o perigo
E cresci bem, intranquilo e forte
Ano a ano melhorei a minha saúde e a minha sorte
Espero conseguir cumprir meus sonhos antes da morte
A puerilidade que ainda carrego hoje reflete
a criança livre que tentei ser ontem
Tentar geralmente basta
E a gente sempre se gasta
tentando fazer mais do que pode
exagerando numa ilusão de necessidades
Acumulando uma lista imensa de vaidades
Desfilando nossa arrogância por toda a cidade
E aquela ingenuidade distraída que tínhamos
Aquela pureza do passado
Isso quase me deixou nestes dias
Envergonhado
Até que percebi que sou o mesmo
Andando a esmo
Cumprindo todas as minhas promessas
Tento me lembrar que não é preciso ter tanta pressa
E se no passado fiz apenas o que pude
A explicação é de que não poderia antes ir além
Um dia tudo passa, relaxa,
a gente vai ficar bem
Mude quando estiver preparado
e nunca se esqueça
Importa menos o ritmo
Importa mais o rumo
Há tantos novos algoritmos que entre eles
Sumo
Reapareço quase compreendendo
qual é o meu lugar
Não tenho a forma de uma estrela,
mas vivo sempre a brilhar
Assim, nunca mais ousei ser imbecil
e me envergonhar de quem eu sou
Até minhas partes mais erradas vibram por amor
Os anos perdidos estão emoldurados
na segunda parede do meu coração
Quando o futuro se tornar passado
Vou colocar alguns móveis de lado
e arrumar a decoração.
Talentoso.
A estética de não precisar da estética me agrada e simultaneamente me sinto livre e aprisionado. Estar na distância curta da janela, das portas e saber que só posso sair quando puder sair, quando houver concluído minhas obrigações, isso me pesa o peito e me interrompe os sentidos. Não, na realidade, ainda que eu termine minhas obrigações, ainda que eu finde todos os compromissos pendentes em nome da empresa, eu só poderei sair quando o relógio superar às 17h00. Mal dou conta de respirar direito e sinto inveja do advogado que fuma no estacionamento para aliviar o estresse. Já não sei como não viver estressado. As empresas, sejam privadas, sejam públicas, zelam apenas por si mesmas e nós com nossas individualidades e necessidades básicas somos alvos de um descaso longilíneo e atemporal. Até as companhias e corporações mais cuidadosas secretamente não dão a mínima aos seus funcionários e olho pelas tantas janelas escuras sonhando com o vento gélido nos cabelos e com a ansiedade marcante de quem está prestes a embarcar em uma jornada.
Que será que sonham os caminhoneiros? Creio que seja mais fácil perguntar do que tentar os antecipar, entretanto, forço-me numa especulação presunçosa de me imaginar capaz de prever os sonhos alheios, ainda que saiba que este gesto mísero do meu esforço é insignificante. Ainda assim sonho que sonho seus sonhos como quem sabe que é preciso continuar sonhando a todo o momento, ainda que o estado soporífero invada o dia num horário péssimo. Tudo o que requer esforço se distancia das verdadeiras urgências do espírito e choro por me desagradar. A alma é uma criança mimada que se satisfaz apenas momentaneamente para logo em seguida querer uma nova travessura. Se nos olharmos profundamente, só veremos o fundo. O corpo possui inúmeras limitações, entretanto, o cérebro é irrefreável e a cabeça sempre pode aumentar de volume e comportar ideias novas. A alma é indefinível e indecifrável, porém, por vezes julgo que sei como lançar migalhas a mim e meu espírito diminui a urgência de consumir o mundo quando a minha fome é disfarçada. O hedonismo é funcional por algum tempo, mas não há desconto nos prazeres que nos faça evitar o Vide Noir por mais do que alguns anos. Nasci com uma estrela no lugar do coração e meus batimentos cardíacos são sincronizados com as constelações. Se tudo se apagar, certamente eu apagarei também. Quando este mundo cansar de me entediar, eu seguirei adiante para as novas galáxias, para as novas existências, para os campos mais verdes e flocos de neves mais brancos. Quando eu me cansar da vida e a vida se cansar de mim, partiremos por caminhos distintos, até nos reencontrarmos. Pergunto-me se a travessia é solitária ou se quem me ama ousará seguir comigo.
Interlúdio em mim após um suspiro alto. Atrás do vidro esverdeado eu me sento de frente para esta tela e do outro lado os caminhões passam e invejo os caminhoneiros, por controlarem máquinas, enquanto eu só sou auxiliado pela tecnologia a escrever mais um de meus textos banais e ridículos. Minhas rotinas são simplórias e de nada me adianta me antever gênio ou estúpido, porque ainda que gênio ou estúpido, não sou capaz de fugir da necessidade básica de frequentar os escritórios e viver essa rotina abençoadamente maldita. Se fosse estúpido o bastante talvez já fosse rico o bastante e se fosse realmente gênio, talvez encontrasse um modo de sobreviver sem me alimentar ou ir ao banheiro. Sinto pela primeira vez na vida a inveja e ela é quente, como meus dedos costumam ser, mas não me ataca, como meus dedos se habituaram a atacar. Percebo, sem choque, mas com certo desconforto, que ainda sou humano. Por vezes só queria que minhas mãos sentissem o volante e não que os meus dedos sentissem as teclas. Por vezes me sonho em estradas infinitas, como na rodovia de meus pesadelos e paraísos, a temível e majestosa BR-163. Quiçá ame a estrada apenas por ter sobrevivido e penso subitamente nos tantos que perderam suas vidas. Bebês que sobreviveram sem os pais, pais que sobreviveram sem os bebês, caminhões que amassaram carros como eu amasso uma lata de refrigerante ao pisar com força. Vidas que desaparecem. Tudo termina em nada e apenas as máquinas mais pesadas, vez ou outra, sobrevivem às colisões. O peso quase sempre vence a leveza. Quão certo sou das minhas certezas? O que guia nossas escolhas em direção ao futuro imprevisível? Será que um dia poderei folhear meus próprios livros?
Sem sombra de dúvidas, sem sobras, sem nenhuma alcunha alongada que não me pertença, por vezes queria que a vida fosse apenas escrever, até que subitamente me esqueço da escrita e vivo todo o resto da minha realidade, vida que na maior parte do tempo não me interessa. Vislumbro identidades, personas, sonhos, desejos secretos e temo os outros, provavelmente pela capacidade de se me refletirem. Se há neles tantas coisas malucas, se antevejo neles tantos desejos sombrios e maliciosos, quem disse que não há tantas coisas em mim também? Se não as acho, será que não olhei para dentro o bastante? Pelo medo dos outros aprendi a ter um temor ligeiramente sobrenatural a mim mesmo. Há medo por encararmos a finitude ou há medo por termos medo de nunca termos uma atitude? Que se prevalece após o esquecimento? O que não envaidece sobrevive além do tempo? Todos os meus esforços e horas de escritas foram resumidas em… talento. Como se meus dois mil e quinhentos textos fossem ocasionais, casuais, como se meus livros fossem escritos por alguma divindade, como se qualquer força oculta tivesse me empurrado para frente e eu, inerte e passivo, não tivesse o menor mérito sobre minhas conquistas. Olha, como aquele ali tem talento para a escrita… talento. Olha que o destino daquele um é ser escritor e Deus o olhou nos olhos dele e disse: – você sim, meu filho. Sem o talento e os gestos figurativos e falsos, sem as amizades verdadeiras e os surtos dos descompensados que não se admitem nunca errados, o que então me resta? Grito meu desespero no escuro. Será que algum dia dormirei seguro? Quanto mais tento ser dócil mais o mundo me obriga a ser duro.
Sobra-me o sangue quente nas veias e, vez ou outra, sinto-me mimado em meus caprichos. Há dias que sinto uma necessidade de isolamento, apenas por desejar que o mundo se faça segundo as minhas vontades. Se não me isolasse, lutaria para fazer com que todos me agradassem, entretanto, encontrei no instinto de isolamento uma fuga para minhas falhas mais humanas. Por ser cônscio do meu egoísmo, não me dou tantas asas e sou eu mesmo que me podo, quando no meio de um voo que me soa excessivamente extravagante. A vida está aí para ser conquistada e não me vejo distinto dos tantos que já fracassaram e se arrependeram. Insisto em ser real e isso me dói, por antever nos outros só a falsidade de não se serem. Insisto-me e me odeio, por não conseguir me fingir, assim, secretamente julgo que todas as minhas vontades quiçá irrealizáveis, fizessem a curva na metafísica e se ajoelhassem diante de mim. Por insistir, creio-me um pouco mais, como quem não ousa duvidar de si mesmo, por muito menos.
Como posso não crer em mim se nasci assim tão talentoso? Quanto tempo devo ficar em silêncio em um mundo permanentemente ruidoso?
O cruel destino da autoidolatria eterna.
Meu sangue pinga pelo apartamento
Tinge o piso todo de vermelho
Congelam-se meus movimentos
Em face do que vejo diante do espelho
Escrevo no papel na intenção de me libertar
Ouço risinhos e cochichos aos montes
Nesta terra quase ninguém sabe o seu lugar
E eu, mesmo sozinho, vou existir longe
Distingo os tipos de sorrisos
Reconheço centenas de Narcisos
O cruel destino da autoidolatria eterna
Os bajuladores estão sempre serenos
Se fodem, se beijam e trocam venenos
Bebem com o mesmo deleite o suco, a cerveja e o esperma
Descupinização
A descupinização é fundamental, pois milhares de casas já desmoronaram tendo como únicos culpados os malditos cupins. E os linguistas, preocupados com os cupins, logo trataram de inventar uma palavra que nunca poderia sonhar em ser bela na estética, apenas para evidenciar pela feiura a inevitável vilania dos isópteros. Não se atente ao detalhe errado. Aqui tenho a tendência de perseguir os cupins e sobre os sonhos das palavras discorrerei em outra oportunidade. O que explicaria o ódio dos linguistas aos cupins? Experiências e traumas pessoais? O que traduziria a relação entre gente e cupim? São apenas insetos, eu lhes diria, entretanto, há uma crença popular e verdadeira de que devemos conter o número dos cupins e devo admitir a realidade desta assertiva, mesmo que o povo se apraza costumeiramente de comprar uma fantasia bem induzida. Acredito que exista um medo secreto compartilhado pela humanidade de ser subjugada pelos cupins ou pelas baratas ou pelos ratos, roedores estes que certamente são mais inteligentes que quaisquer insetos. As formigas que também estão espalhadas pelo globo terrestre e que não são íntimas ao frio, são fortes candidatas, mesmo com suas formas minúsculas, a nos destronarem, assim, a humanidade promove o extermínio de tudo o que pode e não é raro descobrirmos que promovemos a extinção de novos seres.
Imagino como seria a mim, subjugador dos animais e dos insetos, se uma criatura gigante surgisse e me obrigasse a viver de outra maneira. Devaneio sobre o que eu faria se um gigante me erguesse na palma de suas mãozorras e me dissesse, “filho, terei de te matar, mas é para o seu próprio bem, lembra de quando exterminou o cupim por causa que ele comia as madeiras da casa, bom, eu sei que sim e você, Daniel, está comendo as partes boas deste mundo inteiro, você e os seus colegas humanos fazem muito barulho, fazem sexo de qualquer jeito, queimam coisas demasiadas, acumulam lixo e certamente existem em uma quantidade excessiva, assim, te matarei pelo amor e pelo respeito que sinto à sua espécie, como um gesto supremo e superior que resume toda a nobreza de meu coração valoroso”. Sem alternativas, eu teria que concordar, sem mais argúcia argumentativa na fala, sem sequer uma tentativa desesperada de sobrevivência, veja, os cupins nunca suplicaram diante da descupinização e eu nunca vi uma barata que dissesse “poupe minha vida”, elas, dignas, apesar do esgoto distante e sujo de onde surgiram, possuem um brio invejável e não suplicam, mesmo quando são alvos das chacotas felinas. Não hesitam e nem clamam por misericórdia, nem mesmo quando desmembradas pelos gatos.
Dos humanos que se enraivecem diante dos cupins, destacam-se os arquitetos, que não podem aceitar que outros também projetem edificações belas e os engenheiros, que creem que seus capacetes são coroas, invejam a instintividade dos cupins, sem ter a menor consciência sobre eles, indagando-se se eles fazem contas e se utilizam fórmulas matemáticas para erguerem suas estruturas ou não. Para nós tudo é disponível e talvez este seja o segredo desmistificado por trás de desvalorizarmos tanto a tudo. O louva-deus morre depois que copula e por isso ele também louva o sexo, praticando-o com a certeza da não repetição, entregando-se ao orgasmo e à morte simultaneamente. Quem fode convicto da morte só pode foder bem. Pressão? Claro que não. Se a morte é a última consequência, o sexo que antecede a morte é apenas uma despedida e quisera eu saber quando vou morrer para nunca fazer sexo de qualquer jeito.
O que pretendo com este relato não é convencer a humanidade de suas incomodas manias segregadoras ou coibir os atos hostis que nós e os nossos colegas mais ou menos humanos praticam. Ouça e escute o que falo ou apenas leia, para que entenda o que eu digo, sem inventar falso sentido nas minhas ações. A única intenção que tenho aqui é que você anote o telefone do homem da descupinização, pois é preciso exterminar os cupins a qualquer custo. Se porventura se configurar a necessidade, se a ameaça for urgente, chame imediatamente o responsável pela desratização e se as baratas fofoqueiras lhe encheram a paciência, adote um gato ou ligue para o desbaratador ou um dedetizador de primeira. O desempregado é, sobretudo, um desocupado e se cada alma se dedicasse ao lixo reciclável ou ao extermínio dos cupins, quiçá encontraríamos pessoas melhores, munidas de um sentimento puro e tolo de orgulho e talvez nem houvesse desemprego e cupins no mundo.
Suspiro e penso na descupinização, enquanto rezo para que não existam tantos desumanizadores (exterminadores de humanos) no futuro e que não me cacem pelas ruas por individualmente ser responsável por uma existência coletiva excessiva. Os agrimensores, os testadores de motéis, os limpadores dos lutadores de sumô, os que possuem profissões raras ou feias, incutidas sutilmente por uma deformidade perniciosa promovida pelos linguistas através das palavras que definem essas descrições e explicações, esses de profissões estranhas também importam, mas quanto mais o dia avança, o sol cai e o mundo gira. O sol some aqui e aparece do outro lado do planeta. Todos começam a entrar em um estado de sonolência e eu me percebo lúcido. Sinto uma tendência a culpar os cupins pelas minhas mazelas, reparo que até os nomes deles compartilham as letras da culpa, malditos cupins culpados, cupins cultos e invertebrados, estúpidos e culpados, cupins miseráveis por todas as minhas falhas. Respiro e sinto uma paz serena adentrar subitamente o meu coração.
A prova de que Deus existe é a DESCUPINIZAÇÃO.