Verdades Inconvenientes

Só posso confiar em meus dedos
Subitamente eles escancaram verdades
das quais eu não ouso desconfiar

A psicologia nada serve
para quem vive na teia da aranha
A naturalidade que se exprime com leveza
é absolutamente enganadora

Alonga-se e dá um sorriso triste
O mestre titereiro puxa as cordas
A bailarina come, mergulha,
luta, dorme e até sonha, mas
nunca resiste e nunca dança

Teu corpo repousa longe da violência física, porém
finge não saber que a alma é vituperada todos os dias

Kiwi, morango, segredos batidos, cítricos
Tudo o que não se pode ter certeza
Abóboras zombeteiras no Halloween
Teias de mentira entre as de verdade
Isso tudo favorece a confusão dos ingênuos

Gêmeos caminham antagônicos
O mau contra o bom e os dois supérfluos
Um inseto com grandes antenas pousa na janela

Só posso confiar em meus dedos
Meus olhos captam imagens, vislumbres, estéticas,
Meus dedos desnudam vilezas, crimes, pecados
A voz hesita na mensagem e no tom
Os dedos, cruéis, são convictos

A coragem de ser covarde assumido
O coração mais resistente que o vidro
Tudo estilhaçado e espalhado pelo chão
Minhas vísceras, minha pele, minhas mãos

O sal dos olhos toca a ponta da língua
Estou comovido com um relâmpago na estrada
A BR-163, o Hospital Miguel Couto,
Tudo de novo e outra vez até estar morto
Tento gritar, mas já estou rouco

Sinto-me aliviado por conseguir usar os dedos
Estou pronto para revelar minha alma e meus segredos
Começo admitindo que sou um homem repleto de medos

Sacralidades profanadas em qualquer noite de quinta
O interno não aguenta mesmo tinta
O sexo é o consolo que temos quando o amor não nos alcança?
Só os tolos acreditam em velhas e novas esperanças?

Não há sequer um conselho que me disse que presta
Ninguém estampa a alma na própria testa
Não te falaram? Paris não é uma festa

Lá se vai o sol em outro fim de tarde
O que há de perder não tem onde guarde
A invernia me dominou, mas meu peito ainda arde

Morangos mofados, frutas podres, crises de identidade,
Homônimos perdidos e esquecidos pela cidade

Eu sei que muita gente não vale o que come,
mas você esperava que eu deixasse alguém passando fome?

Pinheiros, árvores redondas, garotos e garagens,
Circos, cachorros correndo na chuva, bichos selvagens,
A bola oito, o fim do jogo, o ressurgimento, o que importa,

Está morrendo afundando em uma espécie de senso comum
Está deificando um ser humano ridículo e se apequenando

Olha, sorri para as flores, canta para os amores,
Aposta corrida na rua e personifica o vexame
O estresse só aumenta e tenho medo do derrame

Sinto que posso morrer jovem e assim se lembrariam
da minha cafonice eternamente juvenil, mas diriam
eis ali um homem que sabia

Quando alguém quebrasse o silêncio fúnebre
perguntando sob a minha lápide sobre que diabos eu sabia
Quiçá surgisse alguém com certa intimidade e contasse:

Ele sabia sobre Tudo, sobre o Mundo, desde cedo,
mesmo assim ele quase nunca dizia, só antevia,
porque a verdade só se revelava nas pontas dos dedos
Meu espectro vazio talvez esboçasse um sorriso
Será que meu espírito merece o paraíso?

Olha, que tudo passa rápido e o hoje logo vira ontem e
A vida é para quem sabe viver e buscar o prazer
Olha, eu sei que falando assim, parece a ti que fiquei louco,
Sou um homem com muito, mas transpareço pouco

A estética que me importa é invertida
Aprendi há tempos o Nome da Vida

Todos precisam tanto de mim
Sou eu que as coloco de volta nelas mesmas
Ah! Sou eu que as faço enxergar suas belezas!
Ah! Sou eu que encerro, reato, sorrio, xingo, amo, odeio!
Ah! Parece-me que precisam de mim com uma espécie de sobrecarga
Acordo cedo e como chocolates e evito que a vida seja amarga

Tentei explicar à minha mãe e à minha namorada,
Olha, eu às vezes preciso ficar sozinho e me conectar
com as partes distantes de mim das quais me esqueço
Se coloquem no meu lugar, eu agradeço,

Obrigado, de nada, companhia, solidão, best-sellers,
Futebol, tartarugas, corujas, a escuridão e o medo,
A tua luz salvou a minha vida e este é outro segredo

Não tenho confiado em minhas percepções, entretanto,
acredito cegamente nas revelações dos dedos

Faça silêncio, por favor, há alguém dormindo
O choro de um novo menino vem surgindo
Vamos juntos agora, sigam-me os bons,
Tenho sido um grande líder, mas não admitem
Habitualmente querem andar atrás de mim,
mas aperto os seus braços e digo: andem ao meu lado!

Ouça-me capitão, tritão, um dia serei lembrado
Falo tanto que muitas vezes não sei o que dizer
Flagrei-me aos prantos até o amanhecer

Estou me tornando arisco outra vez
Meu coração de bicho de rua vê os faróis
Acordo suado entre os meus lençóis

A ampulheta jaz ao meu lado e a areia escorre
A minha memória enfraquece e ninguém me socorre
Tudo bem, todos precisam de mim
Meu instinto heroico sonha com uma morte bonita

Rio das mortes idiotas e isso não aceito
Rio da minha lorota: – como se eu controlasse o jeito

Gargalho e o som retumbante da minha risada
se parece com o relâmpago da estrada naquela vez que chorei

Do tudo vamos ao nada, mas nasci para ser rei

Olho para minhas excentricidades e me acho incrível e patético,
A realidade é que amo meu tipo de senso estético

Sonhei que era atropelado, mas acordei aliviado
Não havia sido vítima fatal do maior de meus medos
Sorri, sem entender meu próprio mistério, feliz e sério:
O importante é que eu ainda podia usar meus dedos

As maiores verdades são inconvenientes
Ninguém se importa tanto assim com a gente
Cada um se concentra apenas no que sente

Adivinhei a vida, mas o segredo dela me escapou
Tenho uma impressão frágil de que Deus me abandonou.

Inventado para outras coisas.

Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Olho lento e existo longe
Quando não tento
Encontro-me no horizonte
Paisagens sem encerramento
A personificação do cansaço
Um astronauta vaga à esmo
seguindo planetas como seus mesmos
Recriando seu tempo-espaço
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A maioria delas furiosamente delicadas
Aprendi muito novo o valor do nada
Há muito que se consegue com a ponta da espada
Há segredos ocultos no rabo da palavra
Astronomia do sonhador que sempre fui
A vida de escritórios que nunca amei
Tudo se dilui entre os mistérios que inventei
Livros tortos, quadros, sapos e corujas
Edredons, fantasmas, fadas e roupas sujas
Constelações ancestrais e carneiros
Minha coragem e tudo que é verdadeiro
Fui sempre sozinho por ousar ser inteiro
Sem me encaixar nas molduras
constantemente me julgam mais jovem
Não entreguei a minha alma ao retrato
jamais me atreveria ao destino de Dorian
A juventude e a beleza compartilham um fim
Ambas acabam diferente dos sonhos que existem em mim
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A dureza férrea e a secura do vinho
Meu jeito sério subitamente se abre em sorrisos
Sou aquele vago oceano no fim do caminho
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Danço no escuro do meu apartamento
Ao som de Lord Huron vão meus movimentos
Conto os carros que passam com dificuldade
É perigoso esquecer de ligar os faróis quando a noite cai
É corajoso permanecer quando o resto se vai
Sombras fúteis lavam louças
na metade da madrugada por bajulação
Venderam-se por coisa tão pouca
e se rastejam suplicando atenção
Fui inventado para outras coisas
Está claro para quem me olha
Fito nostálgico o sol do fim de tarde
Quando o crepúsculo me escapa
Sinto que algo no meu peito arde
Para não dizerem que não falei das coisas frágeis
e do tanto de verde que há na natureza
Para não dizerem que não lhes contei
que depois da Dor se encontra Beleza
Para não dizerem que eu não tinha flores
até no meu nome do meio
Para não dizerem que só pisava no freio
Amei tudo o que pude e o que não pude amar
Prometi me esquecer no futuro para me resguardar
da infantilidade inútil da vingança
Quando tudo se acaba sobrevive a esperança
Somos todos eternamente crianças
Considerações finais deste solilóquio
A solidão não me fere e preciso ser cauteloso
Já fui viciado na melancolia profunda
Olho devagar e vejo com calma
Por vezes antevejo até os desejos da alma
Só que tudo que sei sobre os outros
Quase nunca sei sobre mim
Não tenho opiniões e apenas instintos
Estou preso em meus próprios labirintos
Tentando encontrar alguma coisa que nem sei
Tentando me chamar pelo meu primeiro nome
Tentando enxergar insistentemente o rosto
que eu tinha antes da criação do Universo
Rabisco mais um verso e me desconcentro de tudo
Durmo tarde e devoro outros mundos
Estou aqui, mas estou por toda a parte
Está claro para quem realmente me olha
Fui inventado para outras coisas.  

Menino doce.

CRÔNICA DE DOMINGO.

Destas tantas coisas que a gente pensa em um domingo. Destes tantos olhares, ingênuos e enviesados, dos cenhos franzidos desde a infância até os caprichos excessivos. Franzo igualmente o cenho, mesmo adulto, não muito diferente do meu sobrinho que ergue suas sobrancelhas em reprovação. Muito mais espalhafatoso do que ele, persisto de cenho franzido e mostro a dureza através do meu olhar, tudo isso como o disfarce para o menino doce que eu era quando tinha a idade dele e que ainda sou, confesso envergonhadamente. Hoje conjecturo ideias extravagantes e penso que a doçura dos meus gestos deva se fazer cada vez mais secreta. Quantas intenções cabem nos instantes mais ligeiros, nos passos mais lépidos e em como ajo em relação a tudo? Sinto-me como se fosse condenado a nunca ser por inteiro, por só se oferecerem metades a mim.  

Penso todas as minhas dores e traumas e medos e as visualizo ao longe. Desfilo em seguida pela avenida dos meus machucados e cicatrizes e vejo a minha alma inquieta e voraz em uma ansiedade crescente por se cumprir em definitivo, mesmo antevendo que não há nada que seja definitivo no âmago. Nada sacia a alma. Na passarela dos meus maiores vexames versões distintas de quem já fui me aplaudem e me apedrejam e sigo avançando sem titubear enquanto piso nas poças formadas pelo sangue que derramei. Não consigo agradar nem a mim. Como poderia sonhar em agradar os outros? Se nem meus desejos simplórios se cumprem, como posso sonhar em cumprir o que é alheio?

Tudo é absurdo e aguentamos esses tantos absurdos com uma tolerância insistente, como quem suporta os abraços ou os monólogos melífluos de um bêbado irritante. Há verdades convenientes demais para que eu não desconfie delas e se tudo converge para uma direção, eu tenho o hábito terrível de observar todas as outras. Não concordo com os outros e geralmente discordo mais veementemente das minhas próprias opiniões. Não é verdade que eu seja senhor de mim só por gastar metade do meu dinheiro em contas ou por morar sozinho ou por respeitar meus limites ou por antever que deveria me expandir na busca por solucionar a angústia do meu ser. Não, não me admito frio, embora tenha congelado nos últimos meses diante de revezes que pareciam irreversíveis e de notícias avassaladoras que me deitaram ao chão e expandiram o buraco fundo que há no meu peito há décadas, sim, desde muito antes de entender o que era o Vazio Escuro, eu o sentia, como se fosse um fantasma de Morte preso perpetuamente em minha Vida. Merecemos nossas sentenças? Tenho a consciência perfeita de que as grandes lições que aprendi ao observar as coisas frágeis aos meus sete anos de idade são das mais importantes que presenciei até hoje. Compreender a paciência com que a aranha tece a teia e como um pássaro sobrevoa o mesmo pedaço do céu por longos minutos enquanto calcula se consegue mergulhar para se alimentar, tudo isso é breve, calmo e raro. Respiro como se cada respiração pudesse representar um pequeno pedaço do paraíso, ainda que eu desacredite de todas as religiões, mesmo não sendo ateu ou asceta. O paraíso são os outros. O inferno também. Quem não se conhece minimamente não pode reclamar se eventualmente se reconhecer como refém de alguém. Quase toda pessoa que identifica nossas fraquezas, utiliza-se delas. Quantas vezes no desespero fecharam suas portas e você teve que escapar pelas janelas? Apenas para sobreviver…

Fecho os olhos na tentativa de buscar uma noite imperturbável de sono, mas sonho sem parar e a maioria dos sonhos traz maus agouros e me pergunto o que tanto faço para me conduzir por estradas metafísicas das quais tenho tanto medo. Talvez no fundo eu seja corajoso em segredo. Talvez eu mereça essa enormidade de pesadelos. Todas as traições que sofro em cenários metafísicos, todas as vezes que fui assassinado, todas as ocasiões que me cuspiram e me colocaram de joelhos, tudo o que eu merecia e nunca tive, tudo o que os outros nunca mereceram e tiveram, todas essas incoerências que me fazem duvidar se. Sinto que o Universo é muito grande e algum dia alguém haverá de me explicar as razões das emoções, pois emoções puras são sempre desarrazoadas e toda essa displicência silenciosa e a falsa amizade nos rompimentos súbitos de amores e amizades, apenas por praticidade nos afogam, forçando-nos a engolir litros e mais litros de uma amálgama de inúmeras mágoas.

Sinto vontade de se me insistir, sem ter a convicção de que eu mesmo valho a pena. Tento sorrir, mesmo nos dias que não crio novas ficções ou poemas e tudo me dói, como um peso no peito, como qualquer grampeador que é repousado em cima de uma folha de papel apenas para evitar que ela não voe e assim permaneço sem voar, por um detalhe que me foi imposto. Será que as primeiras árvores sonharam em voar? Creio que sim, se perscrutavam os caminhos inconstantes das folhas ao vento. Será que imaginaram que poderiam ser algo tão diferente do que aquilo que eram por natureza? Penso nas contrapartes de tudo e em como isso tudo pode ser belo e perigoso. O poder aliado com a estupidez é fatal. Verifica-se aqui o potencial para estupidificar a população e criar uma massa de pessoas não pensantes e há quem já pense que há diversos pensamentos que sejam proibidos. Nada é proibido em nossas mentes. É preciso ser sensível se quiser ver o que ninguém ousa ver, mas muita sensibilidade machuca e por vezes me pego sem ar por enxergar um mundo excessivamente sombrio e talvez me doa admitir que as coisas sejam exatamente assim. Por isso, acredito que nos piores dias, é preciso sobreviver com muita destreza. Só vencemos quando enxergamos que após a Dor há um tanto imensurável de Beleza e assim, sem facilidades, começamos a ver uma realidade que talvez se equipare com a ficção. Talvez nos dias de trevas, eu possa crer na luz do meu coração, entretanto, confesso-me vil com um instinto que nunca se cumpriu: há vezes em que queria me vingar do mundo e ser vilão. Se um dia acordasse mau, fatal e me guiasse apenas por um instinto louco de destruição. Será que na ira eu encontraria alguma comoção?

Tudo é vago e quase estúpido. Um estranho invade o meu espaço em um bar e me ofende e há tantas pessoas que posteriormente irão defender a atitude dele. Nenhuma resposta justifica as defesas. A síndrome do advogado, todos correndo para uma ocasião para tentar fazer parte de algo qual não fazem parte. Querem a justiça, sem se exporem diante do desconforto, como quem quer um prêmio, sem lutar por merecê-lo. Queremos os espólios, mas não queremos erguer a espada, nem mesmo para defender as pessoas que tanto nos defenderam outrora. Somos impecavelmente injustos e incoerentes e essas tantas inconstâncias se impregnam em nossas atitudes mais constantes e tentamos ser suavemente melhores, como quem entende que o mundo já viu o suficiente de dor e como quem percebe, sem epifanias, que um abraço longo e um pedido de desculpas rápido pode significar tanto quanto não parece. Vez ou outra o perdão chega tardio, sem evitar a confusão, entretanto, clareando o caminho para dias mais bonitos. Palavras ditas sem floreios, um gesto sincero, são coisas quais eu teimosamente ainda acredito.

Assim, vejo-os o tempo inteiro e muitas vezes quando me atiram, busco não sair do caminho da bala. A minha vida foi sempre no limite e eu me sinto próximo ao fio da navalha, mas sobrevivo a mais uma batalha e me reergo enérgico, com o meu coração doente, mas ainda pulsante, com a certeza de que nada de bom do que eu faço garante algo bom a seguir, ainda assim, este é o meu único jeito de agir. Ergo a minha cabeça e meus olhos encontram o sol e posteriormente uma profusão insana de cores. Talvez eu deva acreditar nos amanhãs, mesmo com a morte de tantos amores. Talvez abandone o resto da minha parte sã e ostente orgulhoso minhas tantas dores. Quando olho para o sofrimento contínuo, parece-me que não há Deus, pois se Deus houvesse haveria de ter nos resgatado muito antes. Não é possível que sofrer seja uma constante. Já busquei refúgio no sono para fugir da realidade que me feriu. Por vezes sinto que tento sentir um mundo que nunca me sentiu. Por aí espalham que é curto o meu pavio e que eu aprecio estar dentro de uma confusão. Ouço uma estúpida em sua interminável provocação. Há meses que estou no Inverno. Nunca mais haverá verão? Caminho, não pelas vielas de Campo Grande, mas pelos campos grandes da minha alma. Pavimentei minhas trilhas e construí os degraus da escada que ainda estou subindo vagarosamente. Grito em voz alta os meus maiores vexames e sinto uma raiva fervorosa. Talvez esta crônica seja uma tentativa de. Nada.

Bem, entre tantas verdades, pode ser que existam mentiras e, vez ou outras, não há problemas, desde que as mentiras que criamos através dos contos e ficções e histórias, possam se estender e alcançar uma compreensão ainda maior da realidade. Há verdades que cessam verdades e essas verdades não interessam. Se é preciso acreditar em divindades, que acreditem. Se é preciso louvar os erros para eivar os acertos, que louvem. Se é preciso falharem para que aprendam a amar, que falhem, mas que quando a autocomiseração acabar, por favor, que amem. Os pesadelos, os monstros, os inimigos, os fantasmas, tudo isso existe e as nossas ficções não os tornam mais ou menos reais, porém somos os heróis e heroínas de nossas próprias jornadas e mesmo em cenários imaginários ou sonhados, notamos uma necessidade de triunfarmos. Quero nunca mais morrer em sonhos, mesmo aceitando que um dia vou morrer na vida real, ainda não sabendo distinguir a diferença crassa entre uma realidade e outra. O sono do dia seguinte nos levará para outras realidades e me pergunto se me deixarão ter a mesma substância que faz de mim quem eu penso que sou. Se algum dia me concederão o privilégio de.

Quando olho para o abismo, sinto que o abismo me olha de volta e o desespero que se infunde nos outros é algo que me conforta. Posso olhar para o precipício por anos sem nenhuma tentação em saltar para dentro. Quero outras coisas que. Preciso de outras coisas que. Significar a vida é solucionar o mistério das inutilidades?

Escrevo-me, como se pudesse me resumir, como se pudesse me curar das antigas doenças da alma. Sinto que trago isso de outras vidas. Sinto que não há memórias boas ou más esquecidas. Tudo que foi é uma lembrança vaga em algum campo interno e extrassensorial. Toda a tristeza se apaga diante da farta mesa na véspera do Natal.

Há dias em que eu só queria me sentir especial. Há dias que.

Exagero no café, na água, no tempo em que passo no escritório. Exagero na quantidade de vezes que vomito, na quantidade de vezes que insisto, na qualidade das vezes que.

Torço para que o Palmeiras vença para que a semana seja melhor.

Torço para que não chova e para que eu jogue vôlei e derrame um pouquinho de suor.

Rezo para que não me quebrem outras vezes. Tenho bancado o forte, mas na verdade tenho sorte. Pessoas se despedaçam tão facilmente e é tão difícil reconstruir, praticar a remontagem e eu sou péssimo em quebra-cabeças e.

Abro a porta para a escuridão e sinto a dor doer. Preciso abraçar minhas partes malignas e amá-las, mas não amo. Se dissesse que já as aceito estaria me afundando em autoengano.

Só os ébrios de espírito despertam na madrugada para lavar a louça alheia ou tirar o lixo do vizinho. Os réprobos, como eu, revolvem para dentro de si mesmos e permanecem sozinhos.

Brindo uma cerveja preta com meus dois gatos e meu cachorro me observando, às 2h35, enquanto escuto Lord Huron. Bailo com os fantasmas e sei que.

Deus nos abandonou e todo o meu futuro depende do que eu fizer. Gargalho por me sentir desesperado e enclausurado, cônscio das minhas capacidades, ensombrado por uma melancolia profunda que me persegue desde o primeiro choro no hospital.

Minha mãe dizia e ainda diz ao mundo que eu sou especial e eu.

Escrevo livros querendo acreditar que um dia conseguirei publicá-los, mas em verdade, em segredo, eu me omito. Bem no fundo acredito que meus sonhos são distantes e que eu nunca vou cumpri-los.

Ainda assim me escrevo, como se essa fosse a última confissão de que eu.

E de que eu.

E ainda de que.

“O mundo é para quem nasce para conquistá-lo e não para quem sonha que pode fazê-lo, ainda que tenha razão”. Rio de Pessoa e depois de minha pessoa e uma sombra fútil e petulante me chacoalha e grita comigo:

– Não se ria!

Dou de ombros, entre tantos escombros e respondo aos sussurros.

– Um dia.

Quem sabe uma criança correndo pela rua ensolarada me faça acreditar que.

Quem sabe os filhos que nunca tive estejam clamando pelos contos que escrevi ou pelos que ainda escreverei e.

Quem sabe se tudo que ainda não sei signifique que todo mundo nasce para ser rei e essa visão axadrezada da vida tenha me feito peão de meus próprios sonhos e qualquer instinto de rebeldia seja ainda bem-vindo.

Quem sabe tudo faça sentido, mas não neste mês de agosto e muito menos neste domingo. Os meus demônios não foram vencidos, mas neste fim de dia me pego com fome e sorrindo.

Nos restaurantes que ainda não conheci na Ásia.

Nas pontes que ainda não cruzei na Europa.

Nas línguas que ainda nunca falei antes.

Nos castelos em que nunca fui príncipe ou rei.

O copo de água meio cheio também está meio vazio e eu, meio vazio, certamente estou meio cheio.

Nos bosques selvagens.

Na sutileza felina ou na lealdade dos cães.

Na casa solitária como o meu coração no meio de uma ilha perdida.

No meu carro preto ou branco que percorre estradas e engole o sol.

Em tudo o que há em mim parecido com o inconstante mago Howl.

Pensando e sentindo, afinal, percebo-me normal, nada especial, mas sei que ontem, hoje ou amanhã, fosse como fosse…

Serei sempre aquele menino doce.

Depois não tenho certezas.

Acordo antes e respiro

A mulher que amo

dorme ao meu lado e sorrio

Sempre fui gentil com as pessoas

Com as que odeio e com as que não gosto

e mais ainda com as que amo

Observo-a e me basto

Amar é olhar com cuidado e

Cuidar dos outros sempre foi

a única coisa que soube fazer desde cedo

Frequentemente alguém me dizia

Perto de ti não ouso sentir medo

Por vezes fui fatalista, mas vivi

tentando fazer a diferença

Creio que a felicidade destes dias

seja apenas consequência

Observo-a a dormir e sorrio

Este retrato no coração me acalma

Até quando ainda não a conhecia

sinto que a imagem já me acalmava

Toda esta leveza e poesia esteve

desde antes fixado em minha alma

O pé esquerdo dói e manco

Pisei em algo pontudo

Ainda assim, nesta manhã canto,

Porque a alegria traduz meu conteúdo

E me basto com a alegria de hoje

ainda que saiba que todas as horas seguintes

Trazem surpresas

Sou feliz e completo agora

Sobre depois não tenho certezas

Levanto e faço o café

A mulher que amo continua dormindo

O cachorro que amo continua dormindo

A gata que amo continua dormindo

O gato que amo me seguiu até o escritório

Apenas para dormir mais perto de mim

Sou feliz e completo agora

Absorvo da vida toda a sutileza

Sou feliz e completo agora

Sobre depois não tenho certezas.

Receita.

Prepare

Oito ovos mexidos

Saboreie um pedaço

de chocolate amargo

Beba três goles de suco de limão

aquele mais caro do mercado

Agora é só apreciar meio litro de café

para se manter em pé durante o dia

Se for domingo ou feriado

Finalize aquele livro do Dostoievski

Junte o que há no seu porão

Rascunhe uma crônica ou poesia

Se não for domingo e nem feriado

Vá para o trabalho e cuide bem

de todos aqueles números

Até os trabalhos mínimos importam

Evite pisar nos insetos e matar os besouros

Até as vidas menores importam

Ouse se conhecer e olhe para si e para dentro

Prepare uma mochila com um lanche caseiro

Dirija até o Shopping China e compre

Meia dúzia de coisas que você não precisa

Lembre-se também de levar chocolate amargo

O suco de limão caro compensa mais no mercado

Vagueie pela cidade nas noites e sente sozinho em um bar

Não saia correndo se uma estranha se sentar contigo

Ela precisou de coragem para ir até você

Agora você precisa de coragem para ficar

Portanto, sorria, mesmo que ela não seja tão legal assim

Ainda que você saiba que prefere ir para casa sozinho hoje

Se quer coisas novas na sua vida, deve permitir que elas entrem

Se o seu velho mundo está balançado

Entre discretamente em um novo e recomece

Nenhuma maldade ou bondade perdura para sempre

Passeie pela cidade aos domingos de manhã

Contemple o que há de natureza e o que há de natural

Esteja atento aos que se atrevem a te criticar e te elogiar

Há críticas justas e elogios insinceros, portanto, abra os olhos

É perigoso acreditar em tudo o que dizem sobre você

Essa paisagem com gosto e cheiro de paraíso

Muitas vezes é uma armadilha

Pode sair dela completamente afetado

Volte para a casa

A solidão te ensinou muitas coisas

mas é hora de adotar um gato

Sozinho não irei conseguir

Sozinho amadureci bastante,

Entretanto, não venci o mundo

Agora como mais um pedaço de chocolate

Peço um lanche completo na hamburgueria

com adicional de ovos

Bebo o suco de limão (aquele mais caro)

Assisto um seriado promissor ou um anime novo

Hoje o meu time de futebol não joga

Se for sábado, cuidado, há noites de duzentas horas

Sento e escrevo no papel

Vou até o escritório

Sento e escrevo no computador

Malho por duas horas e nem é início de madrugada

Sinto um tesão absurdo, porém não desejo ver ninguém

Bato uma punheta e ainda nem é madrugada

Meus pensamentos não se esclarecem e continuo acordado

Meus pensamentos não me esclarecem e continuo acordado

Escrevo mais um texto triste sobre amores

como histórias de fantasmas

Só alguns viram, mas todo mundo fala sobre

Do terceiro andar olho pela sacada larga

e vejo a rua deserta e a fábrica de tratores

Ligo o ar-condicionado do escritório

Ligo o ar-condicionado do quarto

Ligo Lord Huron na televisão grande

e danço desajeitadamente

Quando voltar para a minha cidade

Serei o peixe valorizado no mercado

Isso não interessa

Quando voltar para a minha cidade

Receberei o calor dos meus amigos e minha família

E choro de madrugada

Hoje é sábado (ou sexta)

E de amanhã não passa

Vou adotar um gato e escrever um conto

sobre um amor que foi e não é mais

E vou rezar, embora não acredite em Deus

Eu acredito mesmo é no suco de limão mais caro

e naquele pedaço mágico de chocolate amargo

Vou até a minha geladeira e repito a receita,

Embora tenha comido lanche horas antes

Preparo

Oito ovos mexidos

Saboreio dois pedaços

de chocolate amargo

Bebo três goles de suco de limão

aquele mais caro do mercado

Já sinto o cheiro do café

e vou beber um litro inteiro

Esta noite vou tirar de mim

Tudo o que é falso

E vou encarar o meu eu verdadeiro

Não é bem que os ovos e o chocolate e o limão

tornem-me imensamente satisfeito, entretanto,

Esses alimentos me situam e me basto no entendimento

Neste momento a vida precisa ser desse jeito.

Retrato da Infância.

O retrato de minha infância feliz
está colocado na mesa de cabeceira da minha memória
Quando se cresce há tantos empecilhos para ser feliz
Há tanto que se pesa antes de chamarmos algo de felicidade
que todos os que tiveram uma infância boa como a minha
revolvem em si mesmos, como máquinas do tempo,
pela nostalgia de uma época em que era fácil aproveitar a vida
O quadro que vejo, do passado colorido e dolorido,
está emoldurado na primeira parede do meu coração
Mesmo quando eu optava pela solidão
Era pequeno, como as crianças costumam ser
e me orgulhava das minhas banalidades,
como as crianças costumam se orgulhar
Nunca imaginava àqueles tempos que eu cresceria
e me tornaria uma pessoa tão difícil e alta
Antes, infante, observava todos os bichos
sem imaginar que um dia haveria em mim tanta falta
Envelhecer é silencioso
Raramente, percebemo-nos envelhecer
é que meu coração ainda carrega as mesmas coisas que eu tinha
naquele momento distante em que eu acabara de nascer
Exceto pelas ausências que aprendi a acumular
E o vazio escuro, inseguro, que tenta me sugar
Já íntimo, nomeei-o como Vide Noir
Outro gênio já diria
Viver é perigoso
e só aproveitamos a vida sem medo
Quantos de nós não temos vergonha
de nossos pequenos segredos
mesmo após eles serem revelados?
As manchas deveriam ensinar para o futuro
e não afetar o presente que logo será passado
Tenho todas as idades porque a idade é uma mentira
A única verdade é que cada um tem uma cronologia
Sofremos, ainda que esteja claro para ver
Tudo o que nasce deve um dia morrer
Anteontem vendi minhas duas coleções de DVD
porque precisava de dinheiro para comprar roupas novas
Comprei um carro, mesmo que dirigir não me apraza,
porque preciso da facilidade da locomoção para ser prático
Preciso ser prático para evitar ser infeliz
É assim que as coisas funcionam e o mundo funciona
e há tantos cuidados que devemos tomar para não sermos engolidos
Aquele velho amigo inimigo se aproxima e o ouço sussurrar
Vide, vide, vide noir
Despenco no precipício de mim e no mais fundo
do meu ser enxergo novos horizontes
Por vezes tudo soa vago, mas vou existir longe
Volto aos tempos em que corria pelos parquinhos
Tinha medo de me machucar e chorava com facilidade
Deitava na pedra do quintal e seguia os insetos, sem machucá-los
Depois inventava um império robótico capaz de coexistir com eles
Os humanos não tinham humanidade o suficiente
para poupar vidas pequenas
E algo me dizia que toda vida valia a pena
Sentia um tosco orgulho em ser excelente nos videogames
Eu era feito de brilho e barulho, mas permanecia discreto e silente
Tudo em mim era muito e com frequência divagava
mesmo muito novo sentia que algo sempre faltava
E era seguido de perto por meus irmãos e meus amigos
Estava sempre acompanhado, até quando corria para o perigo
E cresci bem, intranquilo e forte
Ano a ano melhorei a minha saúde e a minha sorte
Espero conseguir cumprir meus sonhos antes da morte
A puerilidade que ainda carrego hoje reflete
a criança livre que tentei ser ontem
Tentar geralmente basta
E a gente sempre se gasta
tentando fazer mais do que pode
exagerando numa ilusão de necessidades
Acumulando uma lista imensa de vaidades
Desfilando nossa arrogância por toda a cidade
E aquela ingenuidade distraída que tínhamos
Aquela pureza do passado
Isso quase me deixou nestes dias
Envergonhado
Até que percebi que sou o mesmo
Andando a esmo
Cumprindo todas as minhas promessas
Tento me lembrar que não é preciso ter tanta pressa
E se no passado fiz apenas o que pude
A explicação é de que não poderia antes ir além
Um dia tudo passa, relaxa,
a gente vai ficar bem
Mude quando estiver preparado
e nunca se esqueça
Importa menos o ritmo
Importa mais o rumo
Há tantos novos algoritmos que entre eles
Sumo
Reapareço quase compreendendo
qual é o meu lugar
Não tenho a forma de uma estrela,
mas vivo sempre a brilhar
Assim, nunca mais ousei ser imbecil
e me envergonhar de quem eu sou
Até minhas partes mais erradas vibram por amor
Os anos perdidos estão emoldurados
na segunda parede do meu coração
Quando o futuro se tornar passado
Vou colocar alguns móveis de lado
e arrumar a decoração.

O cruel destino da autoidolatria eterna.

Meu sangue pinga pelo apartamento
Tinge o piso todo de vermelho
Congelam-se meus movimentos
Em face do que vejo diante do espelho

Escrevo no papel na intenção de me libertar
Ouço risinhos e cochichos aos montes
Nesta terra quase ninguém sabe o seu lugar
E eu, mesmo sozinho, vou existir longe

Distingo os tipos de sorrisos
Reconheço centenas de Narcisos
O cruel destino da autoidolatria eterna

Os bajuladores estão sempre serenos
Se fodem, se beijam e trocam venenos
Bebem com o mesmo deleite o suco, a cerveja e o esperma

Descupinização

A descupinização é fundamental, pois milhares de casas já desmoronaram tendo como únicos culpados os malditos cupins. E os linguistas, preocupados com os cupins, logo trataram de inventar uma palavra que nunca poderia sonhar em ser bela na estética, apenas para evidenciar pela feiura a inevitável vilania dos isópteros. Não se atente ao detalhe errado. Aqui tenho a tendência de perseguir os cupins e sobre os sonhos das palavras discorrerei em outra oportunidade. O que explicaria o ódio dos linguistas aos cupins? Experiências e traumas pessoais? O que traduziria a relação entre gente e cupim? São apenas insetos, eu lhes diria, entretanto, há uma crença popular e verdadeira de que devemos conter o número dos cupins e devo admitir a realidade desta assertiva, mesmo que o povo se apraza costumeiramente de comprar uma fantasia bem induzida. Acredito que exista um medo secreto compartilhado pela humanidade de ser subjugada pelos cupins ou pelas baratas ou pelos ratos, roedores estes que certamente são mais inteligentes que quaisquer insetos. As formigas que também estão espalhadas pelo globo terrestre e que não são íntimas ao frio, são fortes candidatas, mesmo com suas formas minúsculas, a nos destronarem, assim, a humanidade promove o extermínio de tudo o que pode e não é raro descobrirmos que promovemos a extinção de novos seres.

Imagino como seria a mim, subjugador dos animais e dos insetos, se uma criatura gigante surgisse e me obrigasse a viver de outra maneira. Devaneio sobre o que eu faria se um gigante me erguesse na palma de suas mãozorras e me dissesse, “filho, terei de te matar, mas é para o seu próprio bem, lembra de quando exterminou o cupim por causa que ele comia as madeiras da casa, bom, eu sei que sim e você, Daniel, está comendo as partes boas deste mundo inteiro, você e os seus colegas humanos fazem muito barulho, fazem sexo de qualquer jeito, queimam coisas demasiadas, acumulam lixo e certamente existem em uma quantidade excessiva, assim, te matarei pelo amor e pelo respeito que sinto à sua espécie, como um gesto supremo e superior que resume toda a nobreza de meu coração valoroso”. Sem alternativas, eu teria que concordar, sem mais argúcia argumentativa na fala, sem sequer uma tentativa desesperada de sobrevivência, veja, os cupins nunca suplicaram diante da descupinização e eu nunca vi uma barata que dissesse “poupe minha vida”, elas, dignas, apesar do esgoto distante e sujo de onde surgiram, possuem um brio invejável e não suplicam, mesmo quando são alvos das chacotas felinas. Não hesitam e nem clamam por misericórdia, nem mesmo quando desmembradas pelos gatos.

Dos humanos que se enraivecem diante dos cupins, destacam-se os arquitetos, que não podem aceitar que outros também projetem edificações belas e os engenheiros, que creem que seus capacetes são coroas, invejam a instintividade dos cupins, sem ter a menor consciência sobre eles, indagando-se se eles fazem contas e se utilizam fórmulas matemáticas para erguerem suas estruturas ou não. Para nós tudo é disponível e talvez este seja o segredo desmistificado por trás de desvalorizarmos tanto a tudo. O louva-deus morre depois que copula e por isso ele também louva o sexo, praticando-o com a certeza da não repetição, entregando-se ao orgasmo e à morte simultaneamente. Quem fode convicto da morte só pode foder bem. Pressão? Claro que não. Se a morte é a última consequência, o sexo que antecede a morte é apenas uma despedida e quisera eu saber quando vou morrer para nunca fazer sexo de qualquer jeito.

O que pretendo com este relato não é convencer a humanidade de suas incomodas manias segregadoras ou coibir os atos hostis que nós e os nossos colegas mais ou menos humanos praticam. Ouça e escute o que falo ou apenas leia, para que entenda o que eu digo, sem inventar falso sentido nas minhas ações. A única intenção que tenho aqui é que você anote o telefone do homem da descupinização, pois é preciso exterminar os cupins a qualquer custo. Se porventura se configurar a necessidade, se a ameaça for urgente, chame imediatamente o responsável pela desratização e se as baratas fofoqueiras lhe encheram a paciência, adote um gato ou ligue para o desbaratador ou um dedetizador de primeira. O desempregado é, sobretudo, um desocupado e se cada alma se dedicasse ao lixo reciclável ou ao extermínio dos cupins, quiçá encontraríamos pessoas melhores, munidas de um sentimento puro e tolo de orgulho e talvez nem houvesse desemprego e cupins no mundo.

Suspiro e penso na descupinização, enquanto rezo para que não existam tantos desumanizadores (exterminadores de humanos) no futuro e que não me cacem pelas ruas por individualmente ser responsável por uma existência coletiva excessiva. Os agrimensores, os testadores de motéis, os limpadores dos lutadores de sumô, os que possuem profissões raras ou feias, incutidas sutilmente por uma deformidade perniciosa promovida pelos linguistas através das palavras que definem essas descrições e explicações, esses de profissões estranhas também importam, mas quanto mais o dia avança, o sol cai e o mundo gira. O sol some aqui e aparece do outro lado do planeta. Todos começam a entrar em um estado de sonolência e eu me percebo lúcido. Sinto uma tendência a culpar os cupins pelas minhas mazelas, reparo que até os nomes deles compartilham as letras da culpa, malditos cupins culpados, cupins cultos e invertebrados, estúpidos e culpados, cupins miseráveis por todas as minhas falhas. Respiro e sinto uma paz serena adentrar subitamente o meu coração.

A prova de que Deus existe é a DESCUPINIZAÇÃO.

Rumo.

Sinto saudade da estrada
Meus olhos castanhos escuros
chegavam nas boates e bares sempre procurando
Observava cada rachadura nos muros
enquanto a vida ia passando
Só me deparava com mentiras
espalhadas pela cidade
E eu que estava sempre na mira
Sabia que nas estradas havia
a única e esquecida verdade
Estar lúcido e sóbrio
prestes a desistir ou a admitir
É o consolo dos loucos,
Os que enxergam um pedaço da verdade são poucos
A consciência requer inevitabilidade
Quando podemos morrer a qualquer momento
somos honestos com a vida
Odeio ter a capacidade de ler as entrelinhas
Uma vez quase morri nas estradas,
E ainda assim sinto falta
das mãos no volante
E da necessidade de contar apenas
com meus reflexos para sobreviver
Qualquer caminhão ou ônibus
surgia como um monstro pesado
E eu, encolhido em meu carro branco,
antes de comprar um carro preto,
Sabia que não poderia ficar desatento
A vida é este detalhe discreto
E se dormimos na hora errada
somos esmagados como insetos
Há diversas plantações dos dois lados
e há bois e vacas e carneiros espalhados
Há também pombas que pulam no para-choque
e me pergunto se as aves se suicidam
As nuvens cinzas escolhem locais específicos para chover
E eu sinto falta do menino que eu era
antes da última primavera do mundo
Um jovem que acreditava em cartomantes,
dados viciados e na influência das marés
É estranho absorver a verdade
que o asfalto transmite
A máquina do tempo já foi inventada
É o cérebro quando estamos concentrados
em chegar em algum lugar
Qualquer lugar
Assim eu voltava brevemente
A minha prolixidade de sentidos
por vezes me fazia ficar calado
Essa prolixidade se fazia sucinta nos anos perdidos
nos quais sentia que nunca fui amado
E eu, grande mago da solidão,
carregava o charme de não ter charme,
O ar misterioso de quem não tem mistério,
O sono insistente em tudo o que me envolvia
contrastava com meu interesse imenso
em tudo o que me era alheio
E faziam filas para ter uma migalha da minha atenção
E eu olhava desinteressado e quase triste para o Vide Noir
sabendo que ninguém conhecia o buraco negro em mim
Aquela lacuna enorme que carregava tanta Dor e Beleza
sugava todas as minhas energias
Como restava algo em mim capaz
de encantar alguém?
E minhas vontades passavam
a 120km/h e eu sabia que tinha visto
muito mais do que o suficiente
E que nunca viveria o suficiente para
realizar todos os meus sonhos e desejos
Todo mundo é um, mas alguns
são um enquanto são dois ou três
Tenho me dedicado tanto
que por vezes me encontro aos prantos
quando um relâmpago lumia o breu da noite
Emociono-me diante da Beleza e sinto a sorte
de ser um homem que nunca sentiu inveja
Dirigir na estrada é
um ato contínuo de meditação
Se você tiver bons ouvidos
escutará o motor como seu coração
Os batimentos cardíacos unidos
Os radares querendo ditar limites
Os sonolentos nos tirando o ar
E os suspiros breves no peito
quando evitamos colisões e acidentes
E a consciência de que muitos outros
não conseguiram evitá-los
Viver é perigoso
Viver é raro
Viver é necessário
Se um dia tiver dúvidas sobre a vida
recomendo que dirija nas estradas
E se depare com a realidade
As mentiras, as cidades, os córregos,
os sinais de trânsito, o consumo, o dinheiro,
Isso tudo força a miopia na verdade
e deixamos de enxergar o que realmente importa
Abra as portas e janelas e veja
Ligue os faróis e encare os percursos
A vida é procurar e nunca encontrar
um rumo.

Até logo!

É que é assim mesmo, senhor, como na mais simples das rimas: a gente nasce, cresce e logo a vida termina. É uma linha fina. Eu queria voltar no tempo e te pedir “me ensina”, conta bem devagar, por favor, a sua história. Deixe suas lembranças vivas através das minhas memórias e eu sei que nós ficaremos bem.

Antes de ir, volta só um instante e fica mais um pouco. Ri com sua família inteira de novo. Atrasa uns minutos para o trabalho e aproveita esse breve espaço no fim do almoço. Escuta os sons dos seus filhos, noras, genros e netos. Você percebeu faz tempo que todo esse barulho e a casa cheia significam apenas afeto. Hoje eu também sei.

Sei o que ninguém me ensinou, vô e sei que é natural ainda sentir alguns medos. Sei que os almoços nos sábados nunca mais serão os mesmos. Sem chances de erro ou segredos, hoje vejo além dos espelhos. Todos nós somos únicos, ainda que no meio de tantos. Revive o berro que me assustou quando celebrou aquele último gol do Santos.

Dói, mas é assim que a vida é desde que o Universo foi feito, desde que o planeta existe. Vou insistir e ter fé, mas por um tempo minha alegria será triste. Queria que soubesse, vô, eu luto sempre e muito por tudo o que é certo. Melhorei com o tempo e até me tornei esperto, mas o senhor foi o único que conheci na vida que mereceu um tipo distinto de adjetivo. Você é o único que contemplei de perto e pude chamar de altivo. Derramo pelas minhas palavras tudo o que há no meu coração. Você sempre será alvo do meu amor e da minha admiração.

Aceita um colo, pega toda essa dor e simplesmente esqueça. Agora me puxa para perto e acaricia minha cabeça. Sete, porque é um número auspicioso e cinco estrelas não são o suficiente. Após o Cruzeiro do Sul há mais estrelas, vá em busca de obtê-las e conheça constelações diferentes. Alastre-se, expanda, ousa continuar crescendo depois da morte, conquistando os horizontes. Se eu também tiver sorte um dia vou existir longe.

Descanse, meu velho, não precisa mais trabalhar. Você deixou um cenário positivo para que possamos continuar. Obrigado por ter repetido a lição de John Donne e ter me ensinado que “Nenhum homem é uma ilha”. Obrigado pelo aprendizado de amar e valorizar a família. Uma das grandes injustiças poéticas da vida é que a bondade e o amor que recebemos, por vezes, só podemos passar aos próximos. Não tenho como ser melhor neto agora, é tarde demais, mas buscarei ser um melhor irmão, um melhor filho, um melhor sobrinho, um melhor namorado e um melhor amigo. Como a vida é cheia de nuances, eu já posso buscar ser um excelente tio para o meu sobrinho e eventualmente, mais para frente, pretendo ser o melhor pai do mundo para os meus filhos.

Olho para trás e vejo com clareza a minha juventude, mas o tempo passa e exige que tudo mude. O que traz valor a vida é a finitude. Tudo bem, eu sei que a vida acaba e por isso só chorarei para limpar a minha alma. Se pudesse escolher, eu talvez ainda estivesse brincando com a terra nos buracos que você cavava para mim na fazenda. Eu quase me esqueci, mas há tanta gente que se lembra. Há uma distância entre o que foi e o que é, mas me fortaleço na consciência de que nada é permanente. Tudo foi bom outrora, mas rezo para que seja melhor lá na frente. A vida será muito diferente. As páginas viram e outros continuam contando uma história que parece exclusiva e individual, mas na verdade, do começo ao fim é compartilhada. Viemos e voltaremos ao nada.

Obrigado por tudo, meu avô. Obrigado por ter nos ajudado a prosperar, daqui para frente, sigo por mim e por toda essa gente, com todo o meu amor. Nas fotos, eu vou sempre viajar do futuro para o passado para te encontrar. Obrigado por tudo. Te amo para sempre e mais um dia! De sexta-feira em diante, hoje mais do que nunca no que seria o seu aniversário de 76 anos, quero que saiba que carrego comigo um orgulho imenso de ser seu neto e a certeza que essa despedida é acompanhada de uma promessa de reencontro. É um adeus, sim, mas só por enquanto. Agora você vai dançar, sambar e cantar em qualquer lugar, gastar toda sua voz com o trem das onze. Um dia a gente se encontra, mesmo que ainda esteja um pouco distante. Feliz aniversário, vô! Que você esteja bem e satisfeito onde quer que esteja!

Com amor,
seu neto Daniel.