Já estava chegando em casa quando o celular tocou e uma voz familiar me disse, e aí, estacionei o carro e respondi e aí o que, honestamente eu não sei, estranha, não tanto quanto você, acho que você tá certa, mas é que você sempre foi bom em ser honesta, eu não tenho sido tão honesta assim e acho que a minha terapeuta tá me julgando por isso, então você finalmente tá fazendo terapia, eu estou, que bom, é bom, sim, e você, eu fiz e parei, não se para terapia, pois eu parei, embora sinta saudade do meu terapeuta, é só voltar, claro que não, claro que sim, então quando se sente falta é só andar de trás para frente e voltar? Não é como se uma ligação rompesse a distância, eu disse rapidamente e só depois senti que a frase tinha sido afiada, quase agressiva, compartilhamos um silêncio estendido e escutei a chuva que começava, e aí, eu disse por reflexo, onde você está, ela perguntou, numa rua, eu respondi, qual rua, acho que você não conhece, a cidade é grande, respondeu azeda, não tanto para quem está de carro, o que isso quer dizer, ela me perguntou e o estado azedo saltou para o melífluo em instantes, nada especial, respondi e senti o ânimo dela arrefecer, nada especial, sabe, eu nunca pensei que você ligaria, eu sei que não, claro, você tinha essa mania de saber, tenho, eu ri e a respiração ficou leve do outro lado, as coisas mudam, sim, muito, o que mais mudou em você, eu não vivo para impressionar ninguém e nem tenho uma pedra na ponta da garganta, eu acho que entendo, algum escritor disse que o estado pleno de liberdade é equivalente a você descer a avenida nu, você está nu, a pergunta dela havia sido capciosa, mas abafei o riso, eu só dirigi pelado uma vez e não foi hoje, agora foi ela que riu e aquele som atravessou passado, presente e futuro, olha, para onde, não, sério, olha, não consegui grandes coisas na vida, porém por enquanto acho que consegui pessoas grandes, pessoas, ela perguntou numa mistura de ceticismo e confusão, sim, eu desci a avenida metaforicamente pelado e exposto em absoluto fui capaz de atrair gente para perto de mim, ela riu, você ficou pelado e atraiu pessoas, perguntou em zombaria, atraí as melhores pessoas da cidade, no mínimo, não digo que do mundo porque o mundo é muito grande e não o vi inteiro, entendo, foi a minha vez de rir, entende mesmo, ela tornou a ficar séria, acho que não, um dia quem sabe, um dia, é, mas não hoje, você quer me dizer alguma coisa, pergunto, é que a garoa está virando tempestade, que garota, garoa, eu repito, ah, ela arqueja, seria uma ideia interessante essa não acha, pergunto-lhe, uma garota virando tempestade, ela pergunta indecisa, toda mulher é meio tempestade, inclusive você, ela ri por um segundo e paralisa sem saber se deveria ficar lisonjeada ou ofendida, foi um elogio, ela bufa e responde, eu sei, mesmo, eu duvido em um provocação, claro que sei, não confundo afeto com ataque, que bom, é bom, sim, é, você me ligou por alguma razão específica, liguei porque ainda lembrava do seu número e pensei em te perguntar como é ficar sozinho por tantos anos, eu amo estar sozinho o mesmo tempo que odeio estar sozinho, quase uma década se passou, não vencemos o tempo, ela afirmou com dureza, não vencemos nada, eu complementei, você pioraria o clima de um velório, ela acusou, eu ri e dei de ombros, afinal, talvez fosse verdade, como é passar tanto tempo assim sozinho, eu ri e expliquei com calma, realmente eu não estou sozinho, você foi casado no Ragnarok quando era adolescente e hoje é casado com as palavras, escrever é uma sina maldita e as frases são traiçoeiras, ou seja, eu jamais cairia no papo do texto, eu estou precisando de um interlúdio, ela respondeu, estradas para locais seguros, eu respondi, ela suspirou e o silêncio predominou. E aí, e aí o que, ainda ninguém, isso não é da sua conta, ninguém nunca antes, isso não é mesmo da sua conta, e aí, fica na sua, tá bem. Eu nunca pensei que me ligaria, você nunca me perguntou, ela disse, o que, se estava tudo bem comigo assim que atendeu a ligação, arqueei as sobrancelhas me esquecendo de que ela não podia me notar, tudo bem com você, mais ou menos e aí, mais ou menos também, não me julgue egoísta, mas fico aliviada, eu suspiro e estranhamente entendo o que ela quer dizer, eu espero que as coisas melhorem pra você, respondo, eu também, ela diz e o silêncio se prolonga até ela rir, quero dizer, espero que as coisas melhorem não só pra mim, mas também pra você, eu sorrio sem emitir sons, elas vão melhorar, eu acho, tomara que você esteja certo, eu não vejo a hora de me aposentar e me dedicar integralmente às palavras, você nunca muda, eu mudei, é claro que não, você não teria como saber, isso é verdade, mas nisso eu estou certa, você é sempre você, lá no horizonte o mundo acabando e você não liga, é o quarto apocalipse e você está no seu canto cuidando do seu gato e dos seus livros e das suas palavras, você diz isso como se fosse ruim, ela pensa antes de responder, não é de todo ruim, e aí, eu indago começando a ficar impaciente, a chuva aperta lá fora e tenho medo de ser assaltado, é uma rua que ela não sabe qual é, mas é perigosa na madrugada, eu liguei para ter notícias, ela diz, quem liga geralmente dá notícias, mas eu não tenho notícia nenhuma para dar, exceto que vai chover amanhã também, não vou lavar minhas roupas então, respondo, eu vou desligar, fica bem então, fica bem você também, o silêncio seguiu prolongado e percebi que outrora ele poderia ter sido preenchido por palavras, eu talvez te ligue outro dia, menti, ela suspirou com um ar descrente antes de desligar o telefone, claro, ainda sabia quando eu mentia. Outrora ainda haveria o que dizer, palavras para preencher o silêncio, porém a tempestade dizia tudo. Outrora, repeti em voz alta e saí com o meu carro para a solidão do apartamento.
E aí?
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drpoesia
Escritor de hábitos relativamente saudáveis que gosta de escrever crônicas, poemas, contos e principalmente romances de ficção fantástica. Três livros prontos, porém, ainda sem publicação física. Trimestralmente faço o registro dos meus novos textos no Escritório dos Direitos Autorais. Tenho 27 anos de idade e sou formado em Direito. Creio no amor, embora o sinta meio ingrato neste ano. Só posso ser quem eu sou e é assim que vou continuar. Confio no mestre Leminski. "Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além". Se você continuou até aqui espero que conheça meu blog aqui na WordPress e que possa dar uma visitadinha nas minhas páginas de poesias no Instagram e no Facebook! Obrigado! Volte sempre! Ver todos posts por drpoesia