Encontra-me hoje sem reticências
Percebe-me como sou: inédito
Não dê muita esperança para tua crença
Deixe que falem os gestos e a presença
Aquele outro eu de ontem já não existe
Aquela outra você de ontem também não
Outro dia me palpitou ao peito um súbito desejo
Capricho desforme do meu grande coração?
Não, o coração não anseia por muito
Satisfaz-se com a função de bombear sangue
A alma urge por um passeio solitário
e a maioria dos otários só anda em gangue
Sacode o meu corpo com tua força brusca
Nenhuma amizade de verdade te ofusca
Cuidado com o que tanto busca
Há sempre o risco de encontrar
Por existir demasiado tarjaram minha testa
O dia que me matarem, chorarão e farão festa
Contarão minhas melhores memórias e os cultos
descrerão estupefatos diante da minha cronologia inútil
A classe artística não recebe o apoio que merece
O artista que sobressai esnoba quem nunca surgiu
Alimentam-se da farta fama que os envaidece
O desfile deslumbrante do ego macio
Não obstante, fingem que esquecem
Quem solitariamente os aplaudiu
O único jeito de se encarar é subutilizar os espelhos
Dizem-nos tantas coisas o tempo inteiro e nos convencem
Sim, eles nos persuadem de que não somos bons
Eles nos persuadem de que somos muito bons
E nesta descompactação pessoal passamos a crer
As verdades se misturam com as mentiras
O velho não é necessariamente sábio
Bobagem, isso é o suco da idiotice,
Veja como é possível que um estúpido como eu
tenha escrito novelas, histórias e contos de fadas
Persevera nessa vida quem marca o papel com a tinta
e persegue o desfecho até o rabo da palavra
A constância é a perfeição e somos imperfeitos
Fúteis, inúteis, imersos nessas reticências
Acordamos e predizemos o dia, a semana, o futuro,
A arrogância de antecipar o imprevisível
Vê, filho, pessoas nascem e morrem todos os dias
Ninguém dá a mínima para a porra da poesia
até perder o avô, até ser demitido, até o fundo do poço,
De repente uma rima distraída cessa seu período fosco
Extravaso minhas humanidades em uma delicadeza furiosa
E repudio a crença em um mundo indolente e passivo
Te humilham, te cospem, te pisam e quando você reage
AH! VOCÊ… VOCÊ FOI MUITO AGRESSIVO
Ó vida, sonora estúpida de motivação
Você se fode todos os dias e não há comoção
Os cristãos erram propositadamente e julgam
Os não cristãos seguem o exemplo e se Deus existir
deve certamente estar envergonhado de nós
Entretanto os réprobos trajados de santos
são os primeiros que apontam e dizem que você não presta
Foi por escolher ser eu entre tantos
que sigo com a porra do alvo na testa
Estereótipos que não me comportam
Previsões que não me completam
Ainda assim, escrevo tudo isso como um desabafo
Outros humanos com suas humanidades se achegarão e dirão
Daniel, obrigado, ei, obrigado, eu realmente entendo
E nessa confissão secreta de intimidade
Odeio um pouco menos essa cidade
Por mais que me vituperem o tempo inteiro
Por mais que antes dos olhos, olhem minha roupa e meu dinheiro
Ó, VIDA! ELO ESTÚPIDO FINDÁVEL
Estarei a afundar eternamente?
Rasgo o papel, doo dezesseis livros, recito dois poemas
Passo um café, lavo a louça, como qualquer porcaria,
O sapo cangaceiro me cobra sobre as publicações
Não posso reclamar da simplicidade dos anfíbios
Eu o posicionei ao lado e o exigi que me exigisse
Um relâmpago cruza o céu antes do meio-dia
e me comovo ao ponto de provar meu próprio sal
Se os sapos choram, eles estão a cometer suicídio?
Torno-me sorumbático e pessimista
Tentei colocar no papel um pouco de poesia e falhei
Alguns amigos queriam me ver hoje
Disseram que estão com saudades e que tenho crédito
Até os encontraria, se me recordassem sem reticências
e me percebessem inédito
Entretanto, sendo pouco e tanto,
Resigno-me ao meu escritório repleto de tédio
A coluna por coincidência dói e não tomarei remédios
Queria escrever algo magnífico e devaneei sobre o nada
Quem poderia me ver como sou se sou invisível?
A minha imaginação é um milagre
que não odeia o que é real
Ainda assim, às vezes, eu queria ser menos fatal
Negar-se, entretanto, é decretar a morte de mim
Se tudo um dia acaba, vou atrás do rabo da palavra
Escolher eu mesmo meu fim.
