Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Olho lento e existo longe
Quando não tento
Encontro-me no horizonte
Paisagens sem encerramento
A personificação do cansaço
Um astronauta vaga à esmo
seguindo planetas como seus mesmos
Recriando seu tempo-espaço
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A maioria delas furiosamente delicadas
Aprendi muito novo o valor do nada
Há muito que se consegue com a ponta da espada
Há segredos ocultos no rabo da palavra
Astronomia do sonhador que sempre fui
A vida de escritórios que nunca amei
Tudo se dilui entre os mistérios que inventei
Livros tortos, quadros, sapos e corujas
Edredons, fantasmas, fadas e roupas sujas
Constelações ancestrais e carneiros
Minha coragem e tudo que é verdadeiro
Fui sempre sozinho por ousar ser inteiro
Sem me encaixar nas molduras
constantemente me julgam mais jovem
Não entreguei a minha alma ao retrato
jamais me atreveria ao destino de Dorian
A juventude e a beleza compartilham um fim
Ambas acabam diferente dos sonhos que existem em mim
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
A dureza férrea e a secura do vinho
Meu jeito sério subitamente se abre em sorrisos
Sou aquele vago oceano no fim do caminho
Está claro para quem me olha
Fui inventado para outras coisas
Danço no escuro do meu apartamento
Ao som de Lord Huron vão meus movimentos
Conto os carros que passam com dificuldade
É perigoso esquecer de ligar os faróis quando a noite cai
É corajoso permanecer quando o resto se vai
Sombras fúteis lavam louças
na metade da madrugada por bajulação
Venderam-se por coisa tão pouca
e se rastejam suplicando atenção
Fui inventado para outras coisas
Está claro para quem me olha
Fito nostálgico o sol do fim de tarde
Quando o crepúsculo me escapa
Sinto que algo no meu peito arde
Para não dizerem que não falei das coisas frágeis
e do tanto de verde que há na natureza
Para não dizerem que não lhes contei
que depois da Dor se encontra Beleza
Para não dizerem que eu não tinha flores
até no meu nome do meio
Para não dizerem que só pisava no freio
Amei tudo o que pude e o que não pude amar
Prometi me esquecer no futuro para me resguardar
da infantilidade inútil da vingança
Quando tudo se acaba sobrevive a esperança
Somos todos eternamente crianças
Considerações finais deste solilóquio
A solidão não me fere e preciso ser cauteloso
Já fui viciado na melancolia profunda
Olho devagar e vejo com calma
Por vezes antevejo até os desejos da alma
Só que tudo que sei sobre os outros
Quase nunca sei sobre mim
Não tenho opiniões e apenas instintos
Estou preso em meus próprios labirintos
Tentando encontrar alguma coisa que nem sei
Tentando me chamar pelo meu primeiro nome
Tentando enxergar insistentemente o rosto
que eu tinha antes da criação do Universo
Rabisco mais um verso e me desconcentro de tudo
Durmo tarde e devoro outros mundos
Estou aqui, mas estou por toda a parte
Está claro para quem realmente me olha
Fui inventado para outras coisas.
