Menino doce.

CRÔNICA DE DOMINGO.

Destas tantas coisas que a gente pensa em um domingo. Destes tantos olhares, ingênuos e enviesados, dos cenhos franzidos desde a infância até os caprichos excessivos. Franzo igualmente o cenho, mesmo adulto, não muito diferente do meu sobrinho que ergue suas sobrancelhas em reprovação. Muito mais espalhafatoso do que ele, persisto de cenho franzido e mostro a dureza através do meu olhar, tudo isso como o disfarce para o menino doce que eu era quando tinha a idade dele e que ainda sou, confesso envergonhadamente. Hoje conjecturo ideias extravagantes e penso que a doçura dos meus gestos deva se fazer cada vez mais secreta. Quantas intenções cabem nos instantes mais ligeiros, nos passos mais lépidos e em como ajo em relação a tudo? Sinto-me como se fosse condenado a nunca ser por inteiro, por só se oferecerem metades a mim.  

Penso todas as minhas dores e traumas e medos e as visualizo ao longe. Desfilo em seguida pela avenida dos meus machucados e cicatrizes e vejo a minha alma inquieta e voraz em uma ansiedade crescente por se cumprir em definitivo, mesmo antevendo que não há nada que seja definitivo no âmago. Nada sacia a alma. Na passarela dos meus maiores vexames versões distintas de quem já fui me aplaudem e me apedrejam e sigo avançando sem titubear enquanto piso nas poças formadas pelo sangue que derramei. Não consigo agradar nem a mim. Como poderia sonhar em agradar os outros? Se nem meus desejos simplórios se cumprem, como posso sonhar em cumprir o que é alheio?

Tudo é absurdo e aguentamos esses tantos absurdos com uma tolerância insistente, como quem suporta os abraços ou os monólogos melífluos de um bêbado irritante. Há verdades convenientes demais para que eu não desconfie delas e se tudo converge para uma direção, eu tenho o hábito terrível de observar todas as outras. Não concordo com os outros e geralmente discordo mais veementemente das minhas próprias opiniões. Não é verdade que eu seja senhor de mim só por gastar metade do meu dinheiro em contas ou por morar sozinho ou por respeitar meus limites ou por antever que deveria me expandir na busca por solucionar a angústia do meu ser. Não, não me admito frio, embora tenha congelado nos últimos meses diante de revezes que pareciam irreversíveis e de notícias avassaladoras que me deitaram ao chão e expandiram o buraco fundo que há no meu peito há décadas, sim, desde muito antes de entender o que era o Vazio Escuro, eu o sentia, como se fosse um fantasma de Morte preso perpetuamente em minha Vida. Merecemos nossas sentenças? Tenho a consciência perfeita de que as grandes lições que aprendi ao observar as coisas frágeis aos meus sete anos de idade são das mais importantes que presenciei até hoje. Compreender a paciência com que a aranha tece a teia e como um pássaro sobrevoa o mesmo pedaço do céu por longos minutos enquanto calcula se consegue mergulhar para se alimentar, tudo isso é breve, calmo e raro. Respiro como se cada respiração pudesse representar um pequeno pedaço do paraíso, ainda que eu desacredite de todas as religiões, mesmo não sendo ateu ou asceta. O paraíso são os outros. O inferno também. Quem não se conhece minimamente não pode reclamar se eventualmente se reconhecer como refém de alguém. Quase toda pessoa que identifica nossas fraquezas, utiliza-se delas. Quantas vezes no desespero fecharam suas portas e você teve que escapar pelas janelas? Apenas para sobreviver…

Fecho os olhos na tentativa de buscar uma noite imperturbável de sono, mas sonho sem parar e a maioria dos sonhos traz maus agouros e me pergunto o que tanto faço para me conduzir por estradas metafísicas das quais tenho tanto medo. Talvez no fundo eu seja corajoso em segredo. Talvez eu mereça essa enormidade de pesadelos. Todas as traições que sofro em cenários metafísicos, todas as vezes que fui assassinado, todas as ocasiões que me cuspiram e me colocaram de joelhos, tudo o que eu merecia e nunca tive, tudo o que os outros nunca mereceram e tiveram, todas essas incoerências que me fazem duvidar se. Sinto que o Universo é muito grande e algum dia alguém haverá de me explicar as razões das emoções, pois emoções puras são sempre desarrazoadas e toda essa displicência silenciosa e a falsa amizade nos rompimentos súbitos de amores e amizades, apenas por praticidade nos afogam, forçando-nos a engolir litros e mais litros de uma amálgama de inúmeras mágoas.

Sinto vontade de se me insistir, sem ter a convicção de que eu mesmo valho a pena. Tento sorrir, mesmo nos dias que não crio novas ficções ou poemas e tudo me dói, como um peso no peito, como qualquer grampeador que é repousado em cima de uma folha de papel apenas para evitar que ela não voe e assim permaneço sem voar, por um detalhe que me foi imposto. Será que as primeiras árvores sonharam em voar? Creio que sim, se perscrutavam os caminhos inconstantes das folhas ao vento. Será que imaginaram que poderiam ser algo tão diferente do que aquilo que eram por natureza? Penso nas contrapartes de tudo e em como isso tudo pode ser belo e perigoso. O poder aliado com a estupidez é fatal. Verifica-se aqui o potencial para estupidificar a população e criar uma massa de pessoas não pensantes e há quem já pense que há diversos pensamentos que sejam proibidos. Nada é proibido em nossas mentes. É preciso ser sensível se quiser ver o que ninguém ousa ver, mas muita sensibilidade machuca e por vezes me pego sem ar por enxergar um mundo excessivamente sombrio e talvez me doa admitir que as coisas sejam exatamente assim. Por isso, acredito que nos piores dias, é preciso sobreviver com muita destreza. Só vencemos quando enxergamos que após a Dor há um tanto imensurável de Beleza e assim, sem facilidades, começamos a ver uma realidade que talvez se equipare com a ficção. Talvez nos dias de trevas, eu possa crer na luz do meu coração, entretanto, confesso-me vil com um instinto que nunca se cumpriu: há vezes em que queria me vingar do mundo e ser vilão. Se um dia acordasse mau, fatal e me guiasse apenas por um instinto louco de destruição. Será que na ira eu encontraria alguma comoção?

Tudo é vago e quase estúpido. Um estranho invade o meu espaço em um bar e me ofende e há tantas pessoas que posteriormente irão defender a atitude dele. Nenhuma resposta justifica as defesas. A síndrome do advogado, todos correndo para uma ocasião para tentar fazer parte de algo qual não fazem parte. Querem a justiça, sem se exporem diante do desconforto, como quem quer um prêmio, sem lutar por merecê-lo. Queremos os espólios, mas não queremos erguer a espada, nem mesmo para defender as pessoas que tanto nos defenderam outrora. Somos impecavelmente injustos e incoerentes e essas tantas inconstâncias se impregnam em nossas atitudes mais constantes e tentamos ser suavemente melhores, como quem entende que o mundo já viu o suficiente de dor e como quem percebe, sem epifanias, que um abraço longo e um pedido de desculpas rápido pode significar tanto quanto não parece. Vez ou outra o perdão chega tardio, sem evitar a confusão, entretanto, clareando o caminho para dias mais bonitos. Palavras ditas sem floreios, um gesto sincero, são coisas quais eu teimosamente ainda acredito.

Assim, vejo-os o tempo inteiro e muitas vezes quando me atiram, busco não sair do caminho da bala. A minha vida foi sempre no limite e eu me sinto próximo ao fio da navalha, mas sobrevivo a mais uma batalha e me reergo enérgico, com o meu coração doente, mas ainda pulsante, com a certeza de que nada de bom do que eu faço garante algo bom a seguir, ainda assim, este é o meu único jeito de agir. Ergo a minha cabeça e meus olhos encontram o sol e posteriormente uma profusão insana de cores. Talvez eu deva acreditar nos amanhãs, mesmo com a morte de tantos amores. Talvez abandone o resto da minha parte sã e ostente orgulhoso minhas tantas dores. Quando olho para o sofrimento contínuo, parece-me que não há Deus, pois se Deus houvesse haveria de ter nos resgatado muito antes. Não é possível que sofrer seja uma constante. Já busquei refúgio no sono para fugir da realidade que me feriu. Por vezes sinto que tento sentir um mundo que nunca me sentiu. Por aí espalham que é curto o meu pavio e que eu aprecio estar dentro de uma confusão. Ouço uma estúpida em sua interminável provocação. Há meses que estou no Inverno. Nunca mais haverá verão? Caminho, não pelas vielas de Campo Grande, mas pelos campos grandes da minha alma. Pavimentei minhas trilhas e construí os degraus da escada que ainda estou subindo vagarosamente. Grito em voz alta os meus maiores vexames e sinto uma raiva fervorosa. Talvez esta crônica seja uma tentativa de. Nada.

Bem, entre tantas verdades, pode ser que existam mentiras e, vez ou outras, não há problemas, desde que as mentiras que criamos através dos contos e ficções e histórias, possam se estender e alcançar uma compreensão ainda maior da realidade. Há verdades que cessam verdades e essas verdades não interessam. Se é preciso acreditar em divindades, que acreditem. Se é preciso louvar os erros para eivar os acertos, que louvem. Se é preciso falharem para que aprendam a amar, que falhem, mas que quando a autocomiseração acabar, por favor, que amem. Os pesadelos, os monstros, os inimigos, os fantasmas, tudo isso existe e as nossas ficções não os tornam mais ou menos reais, porém somos os heróis e heroínas de nossas próprias jornadas e mesmo em cenários imaginários ou sonhados, notamos uma necessidade de triunfarmos. Quero nunca mais morrer em sonhos, mesmo aceitando que um dia vou morrer na vida real, ainda não sabendo distinguir a diferença crassa entre uma realidade e outra. O sono do dia seguinte nos levará para outras realidades e me pergunto se me deixarão ter a mesma substância que faz de mim quem eu penso que sou. Se algum dia me concederão o privilégio de.

Quando olho para o abismo, sinto que o abismo me olha de volta e o desespero que se infunde nos outros é algo que me conforta. Posso olhar para o precipício por anos sem nenhuma tentação em saltar para dentro. Quero outras coisas que. Preciso de outras coisas que. Significar a vida é solucionar o mistério das inutilidades?

Escrevo-me, como se pudesse me resumir, como se pudesse me curar das antigas doenças da alma. Sinto que trago isso de outras vidas. Sinto que não há memórias boas ou más esquecidas. Tudo que foi é uma lembrança vaga em algum campo interno e extrassensorial. Toda a tristeza se apaga diante da farta mesa na véspera do Natal.

Há dias em que eu só queria me sentir especial. Há dias que.

Exagero no café, na água, no tempo em que passo no escritório. Exagero na quantidade de vezes que vomito, na quantidade de vezes que insisto, na qualidade das vezes que.

Torço para que o Palmeiras vença para que a semana seja melhor.

Torço para que não chova e para que eu jogue vôlei e derrame um pouquinho de suor.

Rezo para que não me quebrem outras vezes. Tenho bancado o forte, mas na verdade tenho sorte. Pessoas se despedaçam tão facilmente e é tão difícil reconstruir, praticar a remontagem e eu sou péssimo em quebra-cabeças e.

Abro a porta para a escuridão e sinto a dor doer. Preciso abraçar minhas partes malignas e amá-las, mas não amo. Se dissesse que já as aceito estaria me afundando em autoengano.

Só os ébrios de espírito despertam na madrugada para lavar a louça alheia ou tirar o lixo do vizinho. Os réprobos, como eu, revolvem para dentro de si mesmos e permanecem sozinhos.

Brindo uma cerveja preta com meus dois gatos e meu cachorro me observando, às 2h35, enquanto escuto Lord Huron. Bailo com os fantasmas e sei que.

Deus nos abandonou e todo o meu futuro depende do que eu fizer. Gargalho por me sentir desesperado e enclausurado, cônscio das minhas capacidades, ensombrado por uma melancolia profunda que me persegue desde o primeiro choro no hospital.

Minha mãe dizia e ainda diz ao mundo que eu sou especial e eu.

Escrevo livros querendo acreditar que um dia conseguirei publicá-los, mas em verdade, em segredo, eu me omito. Bem no fundo acredito que meus sonhos são distantes e que eu nunca vou cumpri-los.

Ainda assim me escrevo, como se essa fosse a última confissão de que eu.

E de que eu.

E ainda de que.

“O mundo é para quem nasce para conquistá-lo e não para quem sonha que pode fazê-lo, ainda que tenha razão”. Rio de Pessoa e depois de minha pessoa e uma sombra fútil e petulante me chacoalha e grita comigo:

– Não se ria!

Dou de ombros, entre tantos escombros e respondo aos sussurros.

– Um dia.

Quem sabe uma criança correndo pela rua ensolarada me faça acreditar que.

Quem sabe os filhos que nunca tive estejam clamando pelos contos que escrevi ou pelos que ainda escreverei e.

Quem sabe se tudo que ainda não sei signifique que todo mundo nasce para ser rei e essa visão axadrezada da vida tenha me feito peão de meus próprios sonhos e qualquer instinto de rebeldia seja ainda bem-vindo.

Quem sabe tudo faça sentido, mas não neste mês de agosto e muito menos neste domingo. Os meus demônios não foram vencidos, mas neste fim de dia me pego com fome e sorrindo.

Nos restaurantes que ainda não conheci na Ásia.

Nas pontes que ainda não cruzei na Europa.

Nas línguas que ainda nunca falei antes.

Nos castelos em que nunca fui príncipe ou rei.

O copo de água meio cheio também está meio vazio e eu, meio vazio, certamente estou meio cheio.

Nos bosques selvagens.

Na sutileza felina ou na lealdade dos cães.

Na casa solitária como o meu coração no meio de uma ilha perdida.

No meu carro preto ou branco que percorre estradas e engole o sol.

Em tudo o que há em mim parecido com o inconstante mago Howl.

Pensando e sentindo, afinal, percebo-me normal, nada especial, mas sei que ontem, hoje ou amanhã, fosse como fosse…

Serei sempre aquele menino doce.

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Publicado por

drpoesia

Escritor de hábitos relativamente saudáveis que gosta de escrever crônicas, poemas, contos e principalmente romances de ficção fantástica. Três livros prontos, porém, ainda sem publicação física. Trimestralmente faço o registro dos meus novos textos no Escritório dos Direitos Autorais. Tenho 27 anos de idade e sou formado em Direito. Creio no amor, embora o sinta meio ingrato neste ano. Só posso ser quem eu sou e é assim que vou continuar. Confio no mestre Leminski. "Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além". Se você continuou até aqui espero que conheça meu blog aqui na WordPress e que possa dar uma visitadinha nas minhas páginas de poesias no Instagram e no Facebook! Obrigado! Volte sempre!

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